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Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2024


Educação

Escola pública: contradição entre investimento e retorno

Bárbara Chieregate, Maria Clara Parente e Mariana Bispo - aplicativo - Do Portal

05/02/2016

Arte:Thayana Pelluso

Apesar de uma década positiva em termos de expansão e alto investimento no setor educacional, os esforços brasileiros ainda estão longe de atingirem as metas necessárias para uma educação pública de qualidade. Há 21 anos na carreira educacional, a professora carioca Silvia Cristina Gaudino lamenta a ausência de materiais básicos na sala de aula: sua turma estudou este ano inteiro só com um livro didático, o de matemática. É este o cenário em que trabalha grande parte dos educadores do ensino público brasileiro. Quanto ao valor aplicado, o Brasil é o terceiro país que mais investe em educação. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE), 17% do gasto público é investido, porcentagem superior a de Noruega (14%) e Canadá (12%). Porém, quando o valor investido é dividido pelo número de alunos, não dá vazão ao número de matriculados, e o país pula para as últimas posições no ranking.

A dificuldade das crianças e jovens em dar continuidade aos estudos ainda é frequente, ainda que o acesso à escola tenha aumentado. Em pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil teve quase um quarto de evasão (24,3%), a maior taxa de abandono escolar em 2013. O relatório aconselha o governo a iniciar políticas ambiciosas para driblar os obstáculos. De acordo com o Ministério da Educação (MEC) a evasão escolar atinge 6,9% no Ensino Fundamental e 10% no ensino Médio, somando um quantitativo de 3,2 milhões de jovens e crianças fora das escolas antes do tempo previsto. A coordenadora de Educação da Unesco Brasil, Rebeca Otero, destaca: “Ainda há pouco esforço para inserir o jovem na educação profissional”.

Com a saúde financeira do país debilitada, o avanço do setor torna-se ameaçado pelo programa de ajuste de contas públicas, devido à crise econômica. De acordo com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, os atuais 6,6% do PIB (Produto Interno Bruto, medida da produção e da renda gerada no país) são insuficientes para todas as melhorias necessárias para a educação brasileira, sendo 10% do PIB o valor essencial para restabelecer o setor até 2024, segundo a meta do Plano Nacional de Educação (PNE). Para o coordenador geral da Campanha, Daniel Cara, a maior dificuldade é fazer com que a verba chegue às escolas e, sobretudo, preparar as gestões para recebê-las:

– O dinheiro precisa, antes de tudo, chegar ao público, o que determinará grandes avanços. Falamos em 10% do PIB, quando o grande desafio é melhorar o investimento por aluno ao ano e, nesse aspecto, vamos muito mal.

Foto:Foto Divulgação O gasto por aluno revela-se insuficiente e está entre os cinco piores valores anuais da OCDE, com o quantitativo de US$ 3.441. Para incrementar e qualificar o investimento do aluno ao ano, o PNE determinou a legitimação do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) até junho de 2016. Idealizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o CAQi é uma ferramenta que determina quanto deve ser investido por aluno ao ano de acordo com cada etapa e modalidade de ensino da educação básica. Custos de manutenção das creches, pré-escolas e escolas são analisados a fim de garantir um padrão mínimo de qualidade.

– O Custo Aluno Qualidade Inicial determinará padrões de qualidade de educação, como padrão adequado para turmas, custos com formação, salários e carreira compatíveis com a responsabilidade dos profissionais da educação. Além disso, determina instalações e equipamentos necessários para a melhor infraestrutura de escolas públicas como, escolas como laboratório de ciências, informática, quadras poliesportivas, bibliotecas, salas de leituras e outras melhorias estruturais – Cara explica.

Foto:Arquivo Pessoal   Aos 17 anos, Juliana Pessanha completou seus estudos em colégios públicos na Baixada Fluminense. Ela conta: “Já cheguei a ter que revezar o chão do pátio escolar com 22 turmas, pois não tínhamos como ter aulas nas salas sem ar-condicionado”. Juliana, então, liderou uma greve no colégio, estava sem luz e água.

Leia o relato de Juliana Pessanha: “Pátio escolar se tornou sala para 22 turmas”

Em proporções maiores, estudantes de São Paulo se mobilizaram contra a reestruturação da rede escolar paulista, que pretende separar as escolas para que cada unidade passe a oferecer aulas apenas em um ciclo da educação – Ensino fundamental I, Ensino Fundamental II e Ensino Médio. A proposta prevê o fechamento de 93 escolas e, no total, 1.464 unidades se envolveriam na reconfiguração, com mais de 300 mil alunos afetados. Estudantes que não concordavam com o projeto e simpatizantes ocuparam mais de 200 unidades de ensino e também se manifestaram nas ruas de São Paulo, o que levou o governador Geraldo Alckmin a postergar a decisão – a reestruturação, até então, começaria no início do ano. “O ano de 2016, que seria o ano de implantação, será o ano de aprofundar o diálogo”, declarou o governador. Os alunos, no entanto, continuam ocupando as escolas, em busca da revogação da lei. Segundo a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 57 unidades de ensino ainda estavam ocupadas nesta semana.Foto:Agência Brasil / Rovena Rosa  

Segundo Daniel Cara, a maior disponibilidade de recursos para o setor somado aos mecanismos de participação e controle social precisa estar no cerne dos projetos educacionais. Uma das deficiências importantes a serem destacadas, de acordo com o especialista, é o fato de que poucos gestores da educação brasileira estão inseridos profissionalmente no setor:

– Poucos gestores da educação são educadores. Quando gestores não entendem de educação, não têm uma trajetória pedagógica, na administração de projetos educacionais, não há respeito pelas tradições da área, e a tendência é a aplicação de projetos inconsistentes e políticas públicas anteriores não consolidadas.

Foto:Mariana Bispo Para a pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Gestão e Qualidade da Educação (GESQ) da PUC-Rio Maria Luiza Canedo, a não consolidação de leis e projetos destinados ao setor educacional impede avanços reais: “Muitos projetos acabam estagnados, pois o avanço ainda está muito ligado às questões político-partidárias”. A descontinuidade de políticas públicas, que se alteram a cada novo mandato, é um dos entraves a serem driblados na educação brasileira.

– Temos políticas interrompidas sem que possamos ter clareza dos seus resultados. A educação é um trabalho de longo prazo. Formar uma criança na educação básica vai levar 14 anos se ela cumprir todas as três etapas – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Se as diretrizes e a ênfase mudam, perde-se o suporte, o investimento na continuidade do projeto, e ficamos sem poder avaliar os reais resultados.

A professora Silvia Galdino, moradora de Duque de Caxias, é uma das educadoras que sofrem com ausência de políticas públicas que incentivem atividades de lazer e cultura aos alunos. Ela leciona em colégios localizados em áreas rurais, e afirma: “A maioria dos meus alunos são crianças carentes, sem acesso a direitos básicos como saúde e educação de qualidade. Precisam de fato de projetos consolidados que proporcionem seus direitos”.

Foto:Mariana Bispo Leia o relato de Silvia Cristina: “Sou eu quem pago para lecionar”

A qualificação dos profissionais também é um dos principais obstáculos da educação. De acordo com os indicadores do Todos pela Educação, 52% dos professores não fizeram a licenciatura (formação específica na matéria que leciona) e cerca de 25% não têm ensino superior. Para a coordenadora de Educação da Unesco Brasil, a formação de professores brasileira é uma deficiência que precisa ser rapidamente driblada: “Os profissionais estão na universidade achando que é uma coisa, mas quando caem na sala de aula é totalmente diferente. O investimento na capacitação, na formação prática e continuada é essencial ”.

A ausência de tempo para o planejamento escolar é um dos pontos destacados pela especialista: “O professor, muitas vezes sobrecarregado em três ou quatro empregos, precisa planejar as aulas, ação que muitas vezes não acontece, pela falta de tempo disponível”. Para Maria Luiza, o diálogo entre os profissionais e o tempo disponível para planejar as lições são essenciais para um bom ensino: “Se o profissional não tiver tempo para estudar e se atualizar, a qualidade de ensino não chegará, pois ele é o ponto chave da formação do aluno”.

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais – que analisa como a sociedade brasileira mudou em 10 anos –, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve melhorias no acesso à escola, que aumentou 24,6% para crianças de 0 a 3 anos e 82,7% para o grupo de 4 a 5 anos. A ampliação do acesso também chegou aos jovens de 15 a 17 anos, com alta de 2,4%, representando 84,3% em 2014. Também houve melhoria na adequação da idade em todos os níveis educacionais analisados ao longo dos anos. A taxa de frequência escolar líquida (proporção de pessoas que frequentam o nível de ensino adequado à sua faixa etária) nos anos finais do Ensino Fundamental (do 6º ao 9º ano) passou de 72,5% para 78,3% e, no Ensino Médio, aumentou de 49,40% para 58,6%.

O aumento do acesso à educação entre crianças e jovens e a possibilidade de educação inclusiva para classes populares, indígenas e quilombolas são grandes avanços, segundo Maria Luiza Canedo. Entretanto, a pesquisadora pondera: “A universalização do ensino traz um desafio, pois são novos alunos, com experiências e origens diferentes, além de outras necessidades, O desafio está em como receber e ensinar. O professor precisará de mais preparo técnico e psicológico, além da ampliação da estrutura física escolar”.

Educação Quilombola

Foto: Augusto Pereira  Se a realidade educacional pública urbana se encontra em precariedade, escolas presentes em áreas remanescentes de quilombos sofrem ainda mais. De acordo com dados levantados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, entre as matrículas em período integral, os investimentos na educação indígena e quilombola deveriam dobrar dos atuais R$ 3,1 mil para R$ 6,1 mil por estudante. Para Daniel Cara a “histórica desatenção” dada à educação rural brasileira está diretamente relacionada aos efeitos em números: “Os dados mostram que as matrículas que o Brasil menos investiu ao longo da história, como creches, educação quilombola e indígena, demandam mais recursos. Para os recursos chegarem é preciso um esforço político ainda maior”.

Devido à pequena quantidade de estudantes e ao isolamento das unidades de ensino, muitos municípios, responsáveis pela oferta do ensino fundamental, alegam altos custos para poucos alunos, o que gera o fechamento de muitas escolas rurais (indígenas, quilombolas, caiçaras) – conceito nomeado por pesquisadores de “nucleação”. Segundo dados do Censo Escolar Inep/MEC, ao longo da última década, o número de escolas brasileiras do campo sofreu uma redução de 31,46%, quantitativo que chega a 32.512 unidades. De 2012 para 2013, o levantamento indicou 3.296 escolas do campo a menos no Brasil.

Foto: Arquivo PessoalEm pesquisa sobre a educação quilombola e a disputa territorial, o professor de educação física e mestrando da Uerj Thiago Coqueiro, visitou 18 das 38 comunidades quilombolas presentes no Rio de Janeiro. Coqueiro critica a lógica dos municípios e estados de investirem em escolas pela quantidade de alunos. Segundo ele, essa tendência prejudica os poucos centros educacionais presentes em comunidades, como também ajuda no aumento da taxa de analfabetismo – que já chegam a 8,3% (13,2 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo IBGE).

– A maneira de financiamento da educação quilombola tem que mudar. Se o estado se basear em número de alunos para investir nas escolas, sempre irá haver desigualdade na infraestrutura e nos direitos básicos a serem disponibilizados. A nucleação privilegia as administrações e não os alunos, já que eles precisam se deslocar todos os dias de seu ambiente original, o que interfere na identidade cultural. Por causa da distância, muitos são obrigados a se mudarem para a cidade, e outros acabam abandonando a escola, o que faz com que muitas crianças e jovens de áreas rurais fiquem sem acesso à educação de qualidade.

Um dos motivos para o acelerado processo de fechamento de instituições no meio rural é a disputa pela terra, já que a luta por território, “direito básico de todo cidadão” é uma realidade vigente das comunidades remanescentes de quilombos.

De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), baseado em análises sobre o Censo Escolar de 2010, cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes se deslocam diariamente do campo até as cidades para ter acesso a educação. É o caso do quilombola Almir Gonçalves. Para ter acesso ao Ensino Fundamental II (6ºao9º ano), Almir, hoje com 36 anos, lembra o esforço financeiro que teve que fazer ao se mudar para a cidade de Santa Isabel, a 12 quilômetros de seu quilombo:

Foto: Arquivo Pessoal – Foi muito difícil sair da minha comunidade. Meu pai teve que alugar uma casinha para nossa família ir morar na cidade, mas o valor do aluguel era bem maior do que nós ganhávamos, e precisei recorrer à ajuda de familiares e famílias do quilombo. Se nossas crianças conseguissem receber uma melhor educação sem ter que sair da comunidade evitaria muitos problemas, pois muitos jovens saem da comunidade e acabam criando más costumes. Por falta de estudo, não há oportunidade de emprego e, muitos acabam se perdendo no crime.

Leia o relato de Almir Gonçalves: “Não lutamos por dinheiro, lutamos por direitos básicos”

Militante na causa educacional, Coqueiro aponta as principais dificuldades estruturais das escolas rurais presentes em áreas remanescentes de quilombos: “As unidades estão longe das residências dos alunos e as condições de estrutura são precárias. Muitas escolas são construídas de palha ou pau-a-pique. Além de haver escassez de água potável, as instalações sanitárias são inadequadas. A precariedade no trabalho gera a precariedade na vida daquelas famílias, é uma relação de trabalho de semiescravidão ou, em alguns casos, de escravidão mesmo”.

Rebeca Otero enfatiza a importância da educação inclusiva na sociedade brasileira e pondera: “Uma vez dado o acesso a educação, nós precisamos adequar culturalmente, trabalhar materiais didáticos e métodos com diálogo intercultural”.

Uma das idealizadoras da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Povos Tradicionais – que inclui na Constituição estadual um novo artigo que reconhece a cultura e os direitos básicos coletivos dos povos e comunidades tradicionais –, Cecília Vieira, assistente parlamentar do deputado estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ), ressalta a importância dos conhecimentos tradicionais das comunidades quilombolas estarem incorporadas ao ensino escolar:

– O ensino tem que falar da história global, mas, sobretudo, da história local. Fazer com que os alunos conheçam o entorno e alimentar a relação deles com a comunidade é fundamental.

*Colaboraram: Barbara Tavares e Diana Fidalgo