Juliana Oliveto - Do Portal
19/04/2010Desde 1906, o tradicional Campeonato Carioca mobiliza torcedores de vários times do estado, todos com uma mesma paixão: o futebol. Encerrada no domingo, 19/04, a edição de 2010, que consagrou o Botafogo como campeão, deixou a desejar não só na organização, mas também na freqüência dos torcedores nos estádios. Como o país que vai receber o maior evento de futebol do mundo dentro de quatro anos pode resolver seus problemas de organização? Pedro Trengrouse, advogado formado pela PUC-Rio, especialista
Portal PUC-Rio Digital: Como anda a organização do futebol brasileiro hoje?
Pedro Trengrouse: O modelo de organização do futebol no Brasil precisa ser repensado, porque a maioria das instituições que são protagonistas da atividade tem um modelo de organização que reflete o século XIX. Os clubes não têm agilidade para tomar decisões e implantar medidas administrativas em razão de conselhos e mais conselhos... É uma estrutura realmente antiga e que não reflete o mundo de hoje do futebol que é dinâmico e um ambiente de negócios. O futebol brasileiro, pentacampeão, vai muito bem à medida que é uma atividade econômica importante que gera emprego, renda e produz matéria prima de primeiríssima qualidade para o país e para o mundo. Mas pode ser muito melhor se tiver uma administração mais moderna, eficiente e adequada ao volume da atividade nos dias de hoje. Então ainda há um longo caminho para que o futebol brasileiro tenha o desempenho que ele pode ter como parte do arranjo produtivo nacional.
P: O que pode ser feito para melhorar essa administração?
PT: Sem dúvida nenhuma os clubes de futebol estão melhorando. A administração hoje é muito melhor do que foi antigamente, você consegue identificar nas atividades do clube, como departamento jurídico, financeiro e outros, a contratação de profissionais de altíssimo nível, que poderiam estar trabalhando em qualquer outra indústria e isso é muito bom. Mas ainda é pouco porque existe um engessamento institucional nos clubes, o modelo de tomada de decisões é antigo e não adequado a velocidade com que as relações de negócios acontecem. Soluções existem, mas é um processo que não se resolve da noite para o dia. Eu consigo enxergar, nos últimos dez anos, uma evolução significativa em todos os clubes profissionais do Brasil. Antes era difícil encontrar profissionais de alto nível no quadro de funcionários dos clubes, eles participavam da administração, mas como voluntários. Eram aqueles advogados ou empresários bem sucedidos, por exemplo, que se dedicavam no tempo livre a participar do clube. Não tínhamos profissionais desse gabarito se dedicando 24 horas por dia e na última década eles já passaram a ocupar espaços importantes dentro dos clubes nas atividades que dão suporte à prática desportiva e que no mundo de hoje são fundamentais para a boa administração do clube.
P: Há no Brasil uma falta de investimento nas categorias de base? O que leva os novos jogadores a buscar oportunidade no exterior?
PT: Não é verdade que os clubes não investem na formação dos atletas, eles investem e muito nisso. O que acontece é que a capacidade de investimento dos clubes brasileiros é muito reduzida em razão de uma série de fatores constritivos que os clubes enfrentam hoje. Os clubes tanto investem que formam bastante e toda hora aparece um jogador novo. Os jogadores querem ir embora porque têm o sonho de jogar no exterior. Eles enxergam isso como mais um degrau na sua escalada social, porque passam a ter um salário melhor e viver em um país de primeiro mundo. Isso não o coloca, nem ao país, em uma posição inferior, pelo contrário, é só o desejo de ter uma experiência diferente. Por outro lado, isso nos leva a uma reflexão interessante quando a gente observa o retorno de alguns jogadores que estavam bem no exterior, temos exemplos de jogadores que voltaram da Europa em posição de muito prestígio, como Adriano, Vágner Love, Fred e Carlos Alberto. Então existe um movimento de retorno desses atletas enquanto ainda estão no auge das carreiras. Isso é muito interessante e se deve a uma série de fatores, mas também evidencia uma retomada no crescimento da economia do futebol brasileiro. Embora esses jogadores, em alguns casos, estejam abrindo mão de algumas receitas, continuam ganhando salários extremamente competitivos, porque a economia do país permite que os clubes se organizem junto a patrocinadores e com seus recursos próprios para pagar essa despesa.
P: Como a Lei de Passe influenciou na dinâmica de compra e venda de jogadores?
PT: A instituição do passe talvez seja uma das questões mais controversas que se pode apontar nessa área, mas não foi nenhuma lei brasileira que acabou com isso, foi a mudança de um entendimento na Europa, com o caso do jogador Jean-Marc Bosman, conhecido como “Caso Bosman”, que determinou que o jogador não poderia ser impedido de trabalhar simplesmente porque o clube que detinha seu passe não queria aceitar sua transferência para outro lugar. Existe o direito do cidadão de buscar seu sustento e isso transcende qualquer direito que o clube A, B ou C possa ter em razão do investimento que fez na formação daquele atleta. É um direito mais forte, por assim dizer, e isso faz todo o sentido. Com esse entendimento, nós temos uma alteração na relação entre o clube e o atleta no ponto de vista mundial, eu repito que não é um fenômeno brasileiro. Há uma lenda que a Lei Pelé acabou com o passe no Brasil, mas isso não é verdade. O passe acabou justamente quando a União Europeia declarou que o direito do atleta trabalhar se sobrepõe ao direito que o clube possa ter em razão do passe desse atleta. A partir de então, o futebol se estruturou, do ponto de vista da relação do atleta com o clube, em cima de um princípio chamado estabilidade contratual. A União Europeia tem tanta importância porque é o maior mercado do futebol mundial, até porque não adianta nada um país regular de uma determinada maneira se quando o jogador pega o avião e sai daqui o mercado receptor o aceita para jogar. Ou você tem uma regra que o mercado aceita, ou vale a lei daquele que tem mais dinheiro para pagar pelo atleta. Então a gente não teria a menor condição de ter uma lei diferente no Brasil, porque se o cidadão tem o direito de ir e vir ele pode ir e, se o mundo do futebol o aceita, não adianta nada a lei brasileira dizer que ele teria que ficar em razão do passe pertencer a esse ou aquele clube. Seria letra morta, porque a lei brasileira tem eficácia no território brasileiro. Mas na questão de investimento, aquele que o clube fez na formação do atleta continua garantido à medida que o clube formador tem o direito de assinar o primeiro contrato desse atleta aos 16 anos, com duração de três anos e podendo renovar por mais cinco. Além disso, o clube tem a compensação por treinamento e formação garantido pela Fifa, que corresponde a 5% de todas as transferências que esse jogador vier a fazer. Por exemplo, outro dia o São Cristóvão recebeu pela última transferência internacional do Ronaldo quase 500 mil euros por ter formado o atleta. Então a formação de atletas continua sendo um bom investimento e a organização da relação de trabalho entre o clube e o atleta hoje se dá de forma mais equilibrada.
P: Temos no futebol o fenômeno dos empresários envolvidos na administração da carreira do jogador. Até que ponto isso é positivo para o mercado do futebol e até que ponto isso pode atrapalhar?
PT: Quando você quer comprar um apartamento você procura um corretor de imóveis, com o jogador é a mesma coisa. O empresário supre uma demanda do mercado, se não fosse necessário ele não existiria, pois representa uma despesa para alguém, porque ele vai ter que receber de algum lugar, ou do clube ou do atleta. Então, se não tivesse o empresário, talvez a relação fosse mais barata. Ou seja, se alguém paga para que ele exerça uma função, deve ser porque ela é minimamente importante. Eu não vou entrar no mérito do modelo, mas existem bons e maus empresários. Os bons ajudam os atletas que eles representam, ajudam os clubes com os quais trabalham. Os maus são maus para a própria família, são maus pais, maus maridos, más pessoas. Atleta tem que jogar bola e não pensar em negociar contrato e fazer proposta. Então é bom que haja alguém ali para assessorá-lo. Não sei se a figura de um empresário, de um advogado ou de alguém da família, mas certamente a presença de alguém para ajudar e dar segurança, até porque ele começa a carreira muito cedo. Então é bom, não é uma coisa ruim.
P: Nos próximos anos, quais são os principais pontos nos quais o país precisa melhorar para receber um evento da magnitude de uma Copa do Mundo?
PT: O primeiro ponto importante são os estádios. Nós teremos doze estádios de altíssimo padrão de qualidade, que são os que vão receber os jogos da Copa. Eles serão o primeiro grande legado da Copa para o futebol brasileiro, porque o futebol disputa mercado na indústria do entretenimento e quanto melhor e maior a qualidade, maior o potencial de geração de receitas. Se você tem um estádio que oferece mais conforto, segurança e mais opções de lazer e entretenimento, você pode cobrar mais pelo ingresso daquele estádio e, cobrando mais, você ganha mais. Então esses novos estádios podem mudar um pouco o paradigma das instalações físicas do futebol brasileiro, mudando a categoria de patamar, atraindo um torcedor de maior poder aquisitivo e mais exigente, que leve a família, que consuma mais no estádio e, com isso, gere mais receita, mais emprego, mais renda, através do futebol brasileiro. O segundo ponto importante é o legado do capital humano, de gente preparada para trabalhar com o futebol em alto padrão de qualidade. Hoje nós não temos essa mão de obra tão qualificada e a Copa do Mundo vai ser capaz de qualificar uma força de trabalho que, eu espero, fique para o futebol brasileiro. É gente que vai aprender com a Copa como potencializar as receitas de uma competição esportiva e vai aplicar isso no futebol, otimizando nossas receitas e, repito, gerando mais renda, emprego, alegria para os torcedores e melhorando a qualidade do entretenimento. Além disso, a Copa e as Olimpíadas servem como catalisadores, ou seja, reúnem esforços com uma data limite para uma série de investimentos que já deveriam ter acontecido, porque o Brasil precisa de aeroportos melhores agora, não é pra Copa nem para as Olimpíadas, precisa do metrô até a Barra agora, não é pra Copa nem para as Olimpíadas. Então, esses eventos apresentam um deadline e isso é muito bom porque organiza os esforços para que esses investimentos aconteçam agora.
P: Como o senhor avalia a situação dos principais estádios do país?
PT: Os estádios brasileiros estão em boas condições, são estádios que recebem jogos importantíssimos, com uma média de público relevante, mas que tem um conceito de 1950, época em que a maioria deles foi construída. Nos últimos 30 anos o último grande estádio construído foi o Engenhão, ou seja, grande parte dos outros estádios estão aí há décadas, refletindo conceitos antigos de arquitetura, quando o futebol era um entretenimento de outra categoria. Hoje nós precisamos de camarotes, área VIP, lojas, estacionamentos, de coisas que não precisávamos em 1950. Então existe uma questão conceitual que ultrapassa a conservação pura e simplesmente, os estádios estão bem conservados, mas o conceito arquitetônico não atende mais ao mercado de hoje. Então eu acho que a Copa do Mundo vai servir para mudar esse modelo e com isso potencializar as receitas, porque você vai ter um estádio com melhores condições de arrecadação em todos os seus espaços. O conceito é o seguinte: você tem o sujeito por, pelo menos, uma hora e meia dentro do estádio, então você tem que vender o máximo que você puder pra ele, e tem que começar vendendo pelo ingresso, um ingresso de alta qualidade, com a cadeira estofada, com ar condicionado, com estacionamento, com tapete vermelho... Enfim, quem quer mais paga mais, mas nós temos que oferecer mais. Hoje, com o modelo que nós temos, não conseguimos.
P: O senhor acha que o preço cobrado pelos ingressos é equivalente ao serviço oferecido?
PT: O preço do ingresso é uma questão difícil porque não há um estudo bem feito para determinar o valor, é um chute que se dá em conjunto com os outros clubes para tentar capturar o potencial do mercado. O que regula o preço do ingresso é esse mercado, a oferta e a procura. No último jogo do Flamengo com o Grêmio, ano passado, tinha ingresso sendo vendido a R$100, algo assim, mas havia cambistas vendendo na rua por R$500. Os ingressos acabaram em poucas horas e isso na verdade coloca a seguinte pergunta: será que o clube cobrou barato nos ingressos? Porque se algum torcedor está disposto a pagar R$500 paro cambista, ele pagaria isso para o clube. Será que o clube não poderia ter cobrado esse valor e usado o dinheiro pra investir no seu time de futebol, nas categorias de base? Quer dizer, o excedente que o consumidor está disposto a pagar nesse ingresso deveria ficar com o clube e não com o cambista. Na minha opinião, o preço do ingresso deveria ser tratado da mesma forma que as passagens aéreas são, com um sistema no qual quem compra primeiro paga menos. Então, se o lote dos ingressos for aumentando até os preços mais altos, isso garante que o clube receba cada vez mais cedo, porque as pessoas vão querer comprar antes para pagar menos. Isso também assegura que o clube receba aquilo que o consumidor está disposto a pagar na última hora. Você desenvolve um modelo onde o clube pode capturar esse excedente em vez de deixar na mão de terceiros. Faz sentido, mas é um negócio revolucionário. Ao mesmo tempo é fácil, porque o sistema está pronto, é só implantar. O que falta é vontade de fazer. Isso não é uma crítica, é só uma idéia que poderia ser discutida. O que acontece hoje, é que o preço dos ingressos não merece uma atenção mais detida. Quando aumenta um pouco o valor, todo mundo reclama, mas se você for dividir todos os custos e cobrar no ingresso o preço seria muito maior. Hoje o ingresso é barato, quase de graça. Se você for ver na Europa, por exemplo, os ingressos custam três, quatro vezes mais, são muito mais caros.
P: Como são definidos os horários dos jogos? Até que ponto a televisão influencia na decisão?
PT: Os horários são decididos de comum acordo. A televisão tem uma participação nessa decisão e é natural que tenha porque ela paga muito dinheiro pelo direito de transmissão, apesar de achar que poderia pagar mais. A TV é uma parceira importante, sem ela não tem futebol porque, nos modelos atuais, o patrocinador da camisa quer aparecer na televisão, não para o torcedor do estádio. O mercado publicitário gira em torno da TV, então é importantíssimo para o futebol essa relação e, consequentemente, a gente tem de ouvi-los na hora de definir os horários das partidas, isso é natural e eu acho que é um modelo perfeitamente saudável que não acontece só no Brasil, mas no mundo inteiro. É o dinheiro da transmissão que dá aos clubes oxigênio para contratar jogadores, pagar salários, fazer o futebol. Então é preciso compatibilizar os interesses de forma que todo mundo ganhe. Ninguém ganha se o futebol enfraquecer a televisão e a TV também não ganha se enfraquecer o futebol, é preciso encontrar o ponto de equilíbrio. Óbvio que é preciso bom senso, a TV, os patrocinadores e os clubes tem que sentar na mesma mesa para decidir essas questões porque juntos ganhamos todos.
P: Nós começamos falando sobre a organização do futebol e eu gostaria de terminar também falando sobre isso... Pensando na Copa de 2014, o que o senhor acha que deve mudar?
PT: Existem ajustes que podem ser feitos. Acho que a Copa do Mundo pode ser um catalisador para a reestruturação do futebol brasileiro e isso é o dever de casa que a gente precisa fazer, encontrar soluções para modernizar e profissionalizar a administração dos clubes para que o futebol possa gerar mais emprego e renda no país.