Marina Ferreira - aplicativo - Do Portal
15/12/2014Pelo senso comum, a imagem dos filósofos normalmente é projetada como uma figura de idade, com cabelos grisalhos e olhos profundos, carregados de marcas. O professor Pedro Duarte, de 33 anos, doutor em filosofia pela PUC-Rio, é prova de que esta imagem estereotipada está ultrapassada. Em um bate-papo descontraído sobre seu recém-lançado segundo livro, A palavra modernista – Vanguarda e manifesto, ele mostra que, para filosofar, mais importante do que longos anos de estudo, é necessário primeiro aprender a pensar.
O livro, publicado pelas editoras Leya, Casa da Palavra e PUC-Rio, faz parte da coleção Modernismo +90, que celebra os 90 anos da Semana de Arte Moderna de 22, ponto alto do Modernismo no Brasil. Pedro abordou os aspectos filosóficos e conceituais do movimento que se articulam com temas desde a construção do “eu” como sujeito até questões do Brasil atual.
– A partir de conceitos usados pelos modernistas, como a antropofagia, eu explorei o aspecto filosófico do movimento. O Manifesto Antropófago, que Oswald de Andrade escreve em 1928, afirma que toda e qualquer cultura é constituída por um princípio de devoração impuro de outras culturas – ainda que tradicionalmente elas não reconheçam isso. Essa ideia da antropofagia nasce do fracasso em se encontrar uma identidade nacional, uma brasilidade essencial. Os modernistas brasileiros pensam o Brasil a partir da sua falta de identidade, e a partir disso compreendem que as influências exteriores podem e devem ser absorvidas, mas de maneira crítica, e não transformadas em repulsa ou cópia. A partir desse pensamento modernista, em um âmbito mais conceitual e filosófico, podemos inferir que o “eu” se constitui como tal a partir das tramas de relações com a alteridade, com o outro, não com a sua exclusão. Esse aspecto foi o que mais me interessou ao escrever a obra: como o “outro” ajuda na construção o “eu”, seja ele o sujeito ou o projeto de nação.
De modo geral, o cenário artístico, estético e civilizatório do país, no início do século XX, apresentava dois grandes caminhos para se pensar o próprio Brasil: o caminho da mímese e o caminho da recusa de qualquer dado exterior, proveniente em sua maioria da Europa – ponto no qual o professor é categórico:
– Esse caminho da cópia é aquele com que convivemos até hoje no Rio de Janeiro, como o Teatro Municipal e a Avenida Rio Branco, que são grandes exemplos dessa tentativa de se instaurar uma Paris nos trópicos. As pessoas até hoje se vestem de terno e gravata no Centro da cidade, mesmo fazendo 42 graus, o que é uma completa loucura, é uma insanidade colonizada. Configura nosso exemplo mais palpável de importação acrítica dos modelos europeus numa tentativa de modernização do país.
Os modernistas brasileiros foram contra essa corrente, como Mario de Andrade ao criar Macunaíma na literatura – um homem que pode ser branco, preto, índio, europeu, português e representa toda a identidade brasileira oriunda da falta de unidade. Sem a batalha dos modernistas por práticas que parecem quase singelas, como escrever em verso livre, sem métrica e sem rima, poetas como Carlos Drummond de Andrade seriam impensáveis. O famoso poema No meio do caminho, considerado infantil na sua época, foi publicado primeiro na Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade, e é reconhecido como um dos maiores poemas brasileiros de todos os tempos. Essas heranças do Modernismo foram reforçadas por Pedro em seu livro:
– É absolutamente fundamental entender que, além da grandeza da obra dos autores oficialmente modernistas, como Mario, Oswald, há de se considerar a influência que o Modernismo teve na liberação dos processos criativos da arte brasileira para além dele mesmo.
O Movimento Modernista acaba em 1928, mas seu pensamento se estende até a década de 70 e mostra sua força especialmente na Tropicália. Enquanto na década de 20 os modernistas reagiam de acordo com as influências europeias, tentando absorvê-las da melhor forma, na década de 70 os tropicalistas se deparam com o fluxo da cultura norte-americana, e o desafio da antropofagia se faz mais uma vez presente na visão de Pedro.
– A questão deles é não fazer uma crítica a priori que rejeite o fluxo da cultura norte-americana, mas sim refletir como poderiam devorar e digerir esse fluxo em produtos distintos. Caetano Veloso e João Gilberto, por exemplo, são produtos justamente da capacidade crítica de articular tradição musical brasileira, sobretudo o samba, com a tradição musical estrangeira, sobretudo o ainda recente jazz norte-americano. É a inserção da guitarra elétrica na Música Popular Brasileira, que, assim como os versos livres dos modernistas, sofreu enorme repúdio de certa intelectualidade que enxergava nessa inclusão um desvirtuamento. A posição tanto antropofágica como tropicalista é a de se deixar permear pelo outro, mas não de uma maneira ingênua. A partir desses processos teria surgido, por exemplo, a Bossa Nova.
Pedro tem absoluto fascínio por movimentos culturais e suas implicações filosóficas. Em 2011 lançou pela editora Zahar o livro Estio do tempo – Romantismo e estética moderna, que, além de falar sobre o Primeiro Romantismo Alemão, aborda as inúmeras relações entre arte e filosofia, tema também da disciplina que leciona na Especialização de Arte e Filosofia.
– Tanto no curso como no livro, busco mostrar as relações intrínsecas entre arte e filosofia, apesar de muitas vezes acreditar-se em um distanciamento entre elas. Cristalizou-se tradicionalmente a ideia de que a filosofia é enfadonha, mas contempla os assuntos sérios; e de que a arte é divertida, porém superficial. Para esse senso comum eu pergunto: então quer dizer que Shakespeare não pensa? Que Descartes não escreveu um texto literário? Quando ele escreve “Penso, logo existo”, que firma a certeza do real no “eu”, ele escreve na primeira pessoa do singular, algo raríssimo em textos filosóficos. A quem não consegue perceber que essa foi uma escolha de forma literária decisiva para chegar à conclusão filosófica, acho que entendeu muito pouco não só de literatura, mas de filosofia.
Nas concepções firmes de Pedro, a filosofia também depende das suas formas de expressão literárias, e a criação das obras de arte também passa pelo âmbito pensante e reflexivo. O Romantismo foi o momento da história do pensamento ocidental em que ele encontrou essa formulação de maneira mais coesa; apesar disso, não pretende escrever mais sobre movimentos no futuro.
– Não tenho uma ideia concreta para um próximo livro, só sei que gostaria de abordar um autor ou uma obra só. O processo da escrita proporciona grande prazer, mas é uma atividade muito solitária, além de que, uma vez no livro, não há mais como mudar, e isso é muito difícil para mim. É penoso ler um texto meu sem poder modificá-lo, porque o livro é um produto acabado, mas o pensamento não.
O amor pelo pensamento nasceu em Pedro quando ainda era adolescente e, um pouco cansado da escola, resolveu obter fora dela conhecimentos no qual tinha interesse. Adquiriu numa banca de jornal, a clássica coleção Os Pensadores, e se encantou pelos diálogos de Platão e pela dedicação de Sócrates a refletir a vida em sociedade, mesmo que aquilo lhe custasse a vida. Anos mais tarde, o professor da PUC-Rio Antônio Abranches, hoje falecido, organizou um ciclo de palestras chamado justamente Os Pensadores, e Pedro se inscreveu. Com carinho, ele relembra seus primeiros passos na Filosofia.
– Abranches chamou uma pessoa para falar de cada autor, e ele mesmo falou sobre um filósofo do século XX chamado Heidegger. Eu me lembro que o Heidegger ficou até em segundo plano, porque a palestra do Abranches, para mim, foi quase o sinônimo de pensamento; foi o momento em que percebi que aquilo, mais do que sobre filosofia, era sobre pensar. A partir daí eu o persegui em todos os lugares a que ele ia falar, e nós acabamos ficando amigos. Também pudera: ele viu aquele adolescente durante uns dois anos assistindo a todas as suas aulas, até que resolveu me chamar para tomar um chope seus amigos. Ele é a figura a quem eu atribuo o papel decisivo por eu ter feito filosofia.
Formado em Jornalismo pela PUC-Rio, Pedro não chegou a exercer a profissão. Ainda na graduação fez iniciação científica em Filosofia com Eduardo Jardim, que viria a ser o organizador da coleção em que seu livro A palavra modernista foi publicado. Após terminar o mestrado seguido de doutorado em Filosofia e, apesar da pouca idade, reconhece muito bem o caminho que está traçando.
– A epígrafe do meu primeiro livro é de Friedrich Schlegel, principal autor do Primeiro Romantismo Alemão, e diz assim: “O que se pode fazer enquanto filosofia e poesia estão separadas está feito, perfeito e acabado. Portanto é tempo de unificar as duas”. Essa poderia ser também a epígrafe de todos os meus projetos de pesquisa e de pensamento.