Miguel Pereira - Do Portal
04/07/2011Um romântico tardio
Por Miguel Pereira*
A mágica do último filme de Woody Allen consiste em nos levar para a livre imaginação de seu protagonista que não é outro senão ele mesmo. Gil, o nome do seu personagem central, é, na verdade, uma mistura de Orson Welles com o próprio Woody Allen. Essa brincadeira com os nomes e os personagens de sua predileção já indica o tipo de viagem bem humorada, satírica e irreverente que faz de Meia-Noite em Paris um filme ancorado nas suas referências cinematográficas e culturais. A inspiração talvez tenha vindo mesmo de Orson Welles, que, em 1955, realizou, na Europa, cinco pequenos filmes para a televisão, um deles, infelizmente perdido, sobre Viena, cinco anos depois de ter sido o ator principal de O terceiro homem, de Carol Reed, em 1949. O que fez em Paris tem esse clima das celebridades e do existencialismo em voga naquele momento. De certo modo, Wood Allen faz um percurso semelhante, dando, porém, o ar da sua graça por um estilo despojado e um olhar que oscila entre o deslumbramento e a ácida observação de situações e tipos característicos da vida contemporânea.
Como o filme se passa em tempos diferentes, o núcleo que conduz a narrativa, a família americana que aproveita a viagem de negócios para uma temporada em Paris, recebe um tratamento especialmente crítico. Não apenas o pai da noiva, um republicano radical, mas também o ex-colega acadêmico da mesma noiva fútil, são ridicularizados nas suas sandices. Já as viagens no tempo adquirem a magia do romantismo tardio que Woody Allen parece cultivar ao longo de sua obra e que tem em Rosa Púrpura do Cairo o seu mais notável exemplo das passagens existenciais.
Em Meia-Noite em Paris, Woody Allen constrói um relato cheio de admirações e ao mesmo tempo de desencantos. O tom dominante é o da desconstrução dos mitos. Não escapam os monstros sagrados da literatura e das artes em geral. Todos passam pelo crivo da ironia e da liberdade irreverente com que Allen os trata. Da figura de Ernest Hemingway, a Cole Porter, o casal Scott Fitzgerald, ou ainda Picasso e Bunuel, entre tantos outros, todos entram no filme dentro de uma atmosfera que os converte em ídolos caídos. É difícil admirar apenas as suas obras, sem considerar também os seus comportamentos existenciais. Neste sentido, os tempos se comprimem e as vanguardas e a Belle Epoque não se diferenciam dos dias de hoje. Só numa coisa se distanciam, o romantismo tardio e atávico que parece ser o mote mais presente no cinema de Woody Allen. Ao centrar seus filmes nas relações humanas, o cineasta oscila com elas e se coloca numa posição de desconfiança. Há sempre uma enganação entre as pessoas. É contra esse pragmatismo da vida que este último filme de Woody Allen parece se colocar.
O filme é não apenas hilariante, com momentos brilhantes e de uma inteligência singular, como exige do espectador uma certa iniciação para entender as inúmeras e deliciosas referências que devem ser melhor assimiladas, depois do filme, em pesquisas e diálogos entre os que o assistiram. É um filme que fica e ao qual se volta com grande prazer.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa