Evandro Lima Rodrigues - Do Portal
10/12/2010Platão, filósofo grego do século IV a. C., referência obrigatória no ensino ocidental, escreveu o “Mito da caverna”. Na alegoria criada pelo filósofo, pessoas presas num lugar escuro eram impossibilitadas de ver a luz – o conhecimento. Só com a liberdade poderiam enxergar a outra realidade. O mito é uma metáfora da condição humana perante o mundo, no que diz respeito à importância do conhecimento filosófico e à educação. E o que isso tem a ver com a história de uma carioca moradora da Barra da Tijuca, filha de um engenheiro e de uma advogada, dando os primeiros passos na carreira de atriz? Ela também saiu de sua caverna e conheceu a luz. Era o ano de 1997 quando Suzana Pires livrou-se da indecisão sobre o curso a seguir – jornalismo, história ou filosofia – e caminhou para os "pilotis barulhento”, o Solar Grandjean de Montigny (transformado em cenário de peça) e a “riqueza” da biblioteca da PUC-Rio: “Eu amei o astral que vi ali”.
Se para a estudante de filosofia a descoberta do novo ambiente refletiu, à primeira vista, um clima agradável, um reflexo maior viria, assim como na alegoria de Platão, da luz fundamental: o conhecimento.
– A PUC me deixou mais segura porque conhecimento é algo que ninguém tira, e a filosofia foi preenchendo a minha alma. Todos os textos que li aguçaram a minha curiosidade, a minha maneira de pensar o mundo. Tudo isso somou demais – conta Suzana.
O conhecimento, diz ela, favoreceu-lhe "rumos maiores". Suzana é um dos destaques da atual novela das seis da TV Globo, Araguaia. Num intervalo de gravação, vestida ainda como a viúva Janaína, a atriz recebeu a equipe do Portal PUC-Rio. Antes da entrevista, uma pausa para mudar de figurino. Não poderia ser fotografada com a roupa da novela. Descaracterizada da sensual viúva, é a Suzana roteirista – da personagem inspirada em professores, do CR maior que 8, dos trabalhos acadêmicos com estilo de romance – que nos conta essas e outras histórias.
Ela passeava pelo Planetário quando pensou em fazer uma visita ao campus da PUC. O contato com os pilotis foi decisivo para determinar a escolha da jovem dividida entre a universidade católica e outra: “Acabei fazendo o vestibular só pra PUC”. Quanto ao curso, já não restavam dúvidas: filosofia. Um interesse despertado no colégio Pedro II, com o professor Fernando Muniz, mas por um tempo seguido de perto por jornalismo e história.
– A filosofia me pegou. Como atriz e pesquisadora do teatro, era importantíssimo que conhecesse esse conteúdo – justifica.
Pela mão das professoras Irley Franco e Elsa Buadas, ainda hoje no Departamento de Filosofia, Suzana foi levada ao aprofundamento nos pensadores clássicos. A atriz ressalta o entusiasmo com que ambas contagiavam a turma nas disciplinas Teatro e Filosofia e Damaturgia Filosófica. Da sala de aula, o mergulho acadêmico ia parar em qualquer “salinha onde dava para estudar e ensaiar espetáculos”. Com outros alunos, a “sempre presente” Suzana, como a define Irley, formava um grupo para estudar adaptações filosóficas para o teatro. O resultado do trabalho extracurricular rendeu a montagem de duas peças: “Banquete”, de Platão, e uma adaptação do prólogo de “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche.
As escadarias do Solar Grandjean serviram de cenário à primeira adaptação (foto). Suzana fez um dos principais papéis, ao lado do ator convidado Leandro Hassun.
A segunda montagem rompeu o campus e ganhou o Planetário. Em comemoração ao centenário da morte de Nietzsche, no ano 2000, o grupo adaptou o prólogo de um dos seus principais livros. As professoras Irley e Elsa e a colega Cristina Maria Flores Ribas, hoje professora de pós-graduação da PUC, criaram o roteiro. A versátil Suzana assumiu a direção. A peça era apresentada às segundas-feiras, seguida de debate. Irley recorda que o esforço conjunto era recompensado pela participação do público:
– A fila dava volta no Planetário. Sob esse ponto de vista, foi um sucesso. Não posso dizer que tenha sido perfeita a montagem, porque nós estávamos começando a fazer teatro e filosofia, o que é uma coisa difícil.
Já acostumada com o cenário de “casa cheia” e com montagens profissionais, o trabalho "informal" ajudou Suzana a identificar a área filosófica preferida: “a que discutia a arte”. Para fazer coro aos questionamentos levantados em aula, ela contava com as “inquietações filosóficas” da amiga Cristina Maria. Segundo Suzana, a companheira de turma “faz a diferença onde está”. A admiração é recíproca. Para a professora de pós-graduação da PUC, o curso ajudou a provocar o espírito da atriz e, mais que questões filosóficas, impulsionou o desenvolvimento da profissional de “mão cheia”.
– Não é exatamente o trabalho especulativo do filósofo, que fica horas e horas em cima de um texto filosófico tentando penetrá-lo, que é capaz de absorvê-la (Suzana). O trabalho dela não é o do pensador, mas o do ator. Como atriz, ela é agente, precisa fazer, incorporar, representar, transfigurar-se – avalia Cristina Maria.
Para a Suzana, a PUC também era sinônimo de livros. A satisfação com o acervo da biblioteca seria perfeita não fosse, diz ela, aquele silêncio todo. “Gostava de ler nos pilotis. Eu consigo me concentrar melhor no barulho”, conta. Na efervescência do espaço aberto a conversas, ela fechava-se no seu ciclo particular, do qual faziam parte Ésquilo e seu Agamemnon, Aristóteles e sua Poética, assim como autores das tragédias gregas e do Romantismo alemão.
– A PUC foi importante para mim não só como atriz, mas principalmente como autora. Minha formação acadêmica contribuiu muito para quem quer escrever literatura. Acabou somando.
Os companheiros das “obras raras da biblioteca” estimularam-lhe outra aptidão, o texto literário. Autora do livro "Artista empreendedor" e de cinco peças, Suzana atribuiu a composição de vários personagens aos livros que a universidade lhe permitiu conhecer. Uma de suas criações mais marcantes nasceu, no entanto, da sala de aula.
– No monólogo “De perto ela não é normal”, a professora de filosofia Deise Maria Luganoti dos Santos foi inspirada em professores. Numa cena, ela fala o tempo todo e é impossível entender alguma coisa. Eu já me senti assim. Ficar olhando a professora falar e dizer: 'Gente o que é isso?'. A sátira, na verdade, é aos alunos, que, como a plateia, passam a sorrir da situação.
Foi do ambiente acadêmico que saiu também um dos trabalhos mais elogiados na trajetória universitária: uma versão sobre os deuses da mitologia grega. A proposta de uma disciplina eletiva de psicologia rendeu a aluna elogios em sala, com direito a exposição pública.
– Era para falar dos deuses. Eu roteirizei contando uma história. Lembro que eles tinham uma personalidade. Foi bem florido. E era também engraçado. A professora gostou tanto que mostrou para toda a turma – lembra Suzana.
A criativa aluna atribui o feito à "liberdade em criar sem compromisso com o rigor acadêmico". Mas a facilidade em escrever histórias representou também um problema durante o curso. Tinha dificuldade em deixar a linguagem romanceada. Os personagens insistiam em aparecer nos seus textos. Nesse desprendimento, a ajuda da professora Vera foi fundamental. Ela devolvia os trabalhos com observações sobre o texto.
– Lembro-me de Suzana como uma pessoa interessada naquilo que fazia. Sempre vinha conversar comigo depois da aula – recorda a professora.
A dedicação refletia-se no coeficiente de rendimento. Segundo Suzana, no último período o CR estava "maior que 8". Razoável para uma estudante que trabalhava para pagar o curso e, mais que tirar notas altas, desejava somar conhecimento à profissão.
– Não deu para ser exemplar, mas fui bastante questionadora. Meu entusiasmo e inquietação valeram a pena. Para isso, contribuiu um fator que acredito essencial numa universidade: professores que te tirem do conforto.
O conforto que a universidade não dá, Suzana foi buscar em casa. Morando sozinha desde a independência financeira, foi durante a monografia que voltou a contar com a ajuda dos pais. Abriu mão do trabalho para se dedicar exclusivamente ao estudo. Passou um ano debruçada sobre livros para explicar “A crítica de Platão à arte nos livros dois, três e dez da República”, o tema de sua pesquisa.
Com o fim da monografia – nota dez – e do ano, a "mordomia" também acabaria. Voltaria ao batente depois de aceitar um convite feito no dia do baile de formatura. Foi de Suzana o principal papel da montagem do diretor Rafael Ponsi da peça “Bodas de sangue”, de Garcia Lorca.
A busca pelo conhecimento fez a bacharel em filosofia voltar aos “pilotis barulhento” que a cativaram ao primeiro encontro. Suzana iniciou pós-graduação em arte e filosofia. Com carga de trabalho crescente, desistiu, o que foi lamentado tanto por ela quanto por Cristina Maria. Se tivesse continuado, teria encontrado a antiga colega, hoje professora. Cristina Maria mantém acesas lembranças como a da leitura da “Ilíada e Odisséia”, de Homero, em que uma característica peculiar da amiga fazia-se notar:
– A voz da Susana vai ficar para sempre na minha memória como uma das mais belas dessas leituras. Ela sabe ler com a verdade e a entonação perfeitas. Era um luxo poder ouvi-la.
Com habilidade proporcional, a atriz “leu” a batida da porta na sala da entrevista. "É meu diretor", identificou. "Vamos gravar?", chamou ele. E lá foi, entre desculpas e cumprimentos, novamente vestida de Janaína, a roteirista, atriz e bacharel em filosofia que fez da PUC um palco.
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