Miguel Pereira* - aplicativo
28/09/2015Motivado por uma sincera e vital inquietação de tornar mais conhecido e compreendido o simpático e afável cineasta chinês Jia Zhangke, o também cineasta Walter Salles nos brindou com um documentário original e afetuoso: Jia Zhangke, um homem de Fenyang. A originalidade resulta de um equilíbrio perfeito entre o homem e a obra. O ser e o fazer se imbricam de tal forma que fica difícil distinguir uma coisa da outra. É uma simbiose tão perfeita que Zhangke nos surge como um homem-arte comprometido com a vida que pulsa numa China em transformação e que afeta as comunidades particulares e a nação como um todo. No estrato mais íntimo, o documentário percorre os espaços vitais e suas paisagens em transformação junto com as memórias afetivas dos familiares, amigos e companheiros de trabalho. Nesse percurso, não é um perfil que nos é apresentado, mas um vivente que percorre os espaços e visita seus familiares e amigos. A intimidade revela momentos de comoção pessoal intensa, como quando Zhangke fala do pai e seus sentimentos para com ele. É um dos momentos mais belos do filme do Walter Salles. A câmera segura esse instante nos coloca diante da fragilidade do ser humano e a sua grandeza.
O documentário não revela apenas o personagem, mas também a obra e sua inovação criativa. A conjugação que Walter Salles empreende nesta direção constrói um estilo próprio de narrar que respeita o tempo e o espaço do outro. Ao mesmo tempo afirma uma identidade de escolhas pessoais das cenas que entram no documentário como se fossem a continuidade de um único processo fílmico. Walter Salles faz uma seleção das cenas do cineasta chinês, construindo uma narrativa que conjuga imaginação com documento. Vale lembrar duas cenas que apontam para o imaginário coletivo: a que fecha o filme, o equilibrista que atravessa num cabo de aço o espaço vazio e sem qualquer sistema de proteção; e a do edifício em ruínas que sobe para os céus como se fosse um foguete espacial. Os planos filmados por Salles são todos de aconchego e intimidades. O cineasta está à vontade e visivelmente emocionado atrás da câmera pelas imagens que imprime. Os trechos dos filmes de Jia Zhangke vão se constituindo assim como obra conjunta. É como se Walter Salles narrasse ao estilo de Zhangke e o assumisse como forma sua também. Essa unidade estilística se insere naturalmente na maneira de ser cineasta de Zhangke. A narrativa documental vai muito além da admiração e do prazer de estar junto. É como se Walter estivesse em busca de uma lição aplicada ao seu próprio trabalho.
Jia Zhangke, um homem de Fenyang inova na cinematografia documental por sua capacidade de ser com o outro, e não apenas revelá-lo ou fazer um julgamento sobre a sua obra e pensamento. Ao se misturar no mundo do outro, Walter Salles encurtou a distância entre ambos. Fez um filme de uma dupla e não apenas o seu. Jia Zhangke é tão personagem quanto o oculto Walter Salles. É como se fossem almas gêmeas.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.