Andressa Pessanha - aplicativo - Do Portal
03/06/2015Fornalizada há dois meses, a integração das Comissões da Verdade estaduais remanescentes (Rio, São Paulo, Minas, Pernambuco, Paraíba e Paraná) carrega objetivos mais audaciosos do que o cruzamento de dados e a facilitação de rotinas. Para o jornalista Álvaro Caldas, integrante da Comissão do Rio, o casamento de esforços aumenta a chance de se criar um órgão para acolherr as informações associadas às violações aos direitos humanos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985, colhidas por mais de dois anos de pesquisa. "Este organismo nacional não só concentraria os relatórios produzidos, mas continuaria a receber denúncias. Seria um mecanismo para valorizar o esclarecimento, a democracia", propõe Caldas, em entrevista ao Portal. Mesmo que tais violações tenham ocorrido há mais de 50 anos, argumenta o também professor de Comunicação da PUC-Rio, denunciá-las sem revanchsimo "é funtamental para que não se repitam". Caldas defende a continuidade das apurações, de forma integrada, para expandir e aprofundar o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), entregue à presidente Dilma Rousseff em dezembro do ano passado. “Muitas coisas de Minas interessam ao Rio, e vice-versa, pois muitos mineiros foram assassinados aqui e muita gente do Rio também militou em Minas”, exemplifica. Na conversa de pouco mais de 40 minutos, numa sala do prédio da OAB no Rio, onde se reúne a Comissão da Verdade estadual, o ex-militante torturado também lembrou a emoção de ter voltado ao 1º Batalhão da Polícia do Exército, onde fora torturado.
Portal PUC-Rio Digital: Qual o principal objetivo da integração entre as Comissões da Verdade estaduais remanescentes?
Álvaro Caldas: Depois da entrega do relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, em dezembro do ano passado, apenas algumas comissões estaduais ficaram em atividade, como a do Rio. Achamos, então, que o tema “verdade, memória e justiça” havia perdido visibilidade. É importante mostrar que as demandas ainda são enormes. Por isso, a CEV-Rio promoveu um encontro das comissões estaduais ainda em atividade, para fazer um balanço e integrar as pautas, pois podemos estar apurando uma coisa aqui que também está sendo apurada em São Paulo ou em Minas.
Portal: Neste encontro, em abril, foi sugerida a criação de um “mecanismo de monitoramento das recomendações”. Como funcionaria?
Caldas: Acabando as comissões, tudo o que foi produzido vai para onde? O que será feito disso? Qual é a continuidade que o Estado dará a esse trabalho? Por isso estamos pressionando para a criação de um organismo de âmbito nacional, talvez do Ministério da Justiça, para onde todos esses relatórios e denúncias sejam enviados. Pois muitas denúncias vão continuar existindo. Não estamos só nos preocupando com a violência durante a ditadura, mas também com a violência de hoje: perseguição a movimentos populares, prisão de manifestantes, entre outros casos.
Portal: As comissões também estudam mecanismos para facilitar o trânsito entre as informações apuradas e a Justiça?
Caldas: Não temos esse poder. O que nós produzimos, os casos que investigamos, vão para o Ministério Público, onde as famílias dos envolvidos em caso de tortura têm informação sobre a pesquisa. Cabe ao próprio Ministério abrir processos. Nosso trabalho é sintetizado pelo lema "memória, trabalho e justiça". Mas a justiça cabe ao Ministério Público do Estado.
Portal: Quais prioridades apontadas no relatório da Comissão da Verdade do Rio divulgado na reunião de abril?
Caldas: As questões que continuam pendentes. Apesar de o relatório da Comissão Nacional ser muito minucioso, dando nomes a mais de 300 torturadores, mortos, desaparecidos, inclusive militares e presidentes da República que tiveram responsabilidade nesses atos de violência, esse trabalho é um trabalho muito vasto. Há muito a ser feito em alguns estados. Por exemplo, nós do Rio estamos mais voltados às violências ocorridas aqui, e ainda temos muita coisa para apurar. O Rio foi um centro de repressão política durante a ditadura, dada à importância do estado, das organizações sindicais e políticas que estavam aqui, ou seja, o Rio sempre teve um papel especial. Então, aqui é muito grande o nosso trabalho. É uma pauta inesgotável. Por isso, um das nossas pretensões é que tenha continuidade, depois que a nossa comissão e as demais encerrem as atividades.
Portal: Dos casos já apurados pela Comissão do Rio, quais se mostram emblemáticos para reforçar a importância da continuação dos trabalhos?
Caldas: Contribuímos para solucionar um caso emblemático: Rubens Paiva, o deputado federal que foi preso, torturado e morto na Rua Barão de Mesquita, no Quartel do 1º Batalhão da Polícia do Exército, onde eu também fui preso e torturado. O caso do jornalista Mário Alves, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), também foi investigado por nós. Fizemos até uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), convocando testemunhas da morte e torturadores que estavam lá para depor. Um exemplo de caso em aberto é o de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu Angel. E há outras centenas de casos menos conhecidos, como a Chacina de Quintino e a Casa da Morte de Petrópolis, cuja única sobrevivente foi Inês Etienne Romeu (falecida em abril).
Portal: Mesmo sob outras formas, violações de direitos humanos, não raramente associadas a desigualdade e violência, persistem no país, na sociedade. Como a comissão pode contribuir para dirimi-los?
Caldas: A gente trabalha com intuito de fazer uma interligação com o passado. Mostrar que a história não deve se repetir, que os crimes contra os direitos humanos devem ser denunciados. Cansamos de ver hoje violência no morro, invasão, morte de criança em favelas, entre outras coisas. Então, o nosso trabalho também busca chamar a atenção para isso. Claro que não podemos investigar e apurar do mesmo jeito que fazemos com os fatos ocorridos lá atrás, na ditadura, porque esta, por lei, é a nossa obrigação.
Portal: Para contribuir com as apurações, o senhor visitou o local onde ficou preso e foi torturado. Como foi essa volta ao passado?
Caldas: Com a minha história, de ex-militante e ex-preso, conheço muito dessa área. Sou um sobrevivente. Isso ajuda no trabalho. Muitos dos meus colegas de faculdade, militantes e jornalistas, foram assassinados lá. Então, quando fomos visitar o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca, principal centro de tortura do Rio, pude rever aquilo de novo. Mas tive de aguentar, porque era uma espécie de guia. Foi uma sensação muito forte, me senti meio desorientado. Mas consegui recapitular tudo.
Portal: Com o fim da Comissão Nacional, como fica o suporte legal e político da Comissão do Rio?
Caldas: A comissão é um organismo criado por lei e aprovado na Assembleia Legislativa. Estamos ligados à Secretaria estadual de Direitos Humanos. Por meio dela, conseguimos algum subsídio para o nosso funcionamento, com muita dificuldade.
Portal: Como é a estrutura da CEV-Rio?
Caldas: O (Sérgio) Cabral, quando governador, nos nomeou a partir da história de cada membro em relação ao histórico que tivemos com a época da ditadura e a violação dos direitos humanos. A equipe de trabalho é pequena, funcionamos com pouquíssimos recursos. Você vê que trabalhamos num prédio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Se não fosse o presidente da CEV-Rio, Wadih Damous, que é ex-presidente da OAB, a gente não teria nem lugar para funcionar. Temos uma pequena equipe de assessores, muito boa por sinal, e isso ajuda muito porque há muita pesquisa em arquivos, visitas aos locais de tortura, entrevistas com testemunhas e vítimas, entre outras funções. Nós, os membros, recebemos um salário simbólico, assim como o grupo de assessores.
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