Miguel Pereira* - aplicativo
21/10/2013Corda bamba, de Eduardo Goldenstein, narra as aventuras de Maria, uma menina equilibrista, vivendo o rito da passagem da infância para a adolescência e o esquecimento do seu drama existencial. O filme tem por base o livro de Lygia Bojunga, autora premiada da nossa literatura infantil. Não é uma simples transposição de um texto literário. Cria o espaço cênico a partir de uma interpretação que se abre a novos significados. Um exemplo claro disso é a interessantíssima sequência da velha contadora de histórias onde o sentimento infantil está inserido numa moral mais ampla. Representa uma espécie de metáfora da voracidade dos sistemas de poder e suas intrincadas artimanhas.
O filme usa de procedimentos narrativos que conduzem o espectador para lugares pouco usuais nas histórias infantis. As portas e frestas, assim como as janelas e corredores, além do circo, evidentemente, se abrem para um contexto dramático do íntimo e do pessoal da personagem central. Essa é a mesma forma que dá sentido ao final do filme, expresso na bela carta de Maria para a mulher barbada, sua companheira do circo.
O filme começa no picadeiro, brincando com a morte. Segue com as lembranças de sua protagonista, num ambiente que mistura o realismo com o onírico. E, por fim, apresenta o mundo infantil como algo em processo às idades do homem. Corda bamba insere o tempo vital num processo em desenvolvimento e marca certas motivações mais íntimas que geralmente não aparecem nas produções infantis. As relações entre o mundo adulto e o infantil são abordadas sem antagonismos simplistas, mas como espaços complementares. Faz uma ácida critica aos comportamentos equivocados e aos procedimentos educativos errôneos. Não busca uma moral fácil ou através de um mero encantamento fantasioso. Sua percepção da infância evita os preconceitos e foge dos lugares comuns. Deste ponto de vista, é um mergulho nesse momento da vida em que aprender e sentir o mundo são percepções complexas e de difícil expressão poética. Corda bamba busca, com muita sinceridade, entender o mundo da criança como um lugar próprio que deve ser respeitado por todos.
É um filme que tem um lugar especial na cinematografia brasileira. Raro exemplo do cinema infanto-juvenil realizado com habilidade e talento. Tem as características de uma obra visceral. Eduardo Goldenstein deixa clara a marca da sua paixão por esse trabalho. Cada cena é iluminada pelo cuidado artesanal e por uma anima pulsante. Atinge seus objetivos de dialogar com o público. No início, o espectador pensa já ter visto algumas daquelas imagens. Aos poucos, acaba seduzido pela forma de apresentação e pelo ritmo, sempre surpreendente, que vai agenciando a sua atenção. Sem se dar conta, a narrativa o encanta e seduz.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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