Miguel Pereira* - aplicativo
11/10/2013Fatiado ou inteiro, o romance épico O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, já foi objeto de desejo de muitos cineastas, artistas e produtores de televisão, e a todos ele serviu com generosidade. Mal ou bem, um pedaço desse espírito pioneiro de constituição da identidade brasileira está presente nas diversas adaptações que foram realizadas, tal o poder da prosa poética de Veríssimo. Seja nos filmes Ana Terra, de Durval Garcia, e Um certo Capitão Rodrigo, de Anselmo Duarte, ambos, curiosamente, de 1971, ou nas novelas e minisséries incluindo a mais bem-sucedida, de 25 capítulos, dirigida por Paulo José para a TV Globo, em 1985, visões particulares de um livro clássico se fizeram imagens e sons que, de algum modo, imprimiram um certo ethos que compõe as diferentes e ricas culturas da nacionalidade brasileira.
Mesmo que esses produtos não tenham alcançado o apuro artístico desejado, e isto é a pura verdade, acabaram por construir um painel da cultura sulista, pouco conhecida no resto do país. Assim, o novo O tempo e o vento, agora dirigido por Jayme Monjardim, busca uma excelência ainda não alcançada. Nenhuma dúvida de que seu trabalho é de fôlego, ambicioso e esmerado na forma. Utiliza-se de procedimentos narrativos ousados, a partir de um roteiro ancorado num narrador central: a memória da personagem Bibiana. Esse fio condutor pretende dar conta daquilo que outras adaptações não conseguiram. Do ponto de vista do cinema, essa licença poética funciona. Como minissérie, vamos ver se dá certo, uma vez que há o propósito de a TV Globo exibi-la no início do próximo ano.
Sem dúvida, como em Euclides da Cunha, a terra e suas condições de tempo e espaço são a paisagem que abriga ou expele o ser humano em suas lutas para sobrevier. Se os sertões nordestinos são domados e explorados por forças antagônicas, nas planícies e planaltos sulinos ocorre a mesma coisa. Esse ambiente físico é a moldura poética dessa narração, traduzida em imagens inspiradas e belas. É também o espaço da aventura humana com todas as suas contradições e conflitos.
Da destruição dos Sete Povos das Missões, para alguns a única experiência utópica em toda a história mundial, realizada pelos jesuítas nas terras fronteiriças do Sul do Brasil, à constituição das primeiras vilas e cidades e aos embates entre monarquistas e republicanos, o filme de Monjardim narra a história de um amor absoluto e delirante. Adotou, por isso, a intromissão de seu personagem central, o capitão Rodrigo, como uma espécie de testemunha e ao mesmo tempo protagonista dessa história. Essa mediação pode parecer estranha, em função das idades dos personagens, mas funciona muito bem quando se entende a grandeza de amor que os uniu e a projeção narrativa e imaginativa de Bibiana. A este eixo organizador, o filme de Monjardim desfila um pouco da nossa formação histórica, com reflexões sobre os modelos de vida e ação do homem sobre a terra. Nem sempre essa correlação funciona bem. Certas frases parecem apenas recados, em cenas um tanto artificiais, como em alguns diálogos, por exemplo, de Rodrigo com o padre.
O filme é bem narrado e apresenta uma fatura técnica e estilística que funciona no seu conjunto, com evidente destaque para a primorosa fotografia de Afonso Beato; um elenco bem orquestrado, com um belíssimo desempenho de Fernanda Montenegro; e uma direção segura de Jayme Monjardim.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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