A cineasta alemã Margarethe von Trotta vem assumindo o compromisso de nos fazer pensar, com seus filmes, sobre a trajetória de algumas mulheres que marcaram a vida cultural, social e política da humanidade. Suas escolhas estão também associadas a propostas estéticas que buscam inovar e trazer questões que ultrapassam o tempo em que os relatos estão situados. Essa atualização das vidas é o substrato de sua conduta como artista. Fala para os dias de hoje e propõe reflexões que tocam os nossos modos de viver e pensar, a partir da investigação sobre um outro lado da história que nos afeta. Não são, necessariamente, personagens célebres, mas mulheres que, de uma maneira ou de outra, definem comportamentos e atitudes exemplares. Das irmãs de Anos de chumbo, de 1981, a Rosa Luxemburg, de 1986, e até Hannah Arendt, ora em cartaz, o que está em jogo, nas narrativas de Margarethe von Trotta, é a mistura da racionalidade com os afetos da vida cotidiana. Essa característica ganha especial relevo neste seu último filme.
O que vemos na tela não é uma biografia da famosa filósofa. Focaliza apenas um pequeno período da sua vida, com curtas inserções do passado, em especial da sua relação com Martin Heidegger. Na verdade, o momento existencial abordado é o que corresponde à polêmica causada por seus artigos publicados pela revista The New Yorker entre 16 de fevereiro e 16 de março de 1963, e na forma de livro, com o título Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, alguns meses depois. As discussões sobre a natureza do julgamento do funcionário orgânico do regime nazista, Adolf Eichmann, estão presentes em diversos momentos do filme, depois que Hannah Arendt volta de Jerusalém, aonde fora como analista do episódio para a publicação norte-americana.
Embora seja o elemento central da narrativa, o filme de Von Trotta conjuga muito bem esse espaço com o ambiente intelectual e os relacionamentos afetivos que cercam sua personagem. Mas, acima de tudo, é o pensamento filosófico de Arendt que sustenta o filme, visto sob o prisma do contemporâneo. Nada mais atual do que a sua formulação da banalidade do mal, conceito originado no pensamento de Kant e sua expressão “mal radical”, assim como em Santo Agostinho. A cineasta nos envolve nessa trama e nos convida à compreensão do pensamento, e não das razões de uma simples trama que opõe judeus ao nazismo. Basta ler, com cuidado e atenção, os textos de Hannah Arendt para se perceber que a questão que ela discute vai muito além do episódio histórico e seu personagem. A aula final, destacada pelo filme como uma espécie resposta a seus críticos, é bastante clara com relação às suas intenções e propósitos. E, nisto, Margarethe von Trotta foi inteiramente fiel ao pensamento da filósofa.
O filme impacta por sua firmeza conceitual e uma condução precisa de todas as formas narrativas. Magníficas interpretações, com absoluto destaque para Barbara Sukowa, uma fotografia excepcional, assim como a música sutil e uma montagem reflexiva, compõem um conjunto harmonioso e belo que nos faz pensar e sentir a pulsação da vida.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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