Saudado como um dos melhores filmes do ano passado na França, Inglaterra e Portugal, Tabu, de Miguel Gomes, chega às nossas telas com esse embalo favorável. Sem dúvida, é uma obra sutil, construída com um apuro estilístico particular. Em seu trabalho anterior, Aquele querido mês de agosto, o cineasta português pontuava sua narrativa com um toque de invenção bastante original. Era o Portugal profundo que emergia nas imagens e sons. Neste novo filme, é a visão da colônia africana que se impõe na quase totalidade do relato. Estruturado com um prólogo, duas partes centrais – “paraíso perdido” e “paraíso” – e um epílogo, Miguel Gomes, com muita habilidade, constrói uma fascinante fábula moral, sem cair na melancolia de um passado mórbido. Na realidade, traz para o presente os conflitos e paixões que atormentavam a vida cotidiana colonial e ainda parecem persistir na sociedade portuguesa contemporânea. O trio de mulheres e seus agregados que vivem na Lisboa atual são reflexos de um mesmo processo que antecedeu a descolonização. É como se o tempo fosse congelado e o passado voltasse à tona com a sua configuração original. Assim, entre o paraíso perdido, configurado na atualidade, e o paraíso vivido, o da colonização, abre-se uma imensa zona de sombras, eclipsadas pela própria história portuguesa.
As três mulheres da primeira parte do filme vivem a crise coletiva atual e a do passado pessoal que ainda ecoa nas suas vidas. Numa espécie de ajuste dos tempos, o filme ora contempla o paraíso da segunda parte como um idílio perdido, ora mostra os seus equívocos e a insensatez de uma vida vista apenas como desfrute e sem a consciência de um mundo em transformação. Traz também à tona alguns efeitos da cultura que estava ditando as regras do comportamento juvenil das décadas de 60 e 70. Músicas, elementos de consumo, discussões políticas, culturais e religiosas que vigoravam nas metrópoles europeias aparecem, no filme, como contraponto à mentalidade colonialista e às paixões amorosas que afloram num arranjo permissivo da cultura branca em uma sociedade de maioria negra que tudo observa com espanto.
É nesse centro narrativo que Tabu se torna um conto moral e lança alguma luz sobre esse período histórico que ainda permanece na penumbra para muitos portugueses. O filme levanta apenas algumas poucas indicações de que há muito ainda a ser desvendado. São histórias pessoais transformadas em ação e reflexão sobre uma identidade que está à deriva. Seus personagens vivem um transe psicossocial que conjuga o presente com o passado. As intimidades, as crenças, as angústias e as revelações acabam funcionando como uma espécie de purgação de uma colonização interior e subjetiva.
As imagens em preto e branco, assim como o sentido contemplativo dos espaços urbanos e rurais, dão ao filme de Miguel Gomes um atrativo a mais na sedução do espectador para aderir à narrativa. As interpretações e o rigor da composição das cenas colaboram para o bom resultado do trabalho.
*Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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