Miguel Pereira*
25/06/2013Lucia Murat é uma cineasta que não abre mão de seus princípios e objetivos estéticos. Faz um cinema provocativo e muito próximo de sua própria trajetória existencial. Embora não pretenda fazer um ajuste de contas com a sua história pessoal, é ela que a move. Todos os seus filmes têm sempre algo que vem do seu íntimo. É um olhar de dentro, de uma alma inquieta. Espelham vivências próximas de si. Metaforizando ou falando de forma direta, Lucia Murat parece estar exorcizando os seus demônios. Ao mesmo tempo nos diz que a vida é um dom valioso e vale a pena lutar por ela. Não é por acaso que a personagem Irene, de A memória que me contam, é uma cineasta. A atriz Irene Ravache, que neste filme faz esse papel, já havia trabalhado com Murat em Que bom te ver viva, um precioso e inovador filme que ganhou, em 1989, menção honrosa do prêmio Margarida de Prata da CNBB. Nos dois, a ligação e o sentido das cenas são conduzidos por uma personagem-chave, interpretada, com maestria, pela mesma Irene Ravache.
A memória que me contam navega entre essas duas personagens centrais: a própria Lúcia, no filme Irene, vivida por Irene Ravache, e sua amiga Vera Silvia Magalhães, representada por Ana, interpretada pela excelente Simone Spoladore. Vera como Lúcia lutaram contra a ditadura militar, foram presas e barbaramente torturadas. Se Ana é a memória de Vera quando jovem, apresentada sem envelhecer e usando as roupas do passado, a Irene é a Lúcia de hoje, com seu temperamento suave e uma sociabilidade que preza o acordo e os ideais que restam no fundo do seu coração. A narrativa tem como elemento gerador as antessalas do hospital em que Ana está internada e com poucas chances de sobrevivência.
O filme se constrói em torno dessa ação dramática e vai articulando outras histórias, assim como personagens que dialogam com a realidade contemporânea. Não se trata apenas de uma denúncia das atrocidades que sofreram e as dores que ainda carregam em si, mas as vivências atuais à luz de uma revisão do passado, sem revanchismos ou visões anacrônicas. É uma espécie de autorreflexão de uma geração idealista e utópica que, na atualidade, exerce algum tipo de poder na vida social e política do Brasil. Sob esse ponto de vista, o filme da Lúcia Murat nos interpela e questiona enquanto cidadãos sobre a responsabilidade que nos cabe em relação ao próprio futuro da nação. Não isola os sobreviventes. Insere-os na vida e nas relações de um contexto novo, bem diferente dos tempos da ditadura militar e de suas ações contra ela.
Inovador e sofisticado, A memória que me contam é uma viagem singular que conduz o espectador por espaços reveladores das fragilidades e dos atos radicais do ser humano. É também uma visão empenhada na discussão de questões que atravessam a vida brasileira e uma homenagem aos que lutaram, acertada ou equivocadamente, por um mundo melhor.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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