Miguel Pereira* - Do Portal
26/03/2013Considerada por Dostoievski “uma obra de arte perfeita”, o romance Anna Karenina, de seu conterrâneo Leon Tolstoi, foi adaptado para o cinema inúmeras vezes. Talvez a mais celebrada seja a realizada por Clarence Brown, de 1935, com Greta Garbo, num desempenho considerado soberbo. Algumas versões russas se juntam a um conjunto de adaptações para cinema e televisão que somam mais de 13 obras a partir do conteúdo o livro de Leon Tolstoi. A mais recente é de Joe Wright, um habilidoso cineasta inglês, habituado a contar histórias sobre os relacionamentos humanos. Sua leitura cinematográfica de Tolstoi contém os elementos da trama original, mas lhe escapa o espírito mais profundo da observação fina dos sentimentos e da intimidade dos personagens criados pela poética do escritor russo. Foi ousado ao construir um espaço cênico em que o teatro e seus diferentes palcos abrigam os dramas da sociedade russa e seu contexto humano. Com isso, controlou a captação precisa das imagens, mas não adensou os percalços da existência, aflorando apenas a pele e a visualidade.
Já do ponto de vista da narrativa, há um descompasso entre os diversos blocos que dão sentido ao drama. A boa ideia da caricatura crítica, presente em algumas sequências, como a da repartição pública, não tem seguimento. Fica como um quadro cênico que apenas diz da burocracia o que ela é. Outros momentos que explicitam a cultura russa interiorana ficam perdidos, sem atingir o sentimento místico dessa população extremamente religiosa. É o caso, por exemplo, dos episódios ambientados no campo e suas conotações culturais. Fica-se com a impressão de que Joe Wright contemplou mais do que investigou essa alma russa profunda. Claro, sabe compor a imagem com rigor. Mas não valoriza o afeto que dela deve exalar. Fica mais na moldura do que na pesquisa das motivações que dão alma à vida.
Há um evidente desequilíbrio entre os dois casais centrais da narrativa, ficando a personagem do título com o tom menor, assim como a do seu jovem amante que é francamente pueril. Já o casal composto pelo irmão de Anna Karenina e sua quase ex-mulher ganha mais densidade, não apenas pelos intérpretes excelentes, mas pelo seu lugar privilegiado na cena. Na verdade, Joe Wright não dosou bem a sua mão dramática nos diferentes conjuntos narrativos que acabam não construindo uma harmonia interna que o relato de Tolstoi tão bem teceu. Embora todos muito interessantes, por suas qualidades técnicas evidentes, imprimem à narração um certo desequilíbrio que compromete esta adaptação de uma das mais importantes obras primas da literatura universal.
O Oscar de melhor figurino deste ano só confirma que a estética de Joe Wright se aplica mais ao revestimento do que ao sentimento do universo subjetivo primorosamente construído por Tolstoi. Ainda assim, a ousadia da mistura das linguagens que passa pelo teatro, pela caricatura, pelo musical, enfim, pelos costumes de uma época, merece a ida ao cinema.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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