Miguel Pereira* - Do Portal
27/11/2012A globalização do cinema tem suas vantagens. Não há mais histórias que sejam apenas locais. Os personagens de uma cultura misturam-se aos de outros espaços geográficos e parecem fazer parte de um mesmo e grande enredo. O cineasta iraniano Abbas Kiarostami, um estrangeiro por natureza, depois que foi obrigado a deixar o seu país, vem adotando o procedimento de entrelaçar as nacionalidades e culturas. Seus filmes mais recentes têm essa característica. Basta lembrar, por exemplo, Cópia fiel (2010) e Tickets (2005). Mas, fazer um filme japonês no Japão parece soar como uma ousadia. E, Um alguém apaixonado, seu mais recente trabalho, não deixa de ser isso. Não quer dizer, porém, que se adaptou ao modo nipônico. Mantém o estilo inconfundível das suas obras-primas iniciais, como Através das oliveiras, de 1994, e Gosto de cereja, de 1997. O tempo alargado e reflexivo, a economia dos planos e a contemplação das imagens que emolduram os dramas narrados estão vivos neste seu trabalho primoroso e instigante.
A contemporaneidade, um dos mitos da cultura japonesa: o mundo das gueixas, ou a história de uma gueixa pós-moderna. Parece uma ofensa a essa cultura milenar. No entanto, é uma releitura que se insere entre o velho e o novo, literalmente representados nos personagens centrais: a jovem garota de programa e velho professor carente de afeto. Entre os dois, um noivo destemperado que conforma o melodrama que sempre acompanha os sublimes contos que o cinema japonês soube criar com maestria. É só lembrar Contos da lua vaga, ou Geisha, ambos de 1953, do mestre Kenji Mizoguchi, para se ter uma ideia dessa produção que acentua que a ousadia consiste exatamente em transpor para a os traços de uma tradição milenar.
Um alguém apaixonado é uma incursão no ambiente pós-moderno de uma Tóquio ocidentalizada em sua arquitetura e na vida cotidiana. Por dentro desse ambiente físico, pulsam as paixões e os sentimentos que não se apagam da experiência humana em qualquer circunstância da nossa existência. O melodrama acompanha as fabulações que nos fazem sentir o mundo. É desse lugar de expressão que Abbas Kiarostami parece nos dizer que ainda vale o respeito às pessoas e à vida, apesar dos turbilhões sentimentais que nos alimentam.
Algumas sequências do filme sublinham o espaço misturado ao sentimento. É o caso, por exemplo, do táxi girando em torno da praça da estação em que a neta chora o não encontro com a avó. Há ainda as que apontam para uma forma de contemplação do outro ou para a interferência, nem sempre eficaz, do sábio conciliador. Mas, para qualquer parte do filme que se olhe, haverá sempre algo que nos inquieta. Essa é marca que identifica o cinema de Abbs Kiarostami. Por isso, em seus filmes, os deslocamentos são constantes, e, metaforicamente, reveladores do que somos no interior de nós mesmos.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa