Miguel Pereira* - Do Portal
22/10/2012Quem está habituado a assistir aos filmes de Ken Loach pode ficar surpreendido diante de Rota Irlandesa. Em nada parece se diferenciar dos filmes do cinema americano de guerra ou de investigações sobre ações suspeitas. Parece seguir as pistas comuns, sem acrescentar um molho especial à receita. Essa é apenas a primeira impressão. Na verdade, o filme de Loach, lembra, às vezes, certas abordagens presentes no cinema de Martin Scorsese. Penetra no âmago do problema, não por uma mera ação investigativa, mas por uma espécie de compulsão existencial.
A determinação do sujeito que empreende essa busca é visceral. É como se não pudesse se apartar dela. É algo como um destino colado nesse indivíduo. Não se explica, nem precisa. O que está em volta é de tal modo sórdido que a ação vingadora é pouco diante do seu inútil. E o símbolo maior desse contexto é o que abre e fecha o filme.
As águas das imagens iniciais e as mesmas águas do final simbolizam esse lugar fluído de um mundo à deriva, onde não há lugar para ser em si. Apenas para ter. E a alma do mercenário é exatamente essa. Ter em vez de ser. Ao menos esse mercenário, a serviço das guerras contemporâneas, em que a do Iraque é apenas uma entre tantas outras, é uma espécie de vingador com causa. Esta é a questão central de Rota Irlandesa, tratada com as cores da trajetória de um personagem-vítima, e, em parte, narrada por ele mesmo, embora contemple também outros pontos de vista.
A obsessão e o cuidado corpóreo do personagem central se apresentam, no filme, como rituais iniciáticos do processo de uma suspeita sobre a causa mortis do companheiro de guerra que ele atraiu para as tarefas mercenárias. O sentimento de culpa e a busca de uma verdade possível são os móveis da dramaturgia que Ken Loach vai pontuando com suas ácidas denúncias sobre as guerras dos tempos atuais.
Pelos sinais contrários, o cineasta inglês nos leva a entender melhor esse mercado absurdo dos conflitos que nos cercam em todos os recantos do mundo. Por mais que estejamos informados sobre a guerra suja que corre pelas estradas de uma economia espúria, é sempre salutar vermos uma obra cinematográfica que nos conduz, pela emoção e impacto espiritual, na aversão por esse mundo de negócios imorais.
Parte importante da narrativa se beneficia da comunicação contemporânea e torna as ações dramáticas mais leves e compreensíveis sem apelar para os efeitos especiais que as telas dos computadores oferecem. No caso do filme de Ken Loach, a comunicação midiática simplifica a narração e economiza a produção. É um uso consistente com a ação dramática e não apenas um ornamento de fascínio da imagem. Essa economia narrativa acaba colaborando para o envolvimento do espectador nos elementos centrais da trama, sem deixar de propor questões que precisamos considerar para nos sentirmos participantes críticos do mundo em que vivemos.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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