Miguel Pereira* - Do Portal
13/08/2012Esperado como uma obra de empenho pessoal, Na estrada, de Walter Salles, acabou tendo uma recepção que se dividiu entre pouco entusiasmo e certas críticas mais agressivas. Na origem, duas atitudes parecem comandar essa divisão. De um lado, o livro que originou o filme é considerado uma espécie de emblema de um tipo de iniciação à vida adulta que teria como foco a plena liberdade de ser. Numa América do pós-guerra, em que as feridas de suas consequências ainda estavam muito doloridas, o transe existencial se impõe como uma busca dos desejos e da construção do aqui e agora. Ameaças de novos conflitos mundiais ainda continuavam em cena. O católico Jack Kerouac escreveu, ao longo de quase dez anos, esse livro testemunho de uma época. Mesmo que, na letra, esse contexto esteja encoberto pelas ações e atitudes dos personagens, no espírito do livro de Kerouac, ele não só está presente como faz parte da narrativa. Querer encontrar, portanto, uma fidelidade ao livro, não é necessariamente um critério confiável de avaliação do filme. É uma desqualificação preguiçosa e rápida demais da forma cinematográfica adotada pelo cineasta.
A outra atitude diz respeito às marcas de autoria num filme em que a produção obedece ao rolo compressor hollywoodiano, ao qual os cineastas brasileiros não estão habituados. Esse é mais um dado cultural do que outra coisa. Fazer cinema é sempre uma forma estrutural que muda pouco em qualquer sistema de produção que seja adotado. As experiências mais radicais que se observam ao longo da história do cinema não foram capazes de mudar o fazer cinematográfico, até porque o próprio sistema as incorpora quando as considera positivas para a expressão da sua linguagem.
O filme de Walter Salles é acima de tudo uma obra digna, fiel e esteticamente bem construída e moderna. Espelha a liberdade que está no livro de modo preciso e sem julgamentos moralistas. Talvez, por isso, haja um rigor excessivo nas análises feitas, pois, as cenas criadas para o filme, embora dentro do espírito da época, nos levam a pensar nos dias de hoje. Não é muito diferente daquilo que assistimos na atual vida social e nos shows da mídia. Portanto, mesmo que referenciado a um tempo específico, o trabalho de Walter Salles nos fala de hoje. Este é, sem dúvida alguma, um mérito de autor e não apenas de um burocrata que adapta uma obra potente como é On the Road, de Jack Kerouac. Discutíveis são certamente as escolhas do roteiro, tanto do ponto de vista da adaptação quanto do modo de narrar. Mas, a direção é limpa e chega a um lugar reflexivo. Sua elegância é indiscutível e as escolhas musicais indicam momentos de obrigatória pausa reflexiva. Cito apenas um único momento em que Bach sublinha a cena. Mas, há outros.
Portanto, Na estrada é um filme que merece a atenção de um público que vê no cinema mais um momento de indagação e menos uma emoção fácil e imediatista. Há algo nele que incomoda. Essa é a sua qualidade principal, perfeitamente afinada com o espírito do original em que foi baseado o filme.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa