Miguel Pereira * - Do Portal
17/04/2012Nanni Moretti é um cineasta inquieto que se expressa, na maioria de seus filmes, através da comédia e do bom humor. Suas narrativas extrapolam as histórias comuns, criando zonas de sutileza que satirizam as situações vividas pelos personagens. Inventou um estilo próprio para abordar questões complexas e controversas, sempre com emoção e ousadia. Seu último filme, "Habemus Papam", não foge à regra. O ponto de partida é uma indagação sobre a vacância pontifícia vista, a seu modo, por dentro dos acontecimentos, fictícios, evidentemente. Morre um Papa, elege-se outro. E se o escolhido aceita, e logo aseguir volta atrás? Esta é a situação imaginada por Moretti, como hipótese. Não tem qualquer fundamento real, nem pretende se entrar nos meandros mais profundos de um aeleição papal. Faz uma espécie de crônica bem humorada dessa improvável história.
Nenhum princípio religioso é maculado, nem o Vaticano é desrespeitado. Os rituais se fundamentam numa certa imaginação do que é um conclave. Não se pode dizer que seguem a verdade. Aliás, o próprio Moretti disse que o filme era uma visão pessoal do Vaticano. Na verdade, o cineasta buscou marcar sua posição elaborando um personagem que se sente incapaz de governar a Igreja, depois da euforia da eleição. Entra em crise e busca um espaço de reflexão para finalmente se deparar com uma solução. Essa é a tênue linha de história narrada pelo filme.
Entre a saída e o retorno ao Vaticano, Moretti constrói um personagem multifacetado e de forte impregnação, cuja credibilidade se deve à extraordinária interpretação de Michel Piccoli. Todo esse percurso não passa de uma farsa montada pelo porta-voz do Vaticano. A estratégia de esconder o que se passa nas salas fechadas permite ao cineasta brincar com as situações, criando um teatro em que os cardeais viram inocentes jogadores de cartas e vôlei. Essa infantilização do colégio cardinalício tem sua dose de ironia e liberdade, sem, porém, afetar a dignidade dos prelados. É uma brincadeira, entre outras, que Moretti faz, como com a psicanálise, por exemplo. É do seu estilo narrativo. Não tem outras intenções. O que escapa à sátira é a figura do Pontífice eleito e não empossado que vive um drama pessoal e profundo. Seu gesto de se ausentar e pedir um tempo para refletir é humanamente defensável, embora ritualmente fora de sentido. Mas, não se pode negar ao filme suas qualidades cinematográficas. Tem um ritmo ágil e dosado, além de interpretações convincentes e uma ótima direção de arte que conjuga bem os cenários com imagens em locações.
* Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
"Chico – Artista brasileiro": um filme pleno e encantador
Quartinho dos fundos sob um olhar crítico e bem-humorado
'Jia Zhangke': um documentário original e afetuoso
Irmã Dulce: drama exemplar de uma vida santa, reta e generosa