Miguel Pereira* - Do Portal
09/09/2011Narrado em dois tempos misturados, o documentário Diário de uma busca, de Flávia Castro, é uma auto-biografia provisória que tem como motivação a tentativa de esclarecer a morte do pai, Celso Castro, um exilado político e ex-militante da esquerda durante a ditadura militar. Tempos e espaços do filme não se ordenam numa lógica formal das narrativas clássicas. Buscam uma memória aberta e re-elaborada em diferentes momentos. Não é descritiva, mas reconstruída nos lugares de memória possíveis, como diria Pierre Nora, ao classificar e estudar os atos dessa importante faculdade do nosso ser, enquanto construtora do sentido das nossas histórias. Assim, Flávia abre seu filme com a avó ao piano para melhor se situar na intimidade de um assunto complicado e difícil para toda a família, expresso muito claramente pelo irmão João Paulo Castro. No entanto, o caminho vai se fazendo através do instrumento simples e eficiente das muitas cartas que o pai escreveu. É importante dizer que essas cartas são muito bem escritas e têm ótimas interpretações de seus leitores no filme. Aliás, a primeira impressão que se tem de Celso é a de um voraz leitor, observação feita por sua mãe logo no início do filme, e, certamente por isso, também um bom escriba. Suas frases têm ritmo e seu texto conjuga intimidade com idéias claras, sentimento com razão. Esse material com o sabor e o saber da época em que foi postado é não apenas rico emocionalmente, como já se constitui numa espécie de roteiro do filme.
A primeira memória do filme é assim a do próprio Celso traduzida nas suas missivas diversas. A outra é a das conversas e dos depoimentos. Conversas com os familiares e depoimentos com policiais, delegados e pessoas fora do âmbito doméstico. São tratamentos diferentes que assumem também funções diferentes na narrativa de Flávia. Se o tom seco da busca da informação conduz Flávia para a tentativa de esclarecer a morte prematura do pai, no ambiente das relações mais íntimas o sentido das falas é atravessado pela proximidade afetiva e pela emoção. Essa dualidade de tratamento transparece e dá beleza ao filme de Flávia, pois conjuga momentos de diferentes temperaturas emocionais. Por outro lado, não deixa de cumprir uma certa missão de entendimento de uma vida dedicada a uma causa e as dificuldades de lidar com ela. Algumas falas da mãe de Flávia e de outros ex-militantes da esquerda traduzem o sentido da grande aventura que foi a luta contra a ditadura e busca por mudanças num mundo conturbado pelas fortes ideologias e lutas de libertação. E para conturbar ainda mais esse ambiente do passado, o presente próximo produzindo dúvidas sobre o fato policial que parece contradizer uma vida dedicada às “boas causas”. São indagações que permanecem quando o filme acaba. O belo dele é exatamente ser inconcluso. As respostas ficam suspensas e como tal esperam ainda outros esclarecimentos, embora todos nós espectadores tenhamos o direito de construirmos as nossas próprias versões.
O filme de Flávia tem a sensibilidade de uma busca em aberto e a generosidade de nos colocar no lugar de memória que nos aprouver, sem imposições.
*Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema.
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