Miguel Pereira* - Do Portal
31/08/2011Exibido no último Festival de Gramado, Ponto final, de Marcelo Taranto, deve ter sua estreia comercial ainda em setembro. O filme vai na contramão do cinema que tem sido feito recentemente no Brasil. Não se destina às plateias que buscam no cinema apenas uma diversão imediata e logo esquecida. Pretende incomodar, fazer pensar, criar um certo desconforto no espectador que se sente um pouco como se entrasse num labirinto e andasse em círculos que não parecem ter fim. Trata-se de uma viagem que mistura passado e presente, sem estabelecer um ordenamento rígido dos tempos e dos espaços interpostos e sucessivos, numa lógica que procura a cumplicidade do espectador para fazer sentido. As lacunas ora aparecem como mudança de espaço, ora como monólogos reflexivos propostos diretamente ao espectador, ou ainda como quadros autônomos e repetitivos em planos de memória a serem conectados. A estrutura narrativa do filme se baseia assim numa forma aleatória que produz um certo estranhamento aos que estão habituados a receber tudo pronto como dado objetivo e concreto da narração.
A um só tempo, Ponto final se coloca como um discurso explícito das mazelas sociais brasileiras que tem como ponto de partida a morte casual de uma jovem, por bala perdida, numa rua do Rio de Janeiro, e como metáfora da vida contemporânea enquanto uma viagem ao íntimo das relações partidas, falidas ou em falência que são observadas no dia a dia de todos nós. Nesse mundo em que os afetos se desfazem com naturalidade e os reatamentos são complexos e de difícil realização, domina o desespero, o desencanto e um caminho inexorável para o fim, sem esperanças de mudança e expectativas de saída. É assim um filme que pesa como um sinal de alerta para um futuro incerto e sem grandes perspectivas. É um drama denso sob a aparência do óbvio. É, no fundo, um filme sobre a dor. A dor profunda da perda e a dor presente da diluição dos afetos.
Marcelo Taranto já havia abordado o tema da dor num curta-metragem premiado com o Margarida de Prata de CNBB, Ressurreição, de 1994. Na verdade, o sentido impresso naquele filme era a passagem do sofrimento de uma nação, o Brasil, para um novo tempo de abertura e possibilidades. A metáfora era também a linguagem escolhida por Taranto para traduzir o sentimento que queria transmitir ao espectador. Ponto final, de certo modo, examina o pouco avanço que fizemos no campo sócio-político e também nas estruturas sentimentais e afetivas que estamos vivendo. São quadros vivos de instantes, muitas vezes, propositalmente alongados e silenciosos, como a nos dizer que algo deve ser feito para que, no final, possamos encontrar algum alento. O chofer do ônibus, interpretado com talento e intensidade por Othon Bastos, é um pouco o condutor dos destinos que aponta para caminhos possíveis. Aliás, todo o elenco do filme traduz este sentimento de abandono com muita competência e nuances de expressão, Hermila Guedes, Roberto Bontempo, Dedina Bernardelli, Silvio Guindane e Júlia Bernat, sublinhados por uma trilha musical oportuna e bem posta.
*Miguel Pereira é professor da PUC-Rio e crítico de cinema
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