Jorge Neto e Eduardo de Holanda - Do Portal
01/07/2011
As velas dos oito barcos da procissão de São Pedro coloriam o espelho d'água já escurecido pelo cair da noite na Lagoa. Passava das 18h30 desta quarta-feira quando a flotilha organizada por 25 pescadores da colônia Z-13 deixou o cais próximo ao Parque dos Patins. À frente das canoas usadas no ofício, uma traineira levava a imagem do santo – cedida pela Pastoral da PUC-Rio – e cadenciava o ritmo inverso ao dos carros nervosos perto dali. Depois da homenagem aquática, o padre Alfredo Sampaio Costa, coordenador da Pastoral, celebrou missa no altar improvisado às margens do cartão-postal. A festa, reforçada de aproximadamente 60 curiosos e moradores da área, avançou rumo ao forró e aos pratos nordestinos, como manda a tradição junina.
Centenas de votos para São Pedro
Ordenado sacerdote no dia de São Pedro, padre Alfredo Sampaio Costa tem um afeto especial pelo santo. “Refiz, mentalmente, todo o caminho da minha vida nessa volta ao redor da Lagoa”, alegrou-se. Depois da procissão aquática, a missa direcionada especialmente aos pescadores lembrou que os primeiros discípulos de Jesus trabalhavam com a pesca.
Com leveza e bom-humor, o padre também deu entrevistas a diversos veículos de comunicação. Empolgado, puxou um "viva" em nome do santo. Até os curiosos aderiram.
Coordenador da Pastoral Anchieta da PUC-Rio, padre Alfredo é formado em teologia, com mestrado e doutorado em teologia espiritual, pela Pontíficia Universidade Gregoriana, em Roma, onde ministrou aulas durante seus 12 anos na Itália.
Para aqueles pescadores urbanos, a comemoração era mais do que um sonho realizado. Os barcos enfileirados iluminavam uma outra procissão, diária, quase invisível na rotina veloz da cidade.
O trabalho começa às oito da noite e segue até as cinco da matina, período em que a lagoa é liberada exclusivamente para pesca. Com sorte, a jornada rende mil quilos de peixe por dia.
– Essa festa é a comunhão entre a colônia e a comunidade do entorno. Muitos não sabem que essa colônia existe – observa a antropóloga Tamar Bajgielmam, uma das organizadoras da procissão.
Tamar acompanha o dia a dia dos pescadores há dez anos, quando adotou a Lagoa para “compreender melhor” o ecossistema da região. Buscava informações para a pesquisa acadêmica. Encontrou dignidade e o trabalho de vidas inteiras. Como a vida de José da Luz, 64 anos, funcionário aposentado do Jockey Club, pescador desde menino:
– Venho aqui [na Lagoa] todos os dias. Quando eu pesco, eu vendo. Quando eu nãopesco, eu compro dos outros e vendo.
Há 40 anos no ofício, "seu" José , como é conhecido, vai diariamente da Barra, onde mora, até a Lagoa. Só abre exceção aos domingos: "Minha idade também já está boa, né?".
Tamar também encontrou, é claro, histórias de pescador. Algumas inacreditáveis, como os "mais de mil quilos de tainha pescados de uma só vez", jura Pedro Marins, presidente da colônia. Outras emocionantes, traços de uma realidade de persistência e superação:
– Sou a terceira geração de pescadores da lagoa – conta Pedro, orgulhoso – Meu avô pescava,meu pai pescou. Agora meus filhos pescam. Tenho também um tio e um sobrinho que pescam na Lagoa.
Irmão de Pedro, Paulo Marins diz que o dia a dia da colônia transborda amizade e brincadeiras: "Aqui a gente fica encarnando com os outros". Mas nem sempre o espírito carioca e a pesca são suficientes para livrá-los de problemas típicos na luta pelo sustento:
– Quando chega o Natal, não podemos pescar por causa da árvore [da Lagoa]. Aí a gente recebe um salário mínimo da prefeitura para dar suporte à arvore – conta Paulo – Também ganhávamos um salário mínimo para limpar a lagoa quando estava cheia de limo. Trabalhávamos quatro horas de dia, e de noite a gente pescava. Enchíamos quase quatro caçambas por dia com o lodo tirado da água.
Os agradecimentos a São Pedro acolhiam outras pequenas grandes vitórias, despercebidas até pelos dividem com os pescadores aquele espaço (corredores, remadores, skatistas). Pedro, Paulo José e seus colegas têm de superar, frequentemente, desafios como a mortalidade de peixes. Um problema que, segundo Paulo, "acontece desde a época de Dom Pedro". Já para Kátia Janine, ex-presidente da colônia, a maior dificuldade foi lidar com o machismo:
– Uma mulher, no comando de quase mil homens, não tem como ser bem recebida. Tive lidar bastante com pescador cabeça dura.
As diferenças, contudo, acabam diluídas pela paciência e o sentido de grupo indefectíveis. Viram histórias, boas histórias, lembradas na noite de festa. Pedaços da alma carioca que resistem ao turbilhão urbano.
Colônia lembra uma cidade do interior
Às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, existe um mundo separado da agitação urbana, típica de cidade grande. Pequenas casas formam uma vila à beira d’água, onde canoas e barquinhos compõem um clima de cidade do interior, onde todos se conhecem e a dimensão do tempo é outra. Os pescadores do núcleo da Lagoa são uma pequena porção do grupo de 952 profissionais da pesca que integram a Colônia de Pescadores Z-13.
Fundada oficialmente em 1923, a Z-13 reúne pescadores da Urca até o Pontal do Recreio, passando por Copacabana e a própria Lagoa. O trabalho não se limita à pesca. Em Copacabana, a técnica de confecção de redes de Claudionor José da Silva, o Nonô, se estende às quadras de vôlei. As peças em náilon já foram até exportada para 15 países. No Brasil, há 1.037 colônias, com mais de um milhãode pescadores filiados.