Fernanda Miranda e Isabela Sued - Do Portal
17/12/2010No campo da segurança pública no Rio de Janeiro, o ano de 2010 foi marcado pela ampliação do número de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP) e pelo conflito no Complexo do Alemão, que abalou a cidade. De um total de 13 UPPs, oito foram implantadas este ano.
O projeto das UPPs foi criado pela Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, no ano de 2008, como uma política do governo Sérgio Cabral. A providência, no entanto, gera opiniões divergentes, pois apesar de muitos especialistas avaliarem bem o sistema, outros acreditam que a medida deve ser temporária.
A primeira UPP da cidade foi instalada em 2008 na favela Santa Marta, onde foi filmado o documentário produzido quase dez anos antes por João Moreira Salles e Kátia Lund, Notícias de uma guerra particular, sobre o cotidiano dos traficantes e dos moradores da região.
O capitão da PM do Rio de Janeiro Luiz Alexandre, por exemplo, acredita que essas unidades não são uma solução de longo prazo. Para ele, UPP, em princípio, é ocupação policial ou militar.
– É óbvio, e de entendimento mediano, que em qualquer local onde houver saturação de policiais haverá redução instantânea e elevada de criminalidade e a aberração ocorreria se não houvesse essa redução – afirmou.
Luiz Alexandre acredita que as UPPs não podem ser eternas. Primeiro porque, segundo ele, funcionariam somente como meio repressor do Estado. E, segundo, porque não haveria efetivo, a médio e longo prazo, para que tais ocupações se mantivessem, bem como prosseguissem em outros locais.
O capitão afirma que as UPPs deveriam atuar como ocupação, simultaneamente com o melhor que o Estado pudesse prover em termos de cidadania. Melhores escolas públicas, melhores hospitais, escolas técnicas profissionalizantes e, finalmente, a transformação desses "guetos" em bairros de verdade, com ruas largas, saneamento, urbanização, proporcionando a efetivação da cidadania de seus moradores.
– A partir de todo esse contexto, após certamente alguns anos, a UPP seria substituída pelo policiamento normal. Isso quebraria com o paradigma de polícia repressiva de ocupação em locais pobres. Infelizmente, não é esse o projeto que vemos para as favelas ocupadas pelas UPPs – explicou.
O capitão completou afirmando que o governo na ocupação entra timidamente, sem ambições para o contexto social. Não se fala em transformações estruturais nesses locais, mas apenas “obras de enfeite”. Além disso, a promessa é que a ocupação seja permanente, o que tira o foco da "polícia para o cidadão" e volta ao paradigma clássico de "polícia de repressão", com o nome de comunitária.
Para o professor e também capitão da PM Ronilson de Souza Luiz, no entanto, as UPPs são um bom modelo de solução. Segundo ele, outras capitais já desenvolveram modalidades de policiamento na forma de UPPs e obtiveram excelentes resultados.
– De forma sintética temos pontos positivos e negativos. O desafio é encontrar o modelo flex que funcione bem para toda sociedade. É como um juiz que avalia a intensidade da pena. Se muito branda, não resolve, se excessiva, incita a vingança – afirmou.
Conflito urbano
As UPPs também estiveram no centro do último grande conflito envolvendo a polícia e traficantes no Rio de Janeiro, ocorrido no Complexo do Alemão no último mês de novembro. Durante uma semana, a cidade sofreu com ataques de violência nas ruas, assaltos, ônibus e carros queimados, escolas e comércio fechados e uma constante sensação de medo. Como medida de emergência, as Forças Armadas foram acionadas para tentar amenizar a situação.
No dia 28 de novembro a operação foi iniciada na comunidade do Complexo do Alemão. Blindados e helicópteros comandados por agentes ocuparam o local para lutar contra o tráfico.
A Marinha empregou mais de dez carros blindados para transporte de tropas, a maior parte deles sem pneus, sob lagartas, o que possibilitou o avanço mesmo nas piores situações. A Aeronáutica colocou à disposição três helicópteros blindados, dois de grande porte, conhecidos como superpumá, que são capazes de carregar até 16 homens armados ao mesmo tempo.
De acordo com o capitão da PM Ronilson de Souza Luiz, a presença das Forças Armadas na operação para ocupação do Complexo do Alemão foi necessária e perfeitamente constitucional.
– São máquinas de guerra, sim, concordo. Contudo, eles sabem que o grande mérito das guerras modernas é a capacidade de flexibilização, ou seja, de atuar nos mais variados cenários – afirmou.
Por causa do grande número de homens empregados, a autorização teve que ser dada pelo próprio presidente da República. Além dos militares, 300 policiais federais vieram de outros estados e estão até hoje em ação no conjunto de favelas. Ao final dos ataques, o governador do Rio, Sérgio Cabral, fez um pedido formal ao Ministério da Defesa para que as Forças Armadas permanecessem no Complexo do Alemão até 2011.
Testemunha ocular
“O que eu vi foi desespero, o que eu vi foi medo”. O morador da Vila Cruzeiro e aluno do 5º período de Comunição Social, que preferiu não se identificar, esteve bem perto da batalha que durou cerca de uma semana no Morro do Alemão. Ele declarou que a situação era caótica e o cenário era quase “pós-apocalíptico”, com motos jogadas no chão, pessoas saindo de casa e roubando peças das motos, moradores desesperados etc.
– Foi uma loucura. Quem estava fora do Complexo tinha mais informação do que quem estava dentro, pois estávamos sem luz. Cheguei ao ponto de descobrir só no dia seguinte, por colegas da faculdade, que alguém foi preso a duas quadras de onde eu moro – contou o estudante.
Ele relatou também que, passado o momento de desordem, a situação tornou daquele local uma atração turística.
– As pessoas se juntavam para tirar foto com blindados, em cima de caminhões – contou.
O morador, que pôde vivenciar uma boa parte desta guerra in loco, relatou que o momento mais marcante da batalha foi um dia antes da invasão, na sexta-feira à noite. Por volta das 22h, o estudante foi à Praça da Fazenda, local onde as pessoas costumavam se reunir no bairro. Ele viu cerca de 40 traficantes juntos e, entre eles, um menino de mais ou menos 16 anos.
– Ele estava agarrado numa AK47. Chorando. Como uma criança – contou o morador – Naquele dia, na Praça da Fazenda, o que eu vi foi desespero, o que eu vi foi medo.
Segundo o estudante, os bandidos, naquele momento, não tinham mais líderes.
– Muitos abandonaram a batalha, largaram suas armas em algum lugar, desesperados, e ficaram em casa enquanto a invasão ocorria – disse.
Ele contou também que os traficantes diziam que os policiais do Batalhão de Operações Especiais (o Bope) iam entrar e matar todo mundo, porque "a televisão não estava mais filmando". Ainda assim, diziam que iam morrer, mas pelo menos iam morrer "cumprindo o seu dever".
– Mas falavam isso com medo na voz, tremendo – relatou o estudante.
A respeito da segurança no local, o morador afirmou que houve uma melhoria. No entanto, acredita que é necessário fazer mais:
– Se o Estado não se fizer presente por meio de outros serviços que não a segurança pública, vai haver outro tipo de caos. Será o caos da descrença no Estado – lembrou.
Além disso, o morador disse que a ideia do “bandido romântico que defende a comunidade” já deixou de existir há muito tempo. Lembrou do caso "Orlando Jogador" do Comando Vermelho, que foi assassinado pelo líder criminoso Uê, do Terceiro Comando, a facção rival. Com a polêmica gerada pelo tumulto causado por esses comandos, muitos ainda tinham a ideia de Orlando Jogador como um herói da comunidade. Isso, segundo o estudante, foi caindo com o tempo.
– Esses meninos mais novos, na verdade, querem o poder – contou – Lembro que quando descia para comprar pão, os via sentados na frente da padaria com uma G3 e aquilo, para eles, era o ápice.
O aluno universitário diz que “era visto como idiota porque estudava e não tinha poder". Ele disse que transitava bem entre os traficantes porque os conhecia desde a infância.
– Ter o poder era ter aquele fuzil, mesmo que você não soubesse usar – avaliou. – Era um poder falso, que se desfez no ar, que estava saindo da favela, tentando chegar ao asfalto. Ali, se criou a ideia do controle do poder, anulando a ideia de proteção à comunidade.
Violência em números
O Complexo de Favelas do Alemão, no qual ocorreu a grande guerra urbana e onde é realizada a maior operação contra o narcotráfico da história do Rio de Janeiro, é um bairro com uma das piores médias do Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da cidade.
Do total de 158 bairros do Rio, o Alemão ocupa a 149ª posição, com um IDS de 0,474 – quanto mais perto do número 1, melhor o índice. De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado no ano 2000, 65.026 pessoas vivem nos 18.245 domicílios do complexo, que é formado por 14 favelas.
Segundo o capitão da PM Luiz Alexandre, esses índices mostram um dos motivos pelos quais muitos entram na vida do crime.
– Não vejo o tráfico do Rio de Janeiro como crime organizado. São quadrilhas, compostas na maioria de analfabetos e miseráveis, estruturadas territorialmente, com poder financeiro e liberdade operacional. Para mim, crime organizado é o jogo do bicho e suas modalidades eletrônicas – afirmou.
Segundo estudo divulgado pelo Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Rio de Janeiro foi o estado que menos investiu no combate à criminalidade do país. Em 2008, R$ 4,9 bilhões foram utilizados para a segurança. Já em 2009, o valor diminuiu 25%. Já nos outros estados do Brasil, foi registrado um aumento médio de 15,43%, entre 2008 e 2009.