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Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2024


Cultura

Editora PUC-Rio lança obra de Henri Pirenne

Thaís Chaves - Do Portal

30/11/2010

 Isabela Sued


Maomé e Carlos Magno: o impacto do Islã sobre a civilização europeia, Henri Pirenne

“Em certo sentido, a expansão do Islã foi um acaso, se entendermos isso como a consequência imprevisível de diversas causas que se combinam”, diz a obra de Henri Pirenne, Maomé e Carlos Magno: o impacto do Islã sobre a civilização europeia. Nela, o historiador belga narra a súbita e inesperada ascensão do Islã, a partir de Maomé (571-632) e o surgimento da Idade Média. Lançado pela Editora PUC-Rio, em coedição com a Editora Contraponto, o livro narra o desenvolvimento histórico em torno do Mediterrâneo, construído pelo trabalho simultâneo ou sucessivo de egípcios, sírios, fenícios, gregos e romanos. Essa unidade econômica e social entre povos do Oriente e do Ocidente sobreviveu até a ascensão do Islã.

A partir desse momento, as civilizações oriental e ocidental se separaram. A economia ocidental urbana foi substituída por uma economia rural sem mercados. A Idade Média, assim, começou com uma transformação enorme na civilização europeia, matriz do Ocidente moderno.

O Portal PUC-Rio Digital conversou com a professora do Departamento de História Flávia Maria Schlee Eyler sobre a obra. De acordo com a professora, o fim do Império Romano ocorreu, para Pirenne, num período posterior ao atualmente aceito. O marco da Idade Média, conforme explicou, ocorre a partir dos séculos VII e VIII, fundamentalmente com Carlos Magno, e só pode ser entendido a partir de Maomé. Segundo Flávia Maria, a questão da periodização se alterou a partir da análise do historiador belga. A Idade Média, nesse sentido, não começaria com o fim do Império Romano.

Na entrevista, a professora analisa aspectos importantes de Maomé e Carlos Magno, como a revolução feita por Pirenne na historiografia, no sentido de avaliar a derrocada do Império Romano e a formação da Europa. Flávia Maria avalia também a incorporação de questões pouco discutidas na época, fundamentais para entender a formação da Europa. A cultura, a religião e a própria economia são alguns exemplos. Para a professora, deve haver mais estudos sobre o islamismo, pois muitas questões são pouco aprofundadas. Segundo ela, "Aristóteles é um legado do Islã para o mundo europeu".

Portal PUC-Rio Digital: Qual o maior legado de Henri Pirenne para a historiografia atual?

Flávia Maria Schlee: O trabalho de Pirenne expressa o que o historiador mais precisa: o contraponto entre presente, passado e futuro. O presente é sempre dividido, fraturado. O passado nos aparece como memória. O futuro no tempo presente é a esperança. Quando encontramos uma obra como a de Pirenne, relançada depois de tanto tempo e histórias, surge o grande momento de entendermos o que é escrever no tempo presente e a distância marcada entre a época da produção do livro e a contemporaneidade.

 Stéphanie Saramago Portal: Nesse sentido, de que forma a questão do Islã se apresenta como atual?

FMS: A questão do Islã em relação ao mundo ocidental não é uma atualidade que Pirenne coloca. Hoje o tema é muito mais sério e grave do que a historiografia abordada pelo autor. Atualmente, não temos certeza onde estão as fronteiras e se elas são possíveis de serem mantidas em um espaço de convivência civilizacional. O Islã analisado pelo autor tira o foco do eixo civilização e barbárie, tradicionalmente colocado na questão dos godos, visigodos e ostrogodos, ou seja, das tribos germânicas. Pirenne não trabalha o Islã como barbárie. O autor afasta os bárbaros tradicionais, invasores responsáveis pela derrocada do Império Romano, da barbárie, e essa talvez seja a questão mais interessante para nós. O historiador não reconhece como barbárie atos dos bárbaros que invadiram o império, além de não reconhecê-los como responsáveis pela derrocada do Império Romano, e sim o Islã, mas não como uma barbárie.

Portal: Qual a importância da análise de Henri Pirenne sobre as perspectivas históricas das transformações e do desaparecimento de grandes civilizações?

FMS: É difícil identificar no tempo atual a época quando os impérios e as civilizações terminam. Só podemos saber depois de muito tempo. É sempre algo dito de frente para trás. Pirrene utiliza a questão da formação do império, que decorre com o fim do Império Romano, para trabalhar a construção de uma Europa. A perspectiva da época era grande. Essa Europa é um legado visto por Pirrene, no século XX. Então, qual a colocação de Pirenne? E o que levaria ao desaparecimento de uma grande civilização? O historiador deve olhar teoricamente para formular uma hipótese. Será que o Império Romano não teve forças para dar continuidade por causas internas? Será que foram causas externas? Nesse caso, as responsáveis seriam as invasões bárbaras. Enfim, existe uma multiplicidade de questões que podem ser válidas ou não. Pirenne faz uma revolução na historiografia, no sentido de avaliar a derrocada do Império Romano e a formação da Europa, mas não pelas invasões bárbaras, que era uma coisa comum na historiografia ocidental.

Portal: Qual o aspecto da obra que mais a fascina?

FMS: Acredito que é exatamente essa virada de construir uma Europa sem ser a do Mediterrâneo. Todas as civilizações conhecidas até então estavam situadas em torno desse mar. Com Maomé e Carlos Magno, a sociedade europeia passou a ser fruto de uma multiplicidade de culturas e etnias, formadoras de uma unidade cultural. A nova civilização criou a possibilidade de se estabelecer uma vida comum não mais centrada no mar, mas na agricultura e em todo um sistema de trocas que se utilizava dos rios e da terra.

Portal: De que forma o autor renovou o método histórico, em sua época?

 Stéphanie Saramago FMS: Na historiografia da época, a história era uma evidência. Os historiadores poderiam através de uma documentação reconstituir o que aconteceu. O estudo era muito centrado nos grandes feitos políticos, nos grandes homens, reis e imperadores. Pirenne aborda novamente uma visão mais ampla das redes que sustentam o mundo da necessidade, que nos mantém vivos, para estabelecer essas relações. Não chega a ser uma tradicional história econômica, mas ele amplia muito mais o leque e incorpora mais questões, como cultura, religião, arte, comércio e a própria economia como fundamentais para entender a formação da Europa.

Portal: De que maneira Pirenne faz um contraponto entre as ideias de civilização e barbárie ao longo da história ocidental?

FMS: É bem diferente da nossa questão. Em nenhum momento o autor analisa o Islã como barbárie. Pelo contrário, a Europa ocidental incorporou muitas questões via Península Ibérica do próprio Islã. Aristóteles é um legado do Islã para o mundo europeu. Pirenne considera que os bárbaros foram facilmente romanizados. O contato entre os bárbaros e o Império Romano, considerado como a civilização mais desenvolvida, era anterior às grandes invasões bárbaras do século V. Os bárbaros possuíam o que Pirenne chama de vontade de romanização. Isso é exatamente ser incorporado em uma cultura onde podiam manter, inclusive, todo o seu aparato jurídico. Por durante muito tempo eles viveram em regime de hospitalidade com os romanos. Os outros bárbaros ou foram incorporados como defensores das fronteiras, os federati, ou participaram das invasões últimas, aquelas mais violentas, que entraram para a história como responsáveis pelo fim do Império Romano. Na verdade, não existe a destruição do império, mas sim uma romanização dos bárbaros e também uma barbarização dos romanos. Essa questão é muito complicada para nós atualmente: o que é civilização? Civilização é uma sociedade como a europeia, que estava se colocando contra si própria na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, com a questão do Holocausto? Essa pergunta fica sem uma resposta exata.  O que é civilização? O que é barbárie? Existe uma barbárie dentro da civilização e uma civilização dentro de uma barbárie, se formos pensar no aspecto da vida. O meu conceito de barbárie são os limites que permitem que o homem viva como homem. Ou seja, a existência da possibilidade de uma linguagem que toma o lugar da violência e do extermínio do outro.

Portal: Então, os conflitos atuais no contexto da "guerra contra o terrorismo" podem ser consideradas como uma barbárie dentro de uma civilização?

FMS: Acredito que sim, o tipo de guerra atual é por extermínio. As antigas guerras eram por mérito, eram guerras ritualizadas. O problema que vivemos hoje é de não admitirmos a diferença, de querer que ela desapareça. Quando essa diferença não existe, falta também o diálogo. Não existe nada do humano. O ser humano é exatamente aquele que consegue colocar a política no lugar da violência, a política como um combate com regras. Então, essa questão está em aberto para nós. Acredito que a obra Maomé e Carlos Magno é fundamental nos dias atuais para nos mostrar a abertura das sociedades humanas.

Portal: Em sua opinião, quais os principais aspectos descritos por Pirenne no livro sobre o fim da Antiguidade e o início da Idade Média?

FMS: Eu acho que é interessante porque toda vez que escolhemos um aspecto para marcar uma ruptura estamos criando um marco inexistente. Os indivíduos não percebem quando as coisas são rompidas no momento. Narramos uma história posteriormente. Pirenne estende o conceito de fim do Império Romano. Ele vai para frente e só reconhece o seu término quando acabaram as trocas comuns entre esse império e o Oriente e outros impérios antes do Islã. Então, para Pirenne, o marco da Idade Média é a partir dos séculos VII e VIII e fundamentalmente com Carlos Magno, que só pode ser entendido a partir de Maomé. A questão da periodização se altera. A Idade Média não começa com o fim do Império Romano.

 Stéphanie Saramago Portal: Qual a importância da separação entre Oriente e Ocidente, descrita pelo autor?

FMS: Pirenne não coloca um sinal negativo com relação à expansão islâmica em nenhum momento, porque é também uma civilização. O problema é mais nosso, contemporâneo, do que talvez tenha sido durante a Idade Média. A sociedade fabricou um inimigo, no caso o Islã, para fortalecer o outro lado, o da cristandade ocidental. No entanto, mesmo com essa oposição ocorreram muitas trocas. Para além da inimizade, existiam trocas interessantes do ponto de vista cultural, da própria filosofia e também material. Atualmente, acredito que o problema se coloca de forma muito perigosa. Quando não conhecemos a história, fazemos a nossa interpretação, que é sempre a do amigo e a do inimigo, quando as questões são mais complexas do que se apresentam.

Portal: Atualmente, quais os principais aspectos do estudo do islamismo?

FMS: Acho importante o Islã aparecer em sua multiplicidade. É muito perigoso tomar o singular pelo coletivo e o coletivo por uma singularidade. Isso tudo depende de como os historiadores trabalham. Acho que uma historiografia do Islã faz falta, uma que consiga expor as várias faces da religião e não apenas a que nos assusta, do terror e da violência. O Islã tem muito mais aspectos do que apenas a violência. Acredito que isso faz falta e esse é o papel central dessa ciência. A história é aquilo que nos permite relativizar sempre com uma abertura às nossas ações e escolhas.