Giselle Leitão - Da sala de aula
13/10/2010Cravado no subúrbio do Rio de Janeiro, o Centro Municipal Luis Gonzaga de Tradições Nordestinas consegue se impor em meio a bailes funk e rodas de samba, elementos da cultura popular carioca. A cada mês, a feira recebe 250 mil visitantes e mantém a missão de resistir a vários processos de globalização que a cidade atravessou – assim como a maioria das grandes metrópoles brasileiras – e servir como ponto de referência de uma cultura tipicamente nordestina.
Por reunir ingredientes do Nordeste, o local atrai aqueles que se mudaram para a cidade grande e buscam reencontrar suas raízes. Os visitantes são envolvidos pela música, cheiro e paladar que os fazem lembrar de casa.
De acordo com a professora de psicologia social da PUC-Rio Eva Johnatan, a existência de um local onde o imigrante pode reencontrar o que deixou para trás é importante para não perder a própria identidade em meio a uma cultura diferente. Segundo ela, fazer parte de um grupo ajuda a formar a identidade de cada indivíduo. Com freqüência, quando se passa por um processo de migração, os sujeitos podem se perder emocionalmente devido à falta de referências sócio-culturais. Por isso, compartilhar com outras pessoas elementos que faziam parte do passado "é resgatar as identidades sociais e pessoais de cada um".
Esta linha de pensamento se confirma na frase mais falada pelos visitantes nordestinos da Feira de São Cristóvão, quando perguntados sobre o principal motivo para freqüentar o local: “É como se eu estivesse em casa”.
O contato com a comida, a música, a dança e o vocabulário nordestinos faz parte do dia a dia de uma das figuras mais famosas da Feira de São Cristóvão: o “cangaceiro-propaganda” que trabalha todos os dias, religiosamente, no pavilhão. Sua função é passear pelas ruas e dançar em frente aos palcos de show para que as pessoas notem sua presença e sua veste.
Por cima do tecido cru, dezenas de pedaços coloridos de propaganda são grudados com velcro na roupa. Os anunciantes são as próprias lojas da feira. A maior propaganda fica no peito do cangaceiro e, por ser a mais chamativa, é a mais cara: R$ 100, por 40 dias. A que fica no chapéu custa R$ 70 e as dos braços variam de R$ 50 a R$ 30. Porém, os preços podem variar de acordo com a lealdade e a condição financeira do cliente: se o cliente for conhecido e não tiver condições de pagar o que pede comerciante, o preço pode diminuir.
Por trás da fantasia alegre, José Pereira de Souza tem uma vida às vezes dura, mas que não tira seu bom humor. Ele veio da Paraíba para o Rio há 31 anos e sempre sustentou a família com o dinheiro da feira, que também serve de moradia – pois o único imóvel que possui é uma loja de 50 metros quadrados. Divorciado, José faz questão de mostrar a foto da filha em um anúncio na sua roupa. A moça dava aulas de forró na Feira, mas percebeu que seria mais lucrativo dançar funk. Empurrada pela hegemonia do ritmo carioca, a moça teve que se distanciar das próprias raízes pelo menos na hora de trabalhar.
Os estilos musicais tipicamente nordestinos continuam, no entanto, liderando as vendas de CDs e DVDs das lojas e barracas. O forró ocupa a primeira colocação, e o álbum do grupo Calcinha Preta é o mais tocado pelos comerciantes nas portas das lojas. A canção “Você não vale nada, mas eu gosto de você”, tema da novela Caminho das Índias, da TV Globo, veiculada em 2009, ainda faz bastante sucesso. Em segundo lugar está o ritmo tencobrega, com as bandas Djavú e Aviões do Forró. Somente depois do forró e do tecno-brega, cantores mais famosos como Zezé di Camargo e Luciano conseguem cair no gosto dos visitantes.
A barraquinha de bonecos de barro também chama a atenção. Com um tema bastante peculiar, os bonecos de Etemilton deixam crianças e adultos muitas vezes sem jeito, mas sempre gargalhando.Os bonecos de barro estão sentados, nus, defecando e lendo um jornal. Há caixinhas que pegam os visitantes de surpresa. Quando abrem, levam um susto e riem ao verem um grande pênis de madeira. Os preços dos bonecos variam de R$ 15 a R$ 120.
O dono da barraca tem o apelido de Raul Seixas, por causa do cabelo grande e cacheado e da barba. Quando vai à Feira, veste-se com uma blusa vermelha e cinto e sapatos pretos. Anda com um pente no bolso da calça e óculos escuros no bolso da blusa, para quando pedem para tirar foto com ele.
Etemilton Silva é do Recife. Veio para o Rio de Janeiro há 27 anos e hoje mora em Nova Iguaçu. Quando sua idade é perguntada, diz que já passou dos 40. Chegou aqui trabalhando como ferramenteiro, mas ficou desempregado "na época do Collor". Precisou inventar uma forma de ganhar dinheiro: fazendo bonecos com um tema engraçado. Ele é o único na feira que faz esse tipo de boneco, pois diz que “se fosse fácil, todo mundo faria” e que a alegria da feira é a sua barraca.
Não tem ajudantes na sua função, faz tudo sozinho. Ele prefere que os filhos estudem e brinquem a ajudá-lo no ofício de fazer bonecos de barro. A família de Etemilton depende de suas vendas para se sustentar. Ele reclama que "o povo não dá valor ao artista". Muitas pessoas chegam perto, acham graça, tiram fotos, mas poucas compram as esculturas. Por isso, novamente, ele inventou mais um jeito de conseguir dinheiro: armou um painel pintado com o corpo de Lampião e Maria Bonita, no qual as pessoas enfiam a cabeça e tiram fotos. Custa R$ 2 e faz o tanto sucesso quanto os bonequinhos.
Etemilton já foi chamado para dar aulas de arte em colégios. Orgulha-se de ter ensinado a Sasha (filha da Xuxa), aos filhos de Arthur Sendas e ao do ex-jogador Edmundo.
Ele hoje sofre com um problema ortopédico nas mãos, braços e ombros, devido ao trabalho repetitivo e cansativo. Já foi ao médico e está fazendo fisioterapia, mas a dor não desaparece. Por causa disso, o artesão não produz mais tantos bonecos e sua barraca não expõe mais que 10 produtos. Ele só vai à feira aos sábados e pensa em parar de trabalhar.
Outro elemento que chama a atenção pelo bom humor são os enfeites de casa e as camisas, com piadas relacionadas à mulher e às sogras, por exemplo. Algumas plaquinhas têm as frases: “Sogra é igual onça: muitos preservam, mas ninguém quer ter em casa”; “Mulher feia é igual a vendaval: só quebra galho” ; “Sogra é igual aipim: as melhores estão enterradas”; “ Não existe mulher feia. Você que bebeu pouco”.
As camisas também exibem frases com tom humorístico: “Minha sogra caiu do céu e a vassoura quebrou” ; “Duas coisas que eu adoro: cerveja gelada e mulher quente”.
A comida, que convida o público pelo cheiro, é outra atração da Feira. Os pratos são arrumados em uma bandeja e envolvidos por um plástico transparente para ficarem à mostra na porta dos restaurantes. A quantidade e variedade atraem os que procuram o paladar da terra natal. O mais vendido é o Mistão, que custa R$ 75 reais e é uma mistura de churrasco e comida nordestina. O prato dá para oito pessoas e vem com feijão tropeiro, batata frita, aipim frito, baião de dois, molho, farofa, carne de sol, linguiça, queijo coalho, carne e tripa de porco, asa e coração de frango.
O preço também é um diferencial em relação aos restaurantes nordestinos de fora do Pavilhão. Um prato para quatro pessoas pode variar de R$ 36 até R$ 60 reais, A opção mais barata é o feijão de corda (maxixe, quiabo, abóbora, carne seca, arroz e farofa), que custa R$ 15 reais e é servido, na maioria das vezes, para duas pessoas.
As bebidas mais populares são muito baratas, em relação às que são vendidas foram da feira, e servem de combustível para o forró que vara a noite. Uma garrafa de água custa 1 real e o “latão” de cerveja de 473 ml, 2 reais. Quem frequenta o local parece não precisar de energia extra e, por isso, não se incomoda com o preço de 8 reais por uma latinha de energético
Além de preservar as identidades nordestinas, o Centro de Tradições é considerado um espaço democrático. Não se coloca como um gueto na dinâmica da cidade, não é exclusiva para migrantes. Turistas, cariocas e fluminenses compõem o público dos que gostam do contato com a cultura nordestina.o
Neste sentido, o professor de sociologia da PUC-Rio Ricardo Ismael de Carvalho crê que a Feira tenha um caráter de integração da cultura nordestina com a cultura do Rio. Segundo Ismael, além de fazer parte de um contexto próprio dos cariocas, o local funciona para concretizar a preservação de identidade em um contexto que inclui um imenso fluxo migratório – que atualmente contabiliza cerca de 6,700 milhões de nordestinos na Região Sudeste.
Criada em 1945, a feira realizava encontros de migrantes nordestinos recém-chegados com aqueles que já estavam no Rio de Janeiro. Durante 58 anos o evento se concentrava no Campo de São Cristóvão, debaixo das árvores. Em 2003, as barracas foram transferidas para dentro do pavilhão, que a Prefeitura do Rio acabara de reformar, tornando-se o Centro Municipal Luis Gonzaga de Tradições Nordestinas.
O local reúne cerca de 700 lojas e barraquinhas entre as ruas que receberam os nomes de nove estados da Região Nordeste: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. O Centro Municipal Luis Gonzaga de Tradições Nordestinas mantém um ambiente de sociabilidade entre camadas sociais e culturas diferentes que se encontram para compartilhar do mesmo gosto pela tradição nordestina.
Texto produzido para a disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, ministrada pela professora Carla Rodrigues.