Daniel Cavalcanti - Do Portal
13/10/2010Daniel Cavalcanti
A Editora PUC-Rio, em parceria com a Contraponto, lançou o livro Popper: Textos escolhidos, organizado pelo professor David Miller, do Departamento de Filosofia da Universidade de Warwick, na Grã-Bretanha. Filósofo austro-britânico, Karl Popper discutiu questões relativas à produção do conhecimento científico, ou a epistemologia, além da filosofia social e política no século 20. Seu pensamento crítico e racional, daí o nome de sua escola ser “racionalismo crítico”, deu forma ao fazer da ciência nos dias de hoje e levantou problemas importantes tanto no meio filosófico quanto no método científico.
Para analisar a importância do livro e da obra do filósofo, o Portal PUC-Rio Digital conversou com o professor Edgar Lyra, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. O especialista concluiu que o pensamento popperiano foi de grande importância na discussão dos métodos científicos modernos e deu base para novos questionamentos no campo, além de analisar criticamente as teorias epistemológicas de sua época.
Portal PUC-Rio Digital: Qual foi a importância de Karl Popper para a filosofia moderna e para o meio acadêmico-científico?
Edgar Lyra: Popper tem uma importância dupla, como pensador da ciência, ou seja, como epistemólogo, e também como pensador político. Ele era abertamente um liberal, chegando a ser condecorado com a ordem do Reino Unido. Tornou-se, então, Sir Karl Popper. Para ele, essas duas posições sempre estiveram entrelaçadas. Sua posição epistemológica é coerente com o liberalismo político que sempre concebeu. Talvez a questão do seu posicionamento político seja menos original e se dilua no meio de tantos outros pensadores importantes da mesma época. Colocar, por exemplo, a importância política dele frente a Bertrand Russel, que foi seu contemporâneo, gera um Popper menos singular, menos importante. Agora, a epistemologia de Popper, essa sim, ocupa ainda hoje um lugar importante no grande debate epistemológico que se iniciou por volta dos anos 1920 na Europa, a partir do momento que se percebeu que a ciência ocupava um lugar cada vez mais destacado como nossa principal forma de construção da verdade. Disso fala o próprio termo "cientificamente comprovado". Houve todo um movimento específico da filosofia no sentido de discutir a fundamentação dessas teses, ou seja: o método científico. E nisso Popper teve uma colaboração bastante substancial.
Portal: À luz de seu liberalismo, Popper criticou bastante Karl Marx, considerando seu pensamento dogmático. Quais foram as principais divergências entre esses dois autores?
Daniel Cavalcanti
Portal: E o racionalismo crítico tomou que formas?
EL: Essa nomeação ampla de “racionalismo crítico”, quando mais exclusivamente relacionada à prática científica, defende que esta se faz ou deve fazer através de um método de conjecturas e refutações. Para ele a ciência, digna desse nome — por oposição ao que ele chama de pseudociência — é um conjunto de teses que, num determinado período histórico, sobreviveu à toda uma espécie de críticas e testes possíveis e imagináveis. Testes aos quais ela resistiu. Ao resistir a eles, essas teses se tornariam teorias corroboradas, mas nunca definitivamente comprovadas. O fato de terem resistido a todo o esforço para pô-las à prova, não indica que, futuramente, uma nova observação não poderia problematizar essa teoria que foi sustentada por cem ou duzentos anos. A teoria de Newton é uma prova viva disso. Houve um momento em que ninguém imaginava que a luz poderia se curvar, ou que as três leis da mecânica poderiam ser postas em questão. Popper afirma que o verdadeiro cientista é o que põe sua teoria à prova. Ao resistir aos testes que poderiam refutá-la, ela se torna confiável. Isso é a ciência. A postura do cientista, para Popper, seria sempre uma postura de abertura. Um cientista poderia afirmar que testou sua tese de todas as maneiras que pôde e que ela resistiu. A partir de então, outros cientistas devem testá-la e, ao encontrar um problema, garantir que a refutação é legítima e formular novas hipóteses que também vão passar por esse processo. O cientista seria um crítico e um autocrítico. Seria essa pessoa que está sempre testando e questionando, não que está se esforçando por desenvolver sua própria teoria como um dogma.
Portal: Ao longo de sua obra, Popper cita muitos pensadores pré-socráticos. Essa é uma tendência da filosofia moderna em geral?
Daniel Cavalcanti
Portal: Quais foram?
EL: Temos, entre esses críticos, várias vertentes. Vou citar primeiro um pensador chamado Imre Lakatos. Ele achava que a concepção que ePopper tinha de método científico era ingênua. Popper acreditava que uma teoria que fosse submetida ao teste e refutada, deveria ser abandonada. Já, para Lakatos, não era bem assim. Se uma teoria tem um núcleo duro que resolve uma série de problemas, não é a primeira refutação que aparece que deve fazer com que desistam dela. A tarefa é questionar essa refutação, considerando que pode haver fenômenos que interferiram na experiência e criaram um erro aparente. Lakatos tentou sofisticar as teses de Popper, partindo de sua intuição de que não haveria uma confirmação definitiva, mas rejeitando essa idéia de honestidade científica como disponibilidade de abandonar uma teoria diante dos primeiros murmúrios da crítica.
Portal: Mas você acha que o pensamento de Popper era assim tão ingênuo?
Daniel Cavalcanti
Portal: Essa forma contundente de criticar Popper fomentou discussões de quem acreditava em suas idéias?
EL: Esse ataque ao “método”, no singular, ficou conhecido como "anarquismo epistemológico". Tem um bordão que o define: "A única coisa que não inibe o progresso da ciência é o princípio do anything goes — “vale tudo". Feyerabend não está diz, todavia, que não há métodos, no plural, mas que não há um único método válido para todas as ciências. O que existe são métodos normatizados dentro de meios de pesquisa que se autorregulam. O melhor que pode acontecer é se aceitarem mutuamente. Eu, pessoalmente, entendo o anarquismo epsitemológico, como uma espécie de ‘pluralismo epistemológico’. Muitas pessoas começam a atacar Feyerabend em defesa do Popper, argumentando que, segundo sua tese, valeriam vudus, dogmatismos, etc... Seu radicalismo sem dúvida incita novas discussões. Então a gente tem essa triangulação: primeiro os positivistas que caricatamente defenderiam a comprovação de teses científicas; na outra ponta, os anarquistas, dizendo que nem sequer existe um método que separe ciência de pseudociência; e, no meio, os racionalismos críticos, como o do Popper — o orginal — afirmando que não existe uma verdade definitiva, mas isso não quer dizer que não existam teorias mais confiáveis ou menos confiáveis, ou que não possamos falar do progresso. O racionalismo, portanto, assume um jogo com “a bola um pouquinho mais baixa” que a do posistivismo. E aí, em torno da trinca de confirmação, negação e mediação, existem uma série de outros pensamentos, como o Larry Laudan, Thomas Kuhn, enfim... uma série de outros epistemólogos que compõem ainda hoje esse quadro do que é o método científico.
Portal: Popper também faz críticas ao método indutivo de Francis Bacon de apresentar uma tese. Poderia explicar melhor a diferença entre esse método científico e o método de Popper?
Daniel Cavalcanti
Portal: E como Popper critica a indução?
EL: Popper pega uma carona num pensador moderno posterior ao Bacon que foi David Hume. Popper afirma: "Eu nem preciso me esforçar muito para provar que o salto indutivo é logicamente inválido, pois Hume já fez isso conclusivamente”. O máximo que se pode dizer é que: até onde foi testado, não se achou nenhum ganso preto. Mas não se pode afirmar, a partir de um número finito de testes, que nenhum ganso é preto. É, mais ou menos, como encontramos em bulas de remédio, que dizem que submeteram o medicamento a um certo número de pacientes, como teste, e que não houve nenhum sintoma. Não se afirma categoricamente que o remédio não produz o sintoma, apenas que dentro de certo número de casos não houve o efeito. Popper afirmar, então, que "salvar o método indutivo significa enveredar por algum método estatístico". Tende-se a afirmar que, depois de mais de mil testes, é mais provável que o efeito o esperado. Mas Popper não aceita as saídas probabilíticas e desenvolve todo um aparato matemático, bastante sofisticado, para tentar mostrar que as teses de maior interesse científico não são as teses mais prováveis. As teses mais prováveis talvez até tenham alguma validade no mundo pragmático, no mundo técnico, mas no mundo do avanço do processo científico, estaríamos mais interessados em conjecturas improváveis, ousadas e capazes de ser postas à prova.
Portal: Como assim?
EL: Popper dá como exemplo a tese de Albert Einstein, na qual a luz se curvaria na presença de campos gravitacionais suficientemente intensos. Quando Einstein formulou essa tese, a maior parte da comunidade científica a recebeu com inteiro ceticismo. Uma tese improvável, não é? E sobretudo quando a tese de que a luz se propagava em linha reta era uma tese que vinha sendo corroborada desde longa data. O que de alguma maneira, segundo Popper, vai transformar a tese de Einstein em algo digno de crédito não é o fato de se montar um monte de experimentos onde a luz se curve. Será preciso montar um experimento que me diga que: se nessas condições — com um campo gravitacional intenso — a luz não se curvar, a tese morreu. O grande salto de Einstein para ter importância foi o Eclipse de Edington, cuja expedição inclusive veio aqui para o Maranhão. Esse eclipse constituiu uma situação astronômica rara, na qual foi permitido fotografar estrelas e identificar se estavam mais próximas ou mais distantes dependendo da situação. Mostrou-se que, naquele conjunto de situações, havia curvatura da luz. Na perspectiva popperiana, a teoria de Einstein não foi refutada, quando todos acreditavam que seria. Foi assim que começaram a prestar atenção nela.
Portal: Existe essa grande proximidade do pensamento de Popper com Immanuel Kant. Qual a relação entre o pensamento ético de Kant com o método de Popper?
Daniel Cavalcanti
Portal: Então é esse cuidado com a autocrítica e com a responsabilidade que Popper queria dar aos cientistas?
EL: Não se pode crer definitivamente em uma tese científica porque foi legitimada por certa escola ou certo número de experimentos. De alguma maneira, a atitude do cientista é, desejavelmente, a atitude crítica. Muitos críticos do Popper colocam o seguinte problema: a epistemologia de Popper seria descritiva ou normativa? Ou seja: Popper está dizendo que a ciência 'age assim' ou que 'deveria agir assim'? Eu, particularmente, acho que o que Popper está fazendo é uma prescrição a respeito de como o cientista deveria agir. Ele descreve o cientista como um sujeito ideal como um sujeito compromentido com a verdade. O progresso em direção à verdade se daria pela abertura às testes e às refutações O caminho se assemelharia a uma aproximação infinita, pois nunca se chega à verdade. Inclusive muitos críticos de Popper, como Thomas Khun, sugeriram que, apesar de Popper definir a idoneidade científica como dever do cientista, dessa maneira kantiana, a história da ciência não confirmaria esse comportamento. Seria uma história cheia de descontinuidades, coalhada de fatores humanos e sociais, como vaidade, teimosia, poder. Essa figura do cientista ético, aberto, despojado, que não se importa de abrir mão de suas teorias seria uma idealização.