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Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2024


Cultura

"É hora da ciência acordar para essa nova visão de mundo"

Juliana Oliveto - Do Portal

17/06/2010

Claudia Kamergorodski

Se o físico Marcelo Gleiser, há quinze anos, encontrasse uma vidente, e ela dissesse que ele iria escrever um livro diferente de tudo que ele pensou durante a primeira década de sua carreira, ela não seria levada a sério. O próprio autor assume o fato no prefácio de seu Criação Imperfeita – Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza, lançado em março deste ano pela editora Record. Sucesso absoluto, o livro figura na lista das dez obras mais vendidas do país há pelo menos três meses.

Ao longo de 366 páginas, Gleiser discute um dos maiores mitos da ciência e da filosofia ocidentais, que diz que a natureza é regida pela perfeição. O físico argumenta que uma teoria unificadora – uma Teoria de Tudo –, mesmo com o esforço de muitas mentes, permanece limitada. Ao contrário do que grande parte dos cientistas da atualidade pensa, Gleiser defende que a ciência jamais vai conseguir explicar completamente a realidade.

Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Marcelo Gleiser, professor de Filosofia Natural e de Física e Astronomia no Dartmouth College, onde comanda um grupo ativo de pesquisa em física teórica, conta como lida com a ideia de uma teoria unificadora e como essa questão se relaciona com a noção de Deus.

Portal PUC-Rio Digital: No início do livro, o senhor diz que passou por uma mudança de visão em relação a teorias de unificação. Como foi isso?

Marcelo Gleiser: A coisa foi aos poucos. Afinal, não é fácil mudar de opinião sozinho. Durante meu doutorado, estudei teorias de unificação com total dedicação, mas com o passar do tempo, e depois de muitos artigos, fui refletindo com mais calma sobre o assunto, fui vendo o que realmente temos de provas e indicações de que essa “teoria final” existe e fui ficando cada vez mais cético. Hoje, vejo erros essenciais na própria noção de que uma teoria final possa existir.

P: Na opinião do senhor, qual a importância da desmistificação da perfeição da natureza e qual é o risco da busca por uma teoria unificadora?

MG: Acho que a importância dessa desmistificação é enorme. Esse mito vem de muito tempo e está associado à noção de que a natureza é uma criação divina. Se Deus é perfeito, sua obra também deve ser. Bem, basta dar uma olhada em torno para ver que a noção de perfeição é muito mais humana do que natural. Nós criamos objetos perfeitos, mas árvores, nuvens, montanhas não são perfeitas. Mesmo ao nível da física fundamental, vemos que assimetrias são muito importantes. Portanto, mesmo que a noção de simetria e ordem seja muito importante na ciência, não deve ser transformada em dogma. Como disse, o problema é que a noção de uma simetria perfeita, que a tudo abrange – o cerne de uma Teoria de Tudo – eleva a noção de simetria a um dogma. Seria como elevar a mente humana à uma capacidade divina de entender tudo o que existe. Acho que a ciência, mesmo que capaz de feitos espetaculares, está longe de nos oferecer algo como o conhecimento de tudo. Precisamos ter a humildade de aceitar que a ciência é uma construção da mente humana e que, como tal, tem suas limitações. Por exemplo, o fato de o nosso conhecimento do mundo depender de instrumentos não pode ser esquecido. Se nossos instrumentos de medida têm limitações, nossa visão do mundo também terá. Isso significa que nunca teremos conhecimento total da Natureza; o que rende a noção de uma teoria final intestável e, portanto, não científica.

P: Em seu livro o senhor aponta que não conseguimos criar a partir do nada. De onde vem a necessidade de buscar teorias explicativas?

MG: Conhecer o universo é conhecer a nossa casa, as nossas origens. Desde os primórdios da história o homem é fascinado por essas questões, tanto que as religiões sempre abordaram esse ponto da origem de todas as coisas. A ciência, hoje, faz algo parecido, mas dentro de seus padrões. Por isso o interesse no big-bang e na teoria da evolução. O autor Milan Kundera escreveu que as perguntas mais importantes são aquelas que não têm resposta. Somos seres curiosos e queremos tentar entender o máximo possível do mundo em que vivemos e da nossa relação com ele e com as pessoas que nos cercam. Não perguntar é como estar morto. A curiosidade é o que importa.

 Divulgação/Record

P: Na sua opinião, como essas questões se relacionam com a ideia de Deus?

MG: Antes de mais nada, porque existem muitas perguntas sem resposta. Acho que as pessoas em geral têm enorme dificuldade em aceitar que vivemos ignorantes de muitas coisas. Dentre elas, a mais importante é a morte. Como lidar com o fato de que, de repente, tudo o que somos deixa de ser? Temos que carregar conosco o martírio de sermos capazes de sentir o passar do tempo, sofrer com a perda de entes queridos e não poder fazer nada a respeito. Deus entra aqui e em muitas outras coisas. Mas existe uma alternativa; muitas pessoas não acreditam em Deus e vivem perfeitamente bem, são pessoas sérias, morais e cidadãos responsáveis. Não existe uma necessidade de se acreditar em Deus para se saber respeitar os outros.

P: Para o senhor, em que momento ciência e religião se separam e em que momento elas se unem?

MG: Ciência e religião respondem a anseios semelhantes, à nossa curiosidade de saber sempre mais sobre o mundo, sobre nossas origens, sobre quem somos e qual o nosso destino. A separação ocorre na estrutura. Enquanto a visão de mundo científica aceita apenas causas naturais para explicar o que acontece, a religião lança mão de causas sobrenaturais. Sob o aspecto científico, o sobrenatural não faz sentido: ou algo ocorre no mundo e, portanto, age sobre outras coisas, ou não ocorre. Por outro lado, é também importante aceitar que a ciência tem os seus limites e que existem questões que estão fora de seu modo de operar. Portanto, ambas podem coexistir contanto que seja claro o limite de cada uma.

P: Qual a necessidade, no seu ponto de vista, do homem criar uma relação entre Deus e a ciência?

MG: Veja bem, para Newton, Deus criou os planetas e os fez girar em torno do sol. Hoje, sabemos que não foi nada disso. Porém, deve ficar claro que a ciência não pode provar a existência de Deus ou a sua inexistência: a ciência só prova o que existe de natural no mundo. O sobrenatural não é sua província. As pessoas de fé falam em “sentir” a presença de Deus de várias formas. Eu sinto a espiritualidade a cada vez que olho para o mar ou para o céu, para uma flor ou uma criança.

P: Einstein diz que fé e razão precisam uma da outra. O seu livro não afasta essa hipótese, mas o senhor concorda com ela?

MG: Concordo no sentido de que a ciência não responde a tudo. Por outro lado, a espiritualidade que sinto pelo mundo não precisa passar pelo sobrenatural. Ela existe aqui e agora, produto de forças naturais, e de 14 bilhões de anos história cósmica. Para mim, não há nada mais fascinante.

P: Como surgiu a ideia de escrever o livro Criação imperfeita?

MG: Queria produzir uma obra que expusesse para o público não especializado essas ideias minhas sobre a importância da assimetria na Natureza e os limites do conhecimento. De certa forma, acho que é hora da ciência acordar para essa nova visão de mundo, onde a busca por uma perfeição absoluta é vista como uma crença e não como ciência. Além disso, existem razões mais práticas também; nossa visão de mundo forma opiniões e determina como vamos definir nosso futuro. Questões mais práticas são importantes agora, questões que todos temos que enfrentar como nossa sobrevivência neste planeta. Minha linha de raciocínio começa no big-bang e nas teorias da física, mas termina na humanidade e no nosso futuro.

P: Para a ciência, qual a importância de falar a língua do leigo, de simplificar?

MG: Existe um lado prático, que é simplesmente determinado pela necessidade de a ciência contar com o financiamento do governo – ao menos a ciência básica. O público precisa entender porque vale a pena financiar pesquisa básica, porque é importante termos pessoas que pensam sobre buracos negros, no big-bang e na composição material do cosmo. Se deixarmos de nos questionar sobre o que existe de fundamental no mundo deixamos de nos questionar sobre quem somos, quais as nossas origens... A ciência, hoje, consegue contar uma história fascinante sobre nossa existência, que começa 14 bilhões de anos atrás, passa pela origem da Terra há 4,6 bilhões de anos e chega até os dias de hoje. O outro aspecto é que ciência é parte da nossa cultura e determina, em grande parte, nossas vidas e nossa visão de mundo. Quanto mais falarmos sobre ciência, quanto mais ela se tornar parte do discurso público, mais bem informados seremos para tomarmos decisões que determinarão o nosso futuro.