Estimulado – e pressionado – pela realização da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, e a exemplo de cidades como Barcelona, São Francisco e Buenos Aires, o Rio de Janeiro pretende reestruturar a sua região central. Ali, o Porto se destaca, já que nasceu historicamente como a porta de entrada e saída do país. No entanto, é preciso que os projetos sociais, econômicos e de infraestrutura prometidos pelos eventos esportivos beneficiem o centro da cidade em maior escala, como avaliou o arquiteto Antônio José Pedral, membro do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB):
– O Porto está muito sofrido, por isso é um foco importante. Mas é necessário enxergar não só a área voltada para o cais, como o Morro da Conceição, o Morro da Providência, os bairros de Gamboa e Saúde, mas também para a área interna, como Catumbi, onde há, por exemplo, enchentes com frequência. Esses vazios urbanos têm que ser ocupados e revitalizados – ressaltou.
Daiana Alcântara, de 28 anos, trabalha no Centro e acredita que as obras e os novos sistemas de segurança e transportes prometidos para a região não vão permanecer depois de 2016. Para tentar amenizar temores como o de Daiana, nos dias 16 e 17 de maio a Prefeitura do Rio vai propor ao Comitê Olímpico Internacional (COI) a transferência, da Barra da Tijuca para a Zona Portuária, de parte das instalações esportivas e de apoio dos Jogos. O projeto, chamado de Porto Olímpico, inclui a construção da Vila de Mídia e dos dois centros de mídia impressa e de televisão em terrenos da Avenida Francisco Bicalho e arredores. O objetivo é que os equipamentos requalifiquem uma região completamente degradada, com terrenos vazios e prédios abandonados. A proposta também inclui a mudança de local das provas de boxe, levantamento de peso, tênis de mesa e badminton. Originalmente previstas para o Riocentro, elas seriam realizadas em galpões no Porto ou até mesmo na Cidade do Samba.
Junto da Prefeitura, o IAB desenvolveu estudos sobre a possível localização dessas instalações no Porto. Segundo a instituição, a mudança seria possível porque a região portuária tem amplos terrenos disponíveis e a legislação urbanística da área foi modificada recentemente, permitindo construções de prédios de até 50 andares.
Antônio José Pedral participou do grupo elaborador da primeira proposta, vencedora, que concentrava os Jogos na Barra. Ele era, na ocasião, representante da Secretaria Municipal de Transportes.
– Havia, na época, uma consultoria internacional que dava as diretrizes e desejava que a maior parte das atividades se concentrasse na Barra. O conceito era levar as Olimpíadas para aquela área, e, assim, valorizar terrenos e atender às demandas do mercado imobiliário – afirmou.
Para o arquiteto, a mudança que a Prefeitura vai propor beneficiará toda a área que compreende os bairros de Santo Cristo, Gamboa e Saúde e setores de São Cristóvão, Centro e Cidade Nova. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região é um dos menores do Rio: ocupa a 24ª posição no ranking das 34 regiões administrativas, segundo o Instituto Pereira Passos (IPP). Para alavancar o desenvolvimento da área, a Prefeitura estuda a construção de um parque tecnológico. O Instituto Gênesis da PUC-Rio seria um dos parceiros e o projeto deve ser divulgado até o próximo mês.
Segundo Pedral, para uma verdadeira revitalização da região, é necessário misturar os usos das edificações: mesclar trabalho, moradia, comércio. Em Barcelona, por exemplo, a ocupação das zonas centrais da cidade foi fundamental para o sucesso dos Jogos Olímpicos de 1992. “Levar transporte para a Barra é mais caro do que melhorar o sistema do Centro”, ressaltou.
Para o coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio, Fernando Betim, a preocupação social é o primeiro passo de um projeto arquitetônico, caso contrário serão construídos grandes “elefantes brancos”.
– A cidade é um corpo, com partes interligadas. Se não olharmos para isso, as obras serão inúteis – afirmou – O processo participativo da população é muito importante porque ressalta uma sensação de pertencimento por parte dos cidadãos. Só há revitalização bem sucedida quando a população participa.
O que preocupa o professor é que o conceito de revitalização muitas vezes passa pela ideia de “museificação”, tentativa de transformar as áreas decadentes em pontos de visitação, e não de uso efetivo. Betim acredita que, se os habitantes da cidade não puderem opinar sobre o projeto e estar a par dele, há grande risco de a cidade ser maquiada em vez de revitalizada.
– É preciso voltar a atenção para lugares como o Morro da Conceição, um espaço histórico e que hoje é ponto de especulação imobiliária. Qualquer projeto lá pode fazer com que interesses econômicos se sobreponham aos sociais – alertou.
Segundo o projeto Porto Maravilha, divulgado pela Prefeitura, a participação da comunidade será constante. Haverá três reuniões com cerca de cem moradores da área, apresentação ao Conselho Municipal de Política Urbana (Conpur) e audiências na Associação Comercial do Rio de Janeiro e na Federação das Indústrias do Estado (Firjan). As pessoas também podem tirar dúvidas e opinar por meio do endereço eletrônico do projeto: portomaravilha@pcrj.gov.br.
A professora do Departamento de Engenharia Civil da PUC-Rio Jaqueline Passamani concorda com Pedral: ela também acredita que a mudança de algumas instalações para o Centro contribuirá para a revitalização dessa área da cidade. Mas, alerta, os prováveis benefícios devem vir acompanhados por cuidados necessários.
– Vamos esperar que não aconteçam os mesmos problemas imobiliários que houve na Vila do Pan de 2007. Outro ponto preocupante é que concentrar o movimento em torno das Olimpíadas no Centro, um lugar que já é ponto de grande convergência de pessoas, pode torná-lo caótico – ressalvou – A melhoria no transporte é essencial para que isso não aconteça.
Quanto aos problemas imobiliários, segundo Antônio José Pedral, do IAB, construções como os apartamentos que vão abrigar jornalistas com certeza entrarão no mercado, mas deve haver uma política pública bem pensada para que as classes populares possam ter acesso a essas moradias.
Em relação às mudanças na área de transportes, o arquiteto acredita que não adianta apenas retirar carros e ônibus da Rio Branco, como a Prefeitura vai fazer a partir do dia 26 de junho, com o objetivo de transformar a avenida numa espécie de boulevard. O parque urbano deve seguir o exemplo do que Nova York fez há um ano na Times Square, onde um trecho da Broadway foi proibido ao trânsito. A iniciativa exigiu a reorganização de todo o transporte no coração da cidade. A Prefeitura do Rio ainda não informou a duração do período experimental.
– Toda a estrutura do nosso sistema de transportes, que é a pior em comparação a de qualquer grande cidade do mundo, deve ser licitada novamente. É preciso, por exemplo, voltar os olhos para o metrô: aumentar o número de vagões e diminuir o intervalo dos trens. Veículos leves sobre trilhos (como bondes) seriam uma solução para compensar a demanda por carros – sugeriu Pedral.
Roberto Almeida, de 25 anos, trabalha na rua México há cinco e demora cerca de uma hora para ir de sua casa no Méier ao Centro. Sempre de ônibus.
– Se vier de carro, consigo chegar bem mais rápido, mas nunca encontro espaço para estacionar – disse – O projeto de revitalização tem que ser muito bem pensado para que se obtenha uma melhoria permanente dos meios de transporte.
Pedral lembra que o Centro do Rio tem cerca de 400 anos de história e o automóvel foi criado há apenas cem. Portanto, a região não foi pensada para comportar a quantidade de carros que por ela hoje circulam; apenas ônibus são cerca de 1,8 mil por dia.
– O transporte individual não pode ser privilegiado, senão a tendência é piorar o caos no tráfego. Quanto mais estacionamentos se cria, mais transporte individual se atrai. Para entrar em Londres e em algumas grandes cidades da Holanda com carro de passeio paga-se até pedágio, visto o incômodo que isso traz para o trânsito – disse.
A inadequação do sistema viário e também da rede de esgotamento sanitário são, para o professor do Departamento de Engenharia Civil da PUC-Rio Antônio Roberto de Oliveira, os dois maiores problemas do Centro do Rio. Segundo ele, o Brasil é um dos grandes países do mundo em engenharia, o que lhe confere a tecnologia necessária para “resolver o problema”.
– É preciso apenas existir a vontade política – salientou – Não se pode investir no embelezamento da cidade e esquecer a infraestrutura. Para revitalizar o Rio, é preciso pelo menos de três a quatro anos, aproximadamente o tempo que Barcelona levou.
De acordo com a professora Jaqueline Passamani, a falta de manutenção e proteção policial e o transporte ineficiente são alguns dos aspectos que mais atrapalham o desenvolvimento da cidade.
– Uma pessoa que mora na Zona Oeste e trabalha no Centro perde quatro horas em transporte, numa hipótese boa. Hoje, o foco das pessoas é procurar morar próximo do local de trabalho, para ganhar qualidade de vida – afirmou – Há alguns anos, houve um empreendimento pioneiro de condomínios na Lapa cujo lançamento foi um sucesso. O que ele preconizava era justamente a qualidade de vida.
Ela acredita que a diminuição da violência é primordial para a valorização de imóveis não só no Centro, mas em vários outros pontos importantes e históricos da cidade, como o Catete. Para isso, além da atuação da polícia, é necessário incentivar a construção de residências.
– O ideal é transformar a área central num espaço, além de comercial, bastante residencial. Todas as grandes cidades do mundo têm sua área central desenvolvida, porém, no Rio, isso não acontece porque a ocupação do Centro é restrita a um horário comercial.
O consultor de imagem Arley Alves da Silva, de 25 anos, sabe bem o quão perigoso pode ser trabalhar na região. Ele já foi assaltado duas vezes, sempre em lugares bastante movimentados: na Uruguaiana e na rua do Rosário.
– A gente anda com medo, olhando para os lados. [O esforço para a revitalização] deveria ser natural, independente da Copa ou das Olimpíadas – disse.
Eva Diniz, 35 anos, também se assusta com a falta de segurança do Centro. Dentre as situações traumáticas pelas quais já passou, as tentativas de roubo de celular são as mais comuns.
– Uma vez, tive que praticamente me jogar dentro de um táxi para não ser assaltada – contou.
Para Jaqueline, também é preciso que a freguesia do Centro (Estácio, Catumbi, Praça da Bandeira, São Cristóvão) seja revitalizada, mas, segundo a arquiteta, essas áreas já são foco da iniciativa privada, uma vez que já há grande procura por moradia nesses locais.
– Cada vez mais, as empresas particulares estão se voltando para o Centro e áreas próximas. De cinco anos para cá, os preços imobiliários em São Cristóvão, por exemplo, subiram muito e o bairro disparou em lançamentos de imóveis comerciais.
Para a professora, é ainda necessário mudar a burocracia para a aprovação de projetos de reforma e manutenção em patrimônio histórico, que, ao invés de ser um benefício, às vezes vira um empecilho. Segundo ela, vários países da Europa também têm seus prédios antigos com fachadas preservadas, mas, dentro deles, há instalações modernas, com todo o conforto atual.
– No Centro do Rio, há uma série de restrições para a aprovação de projetos de reforma, não apenas na Zona Portuária, mas em todo o bairro da Lapa. Quem passa por ali vê prédios caindo aos pedaços que não podem ser reformados porque as fachadas têm que ser preservadas exatamente do jeito que estão. O processo de aprovação de qualquer reforma no exterior ou no interior de um prédio assim leva anos, o que desestimula os profissionais a trabalharem com isso.
No entanto, a arquiteta alerta que, agora, o foco deve ser as obras da Copa de 2014, já que, para o mundial, nenhuma construção ou reforma presente no planejamento começou a ser feita.
– Não é apenas uma questão de urbanismo, mas de política. Tudo o que deve obrigatoriamente ser definido, como o sistema de distribuição de águas pluviais e iluminação, só o será no próximo ano, depois da Copa da África e das eleições – concluiu.