Em 17 de abril de 1975, teve início, no Camboja, um dos piores momentos da história mundial. Durante quatro anos, os cambojanos viveram sob o terrível regime maoísta do Khmer Vermelho, dirigido pelo líder marxista Pol Pot. A história de lutas no Camboja é antiga. Até 1953, o Camboja era administrado pelo governo francês como parte da colônia da Indochina Francesa. Nesse ano, o país ganhou sua independência no reinado de Sihanouk Norodom, que governou o Camboja com amplos poderes, mas enfrentou uma forte oposição de esquerda. Em 1970, o primeiro-ministro Marechal Lon Nol aproveitou a viagem de Sihanouk a Moscou e a Pequim para dar um golpe de Estado e depôr o governante ausente. Lol Nol ficou no poder até abril de 1975, quando o exército do Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot, entrou na capital Phnom Penh e tomou o poder no Camboja.
Os quatro anos que se seguiram formaram um regime do terror. As cidades foram evacuadas, e os cambojanos foram levados ao campo para o trabalho forçado. O partido é acusado de desrespeitar os direitos humanos, massacrar a oposição, assassinar intelectuais, pessoas consideradas ricas e suspeitos de se relacionar com o governo anterior. O objetivo era eliminar o capitalismo, a cultura ocidental, a vida da cidade, a religião, e as influências estrangeiras.O regime terminou em 1979, quando o Vietnã invadiu o Camboja com o intuito de acabar com os conflitos contra o exército do Khemer Vermelho na fronteira. Em 7 de janeiro de 1979, Pol Pot foi deposto e os vietnamitas instalaram um governo provisório. O líder do Khmer Vermelho, em território tailandês, iniciou um novo conflito contra a sucessão do governo do Camboja, que só teve fim com a intervenção da Organização das Nações Unidas (ONU), que iniciou um processo de democratização no país.
Até hoje o governo cambojano conta o número de vítimas do massacre perpetrado pelo Khmer Vermelho no país. Estimativas apontam o assassinato de mais de 2 milhões de pessoas no período de quatro anos do regime. A professora Var Hong Ashe foi uma das poucas sobreviventes. Ela nasceu no Camboja e foi testemunha da mudança política e dos massacres que ocorreram naquele período. O depoimento abaixo foi dado ao site britânico openDemocracy e o Portal PUC-Rio Digital obteve permissão exclusiva no Brasil para reproduzi-lo:
“Eu nasci e cresci no Camboja e vivi na cidade de Takeo, ao sul da capital Phnom Penh. O país era governado pelo rei Sihanouk Norodom e estava independente havia cinco anos. Em março de 1970, Sihanouk foi derrubado em um golpe de Estado levado à frente pelo general Lon Nol, que declarou o país uma república sete meses mais tarde. Isso, juntamente com o avanço do conflito no vizinho Vietnã, jogou o país numa guerra civil.
Minha família era bastante privilegiada. Meus pais viviam uma vida confortável e em 1975 eu estava casada e tinha duas filhas. Meu marido trabalhava para a Unesco, e eu era professora de inglês em uma escola de Phnom Penh. Em 17 de abril de 1975, nós aplaudimos o desfile dos soldados vitoriosos do Khmer Vermelho nas ruas da capital. Todo mundo estava tão feliz pensando que era o fim da guerra civil, que durou cinco anos e havia gerado muito sofrimento. Nós não poderíamos imaginar o que estava por vir.
Algumas horas mais tarde, começou a nossa tragédia. O Khmer Vermelho ordenou que nós deixássemos a cidade em apenas três horas e que não levássemos nada conosco. Essa ordem foi dada a todas as cidades, pequenas ou grandes, em todo o país. Naturalmente, as pessoas faziam o que mandavam fazer.
Deixei minha casa com minha mãe (que estava ficando cega após uma operação no olho), minhas duas filhas, três irmãs e dois irmãos. Meu pai e meu marido não estavam conosco. Meu pai, um coronel e chefe de um regimento de 2 mil soldados ficou na linha da frente e o Khmer Vermelho o matou junto com outros oficiais quando eles se renderam. Meu marido estava em Paris durante este período, mas foi morto quando retornou ao Camboja.
Cinco horas se passaram, um dia, dois dias, três dias .... Percebemos que era uma viagem sem retorno. Os soldados do Khmer Vermelho disparavam tiros de metralhadora para o ar para nos forçar a seguir em frente sob o intenso calor (abril é o mês mais quente do ano no Camboja). As crianças choravam de fome e sede, mulheres grávidas davam à luz na beira da estrada. Para buscar comida, jovens invadiam casas que estavam vazias desde que seus proprietários tinham sido evacuados antes de nós.
Vimos cenas insuportáveis: cadáveres em decomposição daqueles que ousaram questionar as ordens ou se recusaram a satisfazer os caprichos do Khmer Vermelho, pessoas de idade que pediam para não serem deixadas para trás. As crianças gritavam, tendo perdido os pais. Os feridos que esperavam por tratamento foram obrigados a deixar o hospital e mal conseguiam se manter de pé, com suas feridas ainda abertas.
Todos estavam em um estado físico deplorável e um estado de espírito totalmente impotente. Ninguém podia ajudar os outros. O Khmer Vermelho, eu compreendi mais tarde, estava destinado a eliminar os ricos, os intelectuais e qualquer pessoa que tivesse alguma formação educacional - como médicos, engenheiros e professores, a maioria dos quais viviam na cidade. Para o Khmer Vermelho, essas pessoas faziam parte de um regime ditatorial e corrupto que exploravam os pobres. Eles tentaram destruir tudo o que eles achavam que pertencia a esse mundo: imóveis, carros de luxo, moradias, geladeiras.
Após cerca de um mês, completamente exaustos, paramos em uma aldeia onde o Khmer Vermelho passou a nos integrar à vida dos habitantes rurais.
Ainda estávamos na estação seca. Minha família e outras pessoas foram designadas a escavar os canais de irrigação, lagoas, represas e cortar árvores na floresta e na selva para o plantio dos pomares. Quando a estação das chuvas começou, éramos acordados às 4h da manhã para trabalhar nos campos no plantio do arroz. Éramos autorizados a voltar para casa às 7h da noite para comer. Também éramos obrigados a participar de sessões de lavagem cerebral entre 9h e 11h da noite.
A situação continuou assim durante toda a época de colheita. Durante o dia, recebíamos uma pequena tigela de mingau de arroz e sal. Depois, a tigela foi reduzida a duas colheres de sopa de mingau duas vezes por dia. Todo mundo ficou muito magro e extremamente frágil.
O Khmer Vermelho nos mantinha em movimento e andávamos de aldeia em aldeia, de modo que nós não poderíamos organizar uma insurreição. Geralmente fazíamos as viagens a pé ou em carro de boi, mas em uma ocasião fomos transportados de trem. A longa e lenta viagem de trem durou três dias e duas noites. Os vagões estavam cheios e nós ficamos como sardinhas em lata.
Um bebê morreu. No próximo vagão uma idosa também morreu. As autoridades se recusaram a parar o comboio por razões de segurança. Com alguns viajantes reclamando, e depois de muito tempo, as famílias dos mortos não tinham outra opção senão atirar os corpos para fora da janela. Todos ficaram quietos por um longo tempo, enquanto se perguntavam quem seria a próxima vítima.
Com o tempo, mais e mais gente morreu - de fome, de doença, de pragas, de pura exaustão, mas acima de tudo, pelos massacres cometidos pelo Khmer Vermelho. Eles matavam pessoas por pretextos ridículos: pessoas que usavam óculos, que sabiam ler ou sabiam como abrir a porta de um carro, ou mesmo por ter uma marca branca no pulso (um sinal de ter usado um relógio). Para o Khmer Vermelho, todos esses eram sinais de que a pessoa pertencia a uma classe rica.
Era comum ver um homem cujo rosto estava pálido, tremendo de medo, desfilando pela vila com as suas mãos atadas atrás das costas, guardada em ambos os lados por soldados do Khmer Vermelho com machados na mão. Era terrível: todos sabiam que eles estavam indo decapitar esse homem. A cena servia so seu propósito de nos avisar que o Khmer Vermelho tinha poder absoluto. Nós vivíamos um dia após o outro. Não tínhamos ideia do que poderia acontecer durante a noite ou no dia seguinte.
Como é que eu consegui sobreviver? Não foi fácil. Eu sempre tive que manter a minha presença de espírito e estar alerta sobre como enganar o Khmer Vermelho. Eles nos testavam constantemente e sem aviso prévio. Em duas ocasiões eu consegui enganá-los. Na primeira vez, um soldado Khmer Vermelho me deu um pedaço de papel para ler. Pensei rápido, segurei a folha de cabeça para baixo e perguntei o que ele queria que eu fizesse. Ele riu e disse que eu era estúpida por tentar ler de cabeça para baixo.
Na segunda vez, uma das minhas ex-alunas me reconheceu na frente de um soldado e se dirigiu a mim como professora. Ela logo percebeu que tinha cometido um erro terrível. O soldado me olhou fixamente. Mil pensamentos passaram pela minha cabeça em um instante. Eu precisava reagir muito rapidamente. Naquele momento, lembrei que a palavra professora em cambojano também pode significar "mulher sábia". Fingi ser bastante calma e comecei a abordar o soldado sorrindo: "Agora o que você acha disso? A minha profissão era ser uma cartomante, e eu era uma das melhores videntes na minha aldeia".
Quando ouviu isso, o soldado me pediu para ler a palma da mão e prever seu futuro. Então lembrei que minha mãe tinha me dito uma vez: os camponeses no Camboja são crédulos. Você só precisa conhecer um pouco da sua mentalidade. Quase todos os soldados tinham sido camponeses - alguns deles tão jovens que não podiam sequer levar seus rifle corretamente.
Eu lembrei de minhas experiências em reuniões de pais, onde conheci pais de todas as classes sociais, lembrei de meus estudos de psicologia na faculdade de Phnom Penh e de alguns livros de astrologia que eu tinha lido, para enganar o soldado. Foi o suficiente para convencê-lo que eu era realmente uma vidente.
Acho que nesse dia Deus estava comigo. Devido a esse incidente terrível, eu pude continuar a desempenhar o papel de vidente. Eu até ganhei alguma vantagem com isso: os soldados, cujos futuros eu previa, me davam em "troca" pequenas quantidades de alimentos que ajudaram a manter a minha família viva.
O exército do Khmer Vermelho continuou com freqüência a nos deslocar de um lugar para o outro. Minha família acabou em uma vila distante cercada pela selva, no sopé das montanhas Cardamomo, perto da fronteira com a Tailândia. Ouvimos rumores distantes que o Exército vietnamita havia invadido o Camboja e lutava contra o Khmer Vermelho. A chegada de soldados vietnamitas em nossa região confirmou que isso era verdade.
Eu tinha aprendido a falar vietnamita em Phnom Penh, e, rapidamente, fiz amizade com as forças do Vietnã estacionadas na aldeia. Eles deram comida para meus filhos e vitaminas e remédios para minha mãe. Mas a sorte não durou muito: os soldados tiveram que voltar e o Khmer Vermelho me acusou de ser uma espiã dos inimigos. Eles me procuravam e soube que queriam me matar. Um bom amigo me avisou, e eu consegui me esconder. Minha mãe tinha que fingir que estava muito zangada comigo porque eu tinha abandonado meus filhos para seguir os vietnamitas. Ela chorou (de fato eram lágrimas de medo) e disse que eu era uma filha ingrata. Isso convenceu os soldados do Khmer Vermelho.
Um dia, uma menina veio me ver. A moça agia de maneira estranha, olhando de um lado para outro e sussurrando. Eu estava ficando com medo quando ela me garantiu que tinha uma boa notícia.
Seu irmão Yom, que sabia como alcançar a fronteira, tinha acabado de chegar da Tailândia, em uma missão para encontrar a família de um amigo do Khmer, um ex-piloto de helicóptero que já tinha vivido na Tailândia. Por acaso, a esposa do piloto tinha o mesmo nome que eu, duas filhas em torno da mesma idade que as minhas e uma tia cega. A menina estava convencida de que eu era a esposa do piloto. Eu disse a ela que eu não era a pessoa que seu irmão estava procurando, mas ela insistiu em acreditar que, sem dúvida, eu era essa pessoa.
Depois que a menina saiu, minha mãe e eu discutimos o que fazer. Se fosse uma armadilha do Khmer Vermelho, por que eles não iriam me prender diretamente? Talvez a menina fosse honesta e só quisesse ajudar seu irmão a realizar sua missão. No final, pensei que eu tinha uma chance de sobreviver ao Khmer Vermelho tentando escapar para a Tailândia.
Poucos dias depois, as tropas vietnamitas voltaram para a área e o Khmer Vermelho fugiu mais uma vez para as montanhas. A irmã de Yom veio me ver novamente. Resolvi seguir o plano de seu irmão. Conheci-o e ele me disse que era impossível trazer a minha mãe conosco. Eu tive que concordar. Foi então que decidi levar comigo minhas duas filhas e uma de minhas irmãs, deixando duas outras para cuidar da minha mãe.
Yom sugeriu que eu poderia me beneficiar da saída repentina do Khmer Vermelho, juntamente com suas próprias famílias, fingindo ser parte de uma comitiva do exército. Nós nos reunimos na vila em que Yom estava, não muito longe da minha. Ao cair da noite, mais de cem pessoas (todos eles parentes do vietnamita) entraram em uma trilha em direção à fronteira. Todos nós estávamos a pé. No caminho, ouvimos um barulho semelhante ao de um pássaro. Era uma senha do Khemer. Felizmente, Yom sabia disso e respondeu avisando que nós também éramos do Khmer Vermelho em processo de evacuação.
Às 5h da manhã, ouvimos o galo cantar. Embora estivesse completamente exausta e faminta, meu coração se encheu de alegria, porque sabia que finalmente havia chegado a uma aldeia tailandesa. Estávamos quase livres. Antes de desaparecer, Yom nos instruiu sobre o que dizer e fazer quando nos encontrássemos com as autoridades tailandesas. A polícia local nos enviou em caminhões do exército a um campo de refugiados. Quando cheguei ao acampamento, eu respirava intensamente, como se eu nunca tivesse sido tão livre na minha vida.
Pela primeira vez em quatro anos, provei a água da torneira e comi uma tigela de arroz com carne. Tive que dizer a mim mesma repetidas vezes que não era um sonho. Após esse êxtase, eu me ajoelhei para agradecer a Deus que me protegeu e salvou a minha vida.
No campo de refugiados, eu conheci Robert Ashe, um jovem inglês que trabalhou para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Um ano depois, em uma pequena aldeia em Gloucestershire, chamada de Paraíso, nós nos casamos.
Fiquei por muito tempo traumatizada pela crueldade, a covardia e desumanidade do Khmer Vermelho. É doloroso, mesmo agora, recordar e escrever estas memórias. Desde então, já vivi outras vidas, que incluem um regresso ao Camboja para revisitar o que restou do meu lar, minha família e meu país. Tudo o que eu passei, e todos aqueles que morreram ainda me assombram.”
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