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Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2024


Mundo

Secularismo na Turquia vive pior crise de sua história

Juliana Oliveto - Do Portal

26/03/2010

 Fotos: Getty Images

Pelo menos 50 militares foram presos na Turquia, desde o início do ano, suspeitos de planejar um golpe de Estado em 2003. As prisões são parte de uma suposta conspiração chamada de Balyoz, investigada pelo governo turco e tornada pública em 22 de fevereiro deste ano. A conspiração seria um plano desenvolvido por militares da rede oposicionista conhecida como Ergenekon, investigada por Ancara há sete anos. Mais de 400 pessoas, supostos membros dessa organização de oposição, entre intelectuais, jornalistas e políticos, já foram acusadas de conspirar para derrubar o atual governo.

Com a prisão dos oficiais, o governo do primeiro-ministro Tayyip Erdogan e do presidente Abdullah Gül, do Partido de Justiça e Desenvolvimento (AKP), aumentou os rumores de uma divisão crescente entre o regime de tendência islâmica e os militares, tradicionalmente vistos como guardiões da tradição secular do país.

Desde 1923, quando a república foi instaurada na Turquia pelo oficial do exército Mustafa Kemal Atatürk (“pai dos turcos”), o país viveu um forte processo de ocidentalização. O exército passou a ser o fiel aliado do governo, garantindo a manutenção do Estado laico. Entre 1960 e 1997, os militares foram responsáveis pela derrubada de quatro governos considerados como ameaças ao secularismo turco.

O professor Márcio Scalercio, do Departamento de Relações Internacionais da PUC-Rio e especialista em Oriente Médio, reafirmou a posição de poder do exército no país e disse que uma ameaça mais grave ao Estado laico pode gerar uma grave crise na região.

– O fiador do sistema é o exército. A Turquia é um país muçulmano, o AKP representa a parcela mais islamizada da população, o que cria certa animosidade. Ao mesmo tempo, o exército não abre mão de sua parcela de influência.

Daniel Pipes, diretor do Middle East Forum, uma organização sem fins lucrativos que analisa a situação do Oriente Médio, ressaltou, em entrevista por e-mail ao Portal PUC-Rio Digital, a importância do secularismo para o país.

– Manter a religião fora do governo tem sido crucial para a Turquia ser o mais bem sucedido país muçulmano em todos os sentidos, das liberdades individuais até os direitos políticos e o crescimento da economia – analisou.

Para o professor Scalercio, a islamização atrapalharia as intenções da Turquia de entrar para a União Européia. O país, que tem seu território dividido entre a Europa e a Ásia, apresentou sua candidatura oficial ao bloco em 1987, mas as negociações só começaram em 2005. Ele acredita que o fato de haver uma opinião pública que não considera os turcos como europeus pode atrapalhar.

– A Turquia é um país islâmico e, na União Européia, a maioria é cristã. Tudo é feito para lembrar que os turcos são muçulmanos, e a expressão ganha espaço. Ao mesmo tempo, é um país membro da Otan, então os europeus terão que argumentar muito bem para recusar – explicou.

Com as reformas feitas pelo governo, na intenção de facilitar a aceitação do país, o poder dos militares foi reduzido, aumentando o das instituições. O primeiro-ministro Erdogan anunciou, em fevereiro, planos para reformar o Poder Judiciário e a Constituição – ambos herdados do golpe militar de 1980.

A aceitação do AKP nas urnas, em 2007, chegou a 47%, o que estimulou seus líderes a defender com mais afinco a ideia de uma república islâmica, o que certamente levaria a um desentendimento com os militares. No entanto, atualmente a popularidade do partido não ultrapassa os 30%, apontando para um possível fim da hegemonia do AKP na política turca nas próximas eleições, em 2011.

Em um artigo intitulado Crisis in Turkey, Daniel Pipes reforça a importância da Turquia no mundo islâmico e indica que o resultado dessa crise pode trazer consequências para todos os muçulmanos, principalmente àqueles que querem uma alternativa ao islamismo fanático. No mesmo sentido, o professor Márcio Scalercio afirmou que, caso a opção seja por uma visão mais religiosa, isso pode se refletir no Oriente Médio com um isolamento político ainda maior de Israel.

No final de fevereiro, o vice-primeiro-ministro Bulent Arinc aumentou a polêmica ao afirmar que “as coisas melhoram quando aqueles que nunca responderam por seus atos começam a responder”, referindo-se aos militares. A resposta da oposição veio do líder do Partido Popular Republicano, Deniz Baykal, que perguntou: “Por que vocês esperaram sete anos?”. Para alguns especialistas, as investigações são uma forma de silenciar a oposição laica no país.