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Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2024


Cidade

Cidade do Samba, um desfile de variedades

Clarissa Pains - Do Portal

04/02/2010

 Mauro Pimentel

Os números da festa, considerada a maior manifestação popular do país, impressionam. Cerca de 500 blocos de rua tomarão os quatro cantos da cidade maravilhosa. No Sambódromo, pelo menos 60 mil pessoas por noite assistirão aos desfiles. A Cidade do Samba, com barracões de 14 escolas cariocas, acompanha a grandiosidade. Três pavimentos de 600 m² e o último piso de 2700 m² abrigam butiques, setores administrativos e de criação, almoxarifados e ateliês de costura. No total, a área tem 92 mil m², o equivalente a dez campos oficiais de futebol. Até São Sebastião, padroeiro da cidade maravilhosa, está lá. Afinal, o período de festas é regido pelo calendário cristão. Espaço, na verdade, é o que não falta para o desfile de ambiguidades que a folia proporciona. Foliões e trabalhadores, apaixonados e indiferentes, tecnologia e artesanato, sagrado e profano. Na Cidade do Samba, tudo entra na dança.

Gente que só se diverte

Encantados com as fantasias expostas na praça central da Cidade do Samba, o brilho nos olhos dos visitantes supera o dos paetês. Para esse pessoal, cujo único trabalho é apertar os botões da câmera fotográfica, o terreno é puro ponto turístico.

A norte-americana Roberta Small, por exemplo, estava saindo da Cidade, num ônibus lotado de turistas, quando nossa equipe chegou. Sem cerimônia, ela mostrou uma foto do bumbum de uma passista. “A melhor foto do ano”, disse empolgada. A imagem foi registrada durante um show realizado para os visitantes, uma prévia do desfile. O olhar estrangeiro consagrou o bumbum da mulata como o que havia de mais interessante na folia.

Luz Rebeca Lezme é paraguaia e mora há dois anos no Rio. No entanto, nunca participou do carnaval carioca. Para ela, tudo é novidade: “Já desfilei na minha cidade, mas lá a festa não é tão grande e organizada como aqui. As escolas são pequenas, como blocos de rua”.

Gente que vive do Carnaval

Mas, Carnaval não é só diversão. No primeiro mês do ano, o cheiro dos barracões das Escolas de Samba do Rio de Janeiro é de tinta fresca e de faísca de soldagem. Um cheiro até agradável quando misturado ao espetáculo de cores, esculturas gigantes e pessoas sorrindo, dançando enquanto trabalham. Ferreiros, carpinteiros, aderecistas, carnavalescos, designers... Não há ninguém parado.

 Mauro Pimentel

Glória Moraes passou mais da metade da vida envolvida com a indústria da folia: 27 dos 50 anos de idade que completa em 2010. Aos 13, desfilou pela primeira vez, mas há 27 anos dá preferência a “colocar a escola na avenida”.

– Se der para desfilar também, ótimo. Mas fico feliz só de ver meu trabalho saindo. Tenho tantos ciúmes dos carros que vou com eles até a avenida para tomar conta.

Às vezes, ela até dorme no barracão para não perder tempo no trajeto de ida e volta para casa, em Mesquita. Para Glória, Carnaval não é apenas seu ganha-pão ou um mero feriado, mas uma época em que tudo se transforma em “doce ilusão”. Ela se delicia ao falar do quanto se diverte trabalhando.

– Mesmo se não der para trabalhar com carros alegóricos, que é o que mais gosto, vou para a costura ou para qualquer outra função, mas tenho é que estar dentro da festa – afirma.

Wellington Souza, 37 anos, trabalha há 17 com alegorias, oito horas por dia. Ele define sua função: “Construir o sonho do carnavalesco”. No dia anterior, havia feito mais de três mil peças de decoração.

– Carnaval é minha vida. Fiquei um ano afastado e até adoeci. É maravilhoso ver o que você ajudou a construir entrando na avenida. Quero que todos vejam o meu trabalho, mas, infelizmente, quem não tem dinheiro, não pula o carnaval na apoteose – arremata.

Gente que não gosta tanto assim

Ivan da Costa promove o espetáculo Forças da Natureza, que recebe ao todo cerca de 800 pessoas nas noites de quinta-feira que antecedem o Carnaval. Mesmo com a presença de tantos foliões – em sua maioria estrangeiros –, ávidos por experimentar um pouco da badalada folia verde e amarela, ele não é um apreciador das festividades.

– Em época de Carnaval, se eu pudesse, viajava. Trabalho com isso, mas não gosto. O Carnaval já foi melhor, era mais ‘povão’, mais espontâneo. Hoje é uma indústria.

Já sua esposa e sócia, Leila Viana, “adora” a festa. Para ela, assim como para grande parte dos brasileiros, é uma das épocas mais esperadas do ano.

 “Samba my life”

No dia de nossa visita, o músico Marcus César estava gravando seu primeiro CD solo quando recebeu um telefonema chamando-o para tocar na Cidade do Samba. Desde 2005, ele toca em todos os ensaios técnicos de sábado. Também tem um bloco chamado “Hi, é Carnaval!”, que nasceu há oito anos na UFRJ, onde até hoje são realizados os ensaios.

– Durmo duas horas por noite, quando consigo. Minha vida é um carnaval. Faço mil coisas ao mesmo tempo.

 Mauro Pimentel

Sandro Rauly dedicou metade dos seus 28 anos a preparar o espetáculo. Ele faz as roupas do ensaio técnico e as fantasias, e organiza as pessoas na avenida. Enquanto conversávamos, ele terminava a blusa da rainha da bateria da Grande Rio, Paola Oliveira. Já havia feito mais de 200 daquela. Seu trabalho é todo manual: paetê por paetê, miçanga por miçanga, e cada blusa deve ser diferente. Dorme cerca de três horas por noite.

– Nesses últimos dias, tenho falado com a família mais por telefone. Mas amo o que faço, e é uma terapia também, me relaxa.

Ele pensa em fazer mais uma tatuagem. Só falta decidir o desenho, a frase ele já tem: “Samba my life”.

A Cidade do Samba ferve em janeiro. Seja devido à grande quantidade de produção (como os trabalhadores não se cansam de repetir: “O Carnaval não pode esperar. No dia do desfile, tudo tem que estar pronto”), seja devido às altas temperaturas deste ano, próximas aos 50°C, que raramente dão trégua ao Centro do Rio.

Samba high tech

Foi-se o tempo em que se associava “barracão” a “trabalho artesanal”. Para fazer um show digno da passarela do samba, há muito trabalho mecânico, mas também digital, com direito a computadores e tecnologia importada. Luz néon aparece como o grande trunfo de 2010. A Unidos de Vila Isabel vai  Mauro Pimentel usar um carro alegórico com mais de 400 metros de néon, cerca de 350 mil watts de energia. Cada carro recebe uma iluminação diferente. A sensação esperada, na avenida, é de que eles estejam “flutuando”.

A Acadêmicos do Grande Rio também segue o embalo. Duas cortinas de led – conjunto de micro-lâmpadas – vão multicolorir um dos carros da agremiação de Caxias. A improvisação e a espontaneidade das rodas de partido-alto de décadas atrás dão lugar à rígida marcação de um moderno espetáculo visual.

Uma tentativa de resgatar a história

Por volta de 1770, o Marquês do Lavradio transferiu o mercado de escravos da Praça Quinze para a região hoje ocupada pelos bairros de Gamboa, Saúde e Santo Cristo. Mais tarde, a área comporia a chamada Pequena África, berço do samba urbano. Na ida e na chegada do trabalho forçado nas minas e lavouras, os negros batucavam e cantavam para matar saudades da África. Nasceram assim as primeiras rodas de samba.

Em 1999, inspirando-se em projetos caribenhos para atrair turistas a viagens de cruzeiros, a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) comprou, em parceria com a Prefeitura, um terreno de 130 mil m² de propriedade da Rede Ferroviária Federal, próximo aos armazéns do Porto. As obras começaram em 2003 e dois anos depois as escolas puderam ocupar seus novos centros de produção. Com a criação da Cidade do Samba, os tambores voltaram a rufar no coração da Gamboa.

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