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Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 2025


País

A filosofia e a crise da ética na modernidade

Felipe Machado - Do Portal

07/11/2007

A civilização se universalizou a partir de muitos aspectos, se dinamizou, tornou-se desenvolvida, possibilitou a criação de novas tecnologias, no entanto, não foi capaz de criar um ethos. Há uma crise da ética, dos valores, que exige do cidadão uma reflexão, um pensamento. Esse é o enigma da modernidade analisado por Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), um dos principais filósofos brasileiros, ao longo de sua obra, principalmente nos textos da década de 80, justamente durante a redemocratização no Brasil após os 21 anos de ditadura militar.


O professor da PUC de São Paulo, Marcelo Perine, estuda a obra do Pe. Vaz e lembra o que o filósofo dizia: a filosofia é, ao mesmo tempo, uma rememoração do passado e um pensamento do presente. A ela, portanto, não compete previsões do futuro. Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Perine explica o pensamento de Pe.Vaz e o que ele representa nos dias de hoje, em meio a tantas turbulências na política.


Como se comporta a filosofia, de modo geral, ou especificamente a do Padre Vaz, diante dessa onda de corrupção deflagrada recentemente na política?

A filosofia não tem um papel de militância ativa como tem a política, ou uma opção partidária. Porém, a filosofia, ou o filósofo, tem um compromisso ético, político, com a dignidade, a verdade, a transparência, com tudo aquilo que são valores do estado de direito. Portanto, minimamente, um papel de denúncia e de repúdio ela tem. Mais do que isso, a filosofia também é chamada a pensar essa realidade para, de alguma maneira, descobrir o que pode estar levando a isso, e fazer um tipo de análise e de proposta que não fique pura e simplesmente na denúncia, porque a denúncia quando reiterada, demasiada, ela acaba perdendo a sua força.


O senhor disse que, segundo Pe. Vaz, ao filósofo não competiria falar do futuro, mas do presente. Diante dessa crise ética, ao mesmo tempo o senhor diz que é necessário que o cidadão procure uma reflexão, um pensamento diante disso. Como podemos, então, buscar um desdobramento dessa crise, o que ela pode acarretar, sem pensar no futuro?

O afrontamento da crise não se faz só com diagnósticos, embora o diagnóstico seja importante, não se faz só com bons desejos, com perspectiva de futuro, mas com ações concretas no presente, ainda que pequenas, ainda que limitadas, mas é exatamente aquilo que pode entrar na contramão desse movimento dominante, da corrupção, do niilismo, da anomia. Essas ações concretas se traduzem em coisas muito reais, como, por exemplo, solidariedade, organização de grupos em torno de programas, a organização da sociedade em torno de algumas bandeiras bastante definidas, claras. E o filósofo tem uma participação. Como cidadão ele pode, evidentemente, participar, mas ele tem o papel de, eventualmente, inspirar a leitura e a compreensão da realidade para poder afrontá-la com armas mais consistentes.


A democracia teria parte nessa crise dessa falta de ethos, da qual o senhor falou?

Poderia se pensar em uma relação negativa, na medida em que os direitos são estendidos a todos e as possibilidades, pelo menos teoricamente, seriam iguais para todos. Abre-se um espaço de concorrência ou de disputa que poderia levar a atitudes anti-democráticas, seletivas, discriminatórias. Isso porque a democracia não é o espaço sem lei, do vale tudo, aberto a todos, ela é um modo de vida regrado, fundamentalmente pela razão, pela justiça, que é a idéia fundamental do campo político, e pela igualdade e diferença reconhecida, portanto, o princípio moral da igualdade na diferença. Todos são iguais, mas todos são diferentes. Nesse sentido, a democracia não é uma realidade que agravou a crise. Pelo contrário, a democracia é a possibilidade de afrontar essa crise adequadamente, sem moralismos, porque não é só uma questão de falar, nem de apelar para princípios éticos, morais. Isso é moralismo. A democracia é justamente o espaço aberto para a ação do cidadão, ação que vai ser pautada pela verdade, pela transparência e, fundamentalmente, pela discussão aberta. A discussão talvez seja a marca registrada da experiência democrática. A palavra pode ser dada a qualquer um que, evidentemente, respeite as regras da palavra, do discurso, e tudo mais. A democracia é, nesse sentido, como expressão da dignidade humana, a grande possibilidade que se tem de confrontar, de entrar em uma contracultura dessa mentalidade anômica que, em muitos momentos, prevalece.


No caso do Brasil e de alguns países da América Latina que tiveram suas redemocratizações recentes, após a ditadura, Padre Vaz desenvolveu algum pensamento a respeito dessa redemocratização em comparação com as democracias antes da ditadura militar?

Não diria que ele tenha desenvolvido uma reflexão especificamente sobre a questão da redemocratização ou em comparação com outras experiências do continente latino-americano. Mas os textos Democracia e Sociedade e Democracia e Dignidade Humana são textos da segunda metade dos anos 80 nos quais ele está justamente dando munição, a quem quisesse pensar, exatamente no momento em que a nossa sociedade estava tentando produzir uma nova experiência democrática, a Assembléia Constituinte estava elaborando uma nova Constituição, que foi publicada em 1988. Portanto, de fato, é possível encontrar no pensamento do Pe. Vaz, uma reflexão muito preocupada com todo o processo que estava em curso no Brasil a partir da experiência de redemocratização com o fim do regime militar.


E o senhor sabe se, durante a ditadura, ele foi vítima de alguma repressão?

Foi. Ele foi isolado em Belo Horizonte, tinha que se apresentar, regularmente, ao comando do Exército de Juiz de Fora, ficou com o que se chama de liberdade vigiada, por força de uma acusação que lhe foi feita num processo que foi aberto pela Força de Segurança, que o enquadrava dentro da categoria de subversivo. Esse processo correu até certo ponto e, em 1968, ele teve um habeas corpus que o livrou definitivamente desse constrangimento. E nunca foi, de maneira nenhuma, imputado nada que pudesse efetivamente ser chamado de subversivo, anti-patriótico, à biografia dele.


Quais seriam as causas, as motivações principais, dessa perda do ethos na modernidade, em termos de período histórico?

Essa é uma pergunta longa, seria preciso fazer toda uma fenomenologia da modernidade, que é um trabalho que o Pe. Vaz faz em grande parte dos seus textos, para mostrar que o desenvolvimento de uma mentalidade, de uma concepção do homem foi marcada pelo prometeísmo, expressão do próprio Pe. Vaz, do homem moderno, lembrando o mito de Prometeu. O homem moderno é aquele capaz de fazer por si mesmo. Essa mentalidade começa a ser gestada, em termos de história das idéias, ali por volta do século XIV, com toda aquela redescoberta do homem no renascimento, com todo o desenvolvimento de uma mentalidade fabricadora. O renascimento foi uma época marcada por invenções de máquinas, enfim, o homem estava preparando uma revolução científica que viria no século XVII e que mudaria a face do mundo ocidental. É preciso ver isso em longa duração. Não é possível fazer um diagnóstico pegando o nosso tempo a partir da revolução industrial, por exemplo. É importante também, mas isso tem que ser pensando dentro de um movimento mais amplo, que, na análise do Pe. Vaz, tem seu início no final da Idade Média, vai sendo pouco a pouco elaborado, e vai dar, justamente, nesse fenômeno da modernidade moderna, como ele chama, que tem esses desdobramentos, essas conseqüências.