Cecília Bueno - aplicativo - Do Portal
10/03/2016Há vinte anos, no município de Eldorado dos Carajás, no Pará, 1.500 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) fizeram uma marcha na BR-115 em protesto contra a morosidade da desapropriação de terras na região. Dezenove deles foram mortos pela Polícia Militar. Dos 115 policiais que participaram da ação, apenas dois foram condenados, 16 anos depois. O Massacre de Eldorado dos Carajás foi mais um dos episódios no campo em que a violência passou impune. No Pará, de 1985 a 2014, dos 438 crimes relacionados a conflitos de terra, somente 22 foram julgados. Para o procurador José Elaeres Marques Teixeira, que atuou na Comissão Nacional de Combate a Violência no Campo (CNCVC) representando o Ministério Público Federal, a impunidade é decorrente de um sistema de Justiça ineficaz, que é consequência de uma cadeia de fatores, entre os quais destaca a falta de recursos materiais e científicos para realização de perícias e o número insuficiente de agentes, o que retarda o andamento dos inquéritos policiais e o julgamento dos processos.
– Além disso, a deficiência da apuração prejudica a identificação das autorias do crime. A garantia da impunidade é o principal motor da violência no campo – completa o procurador federal.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, dos 51 assassinatos registrados no Brasil em 2015, 48 foram na Amazônia e 19, no Pará. O procurador aponta como causa mediata dos conflitos a ausência de políticas públicas de atendimento para as populações tradicionais, e critica a ausência de um sistema de segurança específico direcionado para essas comunidades desprotegidas. Elaeres considera deficiente a seleção de beneficiários de terra feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que a seu ver proporciona o assentamento de pessoas que não têm perfil de reforma agrária, fomentando a violência no campo.
Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio, Mariana Trotta assinala que, para compreender o quadro de violência na Amazônia, é preciso pensar no problema desde sua origem na ditadura militar, com os processos de apropriação privada de terras públicas, até então habitadas por populações tradicionais. Na época, os esquemas de legalizações irregulares de propriedades fomentou a grilagem das terras, cuja estratégia se associou a outras formas de violência presentes na região. A Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas a Grilagem do Tribunal de Justiça do Estado do Pará confirmou que o Pará tem hoje, em títulos cartorários, quatro vezes a dimensão territorial do estado. Cerca de 24% das terras do Pará são griladas, segundo o Instituto Ambiental da Amazônia.
Depois do Massacre de Eldorado dos Carajás, foram criadas varas especializadas em cinco regiões do Pará para julgar conflitos de terra e ações de desapropriação. A professora ressalva que tais mecanismos fazem mediação do efeito e não da causa do problema e por isso, não garantem efetivamente uma mudança estrutural na realidade violenta da região. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2015, o Pará é o quinto estado mais violento do país. Para reverter esse quadro, Mariana reforça que é preciso atacar o problema em sua raiz e completa que enquanto o Estado não atuar em reformar a estrutura fundiária e garantir a demarcação de terras para os povos tradicionais, nenhuma política será efetiva em acabar com a violência da região. De 2010 a 2015, o orçamento anual do Incra – órgão responsável pela política de desapropriação e assentamento de famílias – caiu 85%. Nos três primeiros anos do primeiro mandato de Dilma, o número de famílias assentadas foi o pior desde 1995, apontam dados da instituição. Diante dessa conjuntura, a professora avalia que o cenário só vai se agravar.
Mariana, que é pesquisadora da relação entre movimentos sociais e o Poder Judiciário, frisa que um dos obstáculos da efetivação da reforma agrária é a parcialidade da Justiça Penal. Ela enfatiza que enquanto não for efetivada uma reforma agrária, é necessário pensar nos instrumentos do sistema de justiça para conter o efeito dessa irregularidade, que é a violência contra os povos que defendem as terras. Segundo ela, há uma tendência do judiciário em proteger os mandantes de crime e grileiros e negligenciar a questão trabalhista e social dos povos da região.
A interferência direta dos conflitos de terra e a ausência do Estado na Amazônia nas pautas climáticas foram temas da imprensa estrangeira durante a Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP 21). O compromisso do Brasil em acabar com o desmatamento ilegal até 2030 foi posto em cheque em uma reportagem do jornal britânico Financial Times diante do assassinato de mais um trabalhador de campo no Pará na época. Winslei Gonçalves Barbosa trabalhava no Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança em Anapu, o mesmo no qual a missionária americana Dorothy Stang foi assassinada 11 anos atrás. Elaeres considera a atuação do Ibama deficiente, e avalia que o modelo de fiscalização descontínuo da extração de madeira fomenta a prática ilegal do desmatamento, distanciando o país do cumprimento das metas do acordo.
Na Amazônia legal, segundo Boletim do Desmatamento do Imazon de março de 2015, o desmatamento acumulado entre agosto de 2014 e março de 2015 atingiu 1.761 quilômetros quadrados. O Pará é o segundo estado com maior área desmatada, 434 km quadrados, representando 25% das terras, atrás apenas de Mato Grosso, com 36%.
Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Ruben Siqueira, da coordenação executiva nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) elucida principais assuntos relacionados ao conflito de terras no Pará.
Portal PUC-Rio Digital: Os mandantes do assassinato da missionária Dorothy Stang continuam em liberdade, 11 anos após seu assassinato. Qual o motivo dessa crônica impunidade no campo?
Ruben Siqueira: Há registro de sete assassinatos em Anapu, entre julho e outubro de 2015. Taradão, mandante do caso de Dorothy, é suspeito de estar envolvido em algumas dessas mortes. Isso já revela uma das principais causas da histórica e contemporânea violência no campo: a impunidade. Essa condição relembra o julgamento do fazendeiro Adriano Chafik e de seu capataz Washington Agostinho da Silva, responsáveis pela “Chacina de Felisburgo”, no Vale do Jequitinhonha, em novembro de 2004. Após serem condenados a 115 anos e 97 anos e meio de prisão, respectivamente, conseguiram um habeas corpus e hoje respondem em liberdade. Esses mecanismos da Justiça favorecem a fuga do condenado ou sua própria volta ao crime. Além disso, a ineficiência dos órgãos de segurança pública, a letargia do Judiciário e a defasagem do Código Penal são alguns dos principais entraves no combate da impunidade.
O Estado acaba sendo refém nesse quadro de violência, atrasando e impedindo que a justiça seja feita. Como o agronegócio e a mineração produzem commodities, a macroeconomia depende desses setores e fica refém desses poderosos lobbies e interesses. Vivemos um contexto de maior concentração e aumento de poder de setores econômicos na política. O contrato social está em crise. O Estado não é mais a expressão da sociedade. Basta ver o atual momento da política. Os três poderes estão em crise, porque estão reféns de interesses que não são da maioria. É a falácia da democracia. A capacidade punitiva não diminuiu, ele recai sobre os pobres. Situações de violência com raízes profundas não combatidas aumentam a capacidade punitiva do Estado sobre esses setores fragilizados da sociedade. É preciso aumentar a consciência ética política do país.
Portal: Além da impunidade, quais são as principais causas da violência no campo?
Ruben Siqueira: A irresolução de um antigo problema agrário é o principal fator da causa da violência no campo. Os problemas estruturais da questão são contidos e canalizados pelo Estado. A dinâmica política se aproveita dos problemas da população, não os resolve completamente e abre espaço para a criação de um poder paralelo. E em uma sociedade onde terra é privilégio de classe, quem tem terra detêm todos os outros poderes. O potencial das terras brasileiras sempre fomentou conflitos e esteve nos eixos dos problemas das populações tradicionais. Antes, sem-terra e latifundiários queriam terra para produzir. Hoje, com a supervalorização da terra, com a expansão da agropecuária, de mineradoras, empresas de energia e especulação, o mundo todo está de olho no Brasil. Grandes bancos e conglomerados econômicos estão adquirindo propriedades no Brasil, fazendo investimentos para valorizar seus papéis no mercado de capitais. Nesse cenário, são criados diversos esquemas para facilitar o acesso à terra, os quais são causa dos conflitos do campo.
Portal: Como são esses esquemas?
Ruben Siqueira: O poder paralelo criou diversos mecanismos para facilitar o acesso à terras. Já que só os sem-terra podem se beneficiar com a reforma agrária, programas do governo também são usados como instrumento para a conquista de propriedade. O Terra Legal, criado em 2009 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com o discurso que resolveria a questão fundiária e regularia toda terra para a exploração sustentável da região, é, na prática, um mecanismo para legalização das grilagens. O Fundo Amazônia, criado pela coroa norueguesa e hoje do BNDES, tem projetos do programa de manejo florestal que contrariam os objetivos de desenvolvimento sustentável e acabam sendo prejudiciais às florestas e a seus povos.
Além disso, como forma de desvalorizar a terra, muitos grileiros contratam trabalhadores sem-terra para se instalarem em terrenos já ocupados. Com isso o preço cai e eles compram a área. Depois, contratam jagunços para expulsar os sem-terra e revalorizar a terra.
Portal: Quem são as principais vítimas dessa violência?
Ruben Siqueira:
A violência na Amazônia, no momento atual, atinge mais o público da reforma agrária. Como o processo de regularização fundiária ainda não foi concluído pelo Incra, eles acabam ficando à mercê de novas violências. A disputa pela posse da terra é motivo de conflitos dentro dos próprios assentamentos. Populações indígenas, quilombolas, extrativistas e pescadores também são atingidos pelos conflitos de terra. Nos últimos dez anos, houve aumento da violência contra os povos tradicionais.
Outro grupo atingido pela violência são os defensores de direitos humanos, líderes comunitários e religiosos, advogados e jornalistas. Três dos nossos companheiros da Pastoral tiveram que sair do lugar onde moravam e trabalham, por recentes ameaças de morte. Na Amazônia, o número de ameaçados de morte aumentou em 57,4%, e a efetivação dessas ameaças aumentou em 95,6%.
Outro dado importante é o crescimento dos crimes por pistolagem. Houve uma época em que o Estado – polícia civil e militar – eram os atores da violência no campo. Hoje, a violência também é privada e realizada por pistoleiros. A atual conjuntura na Amazônia se assemelha aos anos 1970 e 80: junto com o desenvolvimento e expansão de capital no campo, houve o aumento de conflitos.
Portal: Qual a causa do crescimento de crimes por pistolagem?
Ruben Siqueira: Durante a ditadura, o Estado concedia terras públicas a particulares, em nome do desenvolvimento da região. Muitos fazendeiros e pequenos produtores receberam créditos públicos para desenvolverem essas áreas e poucos cumpriram o que prometeram. Com a expansão do agronegócio na Amazônia – soja, algodão, pecuária – e a mineração, essas áreas voltam a ter interesse. Os controladores da terra querem negociar essa terra porque ela foi valorizada. Assim aparecem os mediadores, os grileiros de terra, e por isso a pistolagem volta. O mercado de terra inflacionado no Brasil aumenta a violência nas áreas de assentamento. A pistolagem volta com força porque a Polícia Militar não faz mais seu papel. O poder local substitui o Estado, que se ausenta, diminui sua capacidade de intervenção e controle, favorecendo a entrada de um poder paralelo. A situação violenta nos campos de Pará não é algo somente rural, estanque da política nacional; é consequência da ausência do Estado. O Pará não é uma terra sem lei, é uma terra onde a lei impera para poucos.
Portal: Como o Código Florestal se dispõe frente a esses conflitos?
Ruben Siqueira: O atual Código Florestal fomenta os conflitos de terra, porque diminui as áreas de preservação e permite a entrada de grileiros e madeireiros em áreas antes protegidas. Além disso, o código criou o Cadastro Ambiental Rural que legaliza as terras, facilitando sua posse. Os primeiros a serem atingidos são os povos tradicionais e trabalhadores do campo. O casal de líderes extrativistas Maria do Espírito Santo e José Cláudio Ribeiro denunciava aos órgãos públicos grilagens de terra e crimes ambientais. Ambos foram assassinados por dois pistoleiros em 2011 dentro do assentamento onde moravam, na cidade de Nova Ipixuna, sudoeste do Pará. O Código Florestal atual é uma contradição. O que acontece hoje é uma política de reassentamento, e não uma reforma agrária. No último governo Dilma, quase não houve assentamentos. Além disso, as leis não reconhecem a necessidade de proteção da natureza e não respeitam o ciclo hidrológico. Em meio a uma crise hídrica, o código reduziu as áreas de proteção de matas ciliares.
Portal: Segundos dados da Pastoral, houve crescimento dos índices de escravidão entre 2013 e 2014 no Pará. O que esses números indicam?
Ruben Siqueira: A competitividade do mercado exige a redução do custo do trabalho. Assim como acontece nas cidades, o trabalho é terceirizado, e suas condições se tornam próximas da escravidão, que, no campo, não recebe a visibilidade necessária. A Pastoral tem uma antiga Campanha Nacional de Combate de Trabalho Escravo, que sofre com dificuldade de parcerias no campo e na cidade. A escravidão cresce no país – houve um aumento de ocorrências. Há quem diga que esse aumento de casos registrados deve-se à maior capacidade de percepção, de denúncia e de combate.
Portal: Quais são os caminhos para sair desse estado?
Ruben Siqueira: A disputa deve ir ao cerne do conflito, e o primeiro problema a ser resolvido é o agrário. Isto significa sanear a estrutura fundiária, resgatando as terras públicas tomadas ilegalmente e destinando-as com prioridade para os trabalhadores sem-terra ou com pouca terra; reconhecer e regularizar Terras Indígenas e territórios de povos tradicionais; ampliar e proteger áreas das Unidades de Conservação.
No campo político, é preciso combater o campo de negociação que se faz por meio da corrupção dos poderes. O ideal seria uma democracia direta e uma reforma do Estado com uma nova Constituinte, mas isso não pode acontecer na atual crise representativa que o país enfrenta. A nossa maior crise é a política, de poder e representação, que afeta principalmente as comunidades mais vulneráveis e desamparadas. Hoje, o Estado está separado dos processos da vida social. A bancada BBB (bíblia, bala e boi), que foi construída pelos setores conservadores da sociedade, está produzindo retrocessos na Constituição. A classe política é dona de todo o processo politico. O que precisamos fazer é garantir que a presença popular tenha efetivo poder de decidir leis e políticas públicas. Ainda não temos a sociedade mobilizada e organizada para fazer uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, como deveria ter sido a de 1988. A resistência, a luta pela informação e a reinvenção da capacidade organizativa mobilizadora da sociedade devem ser os pilares de sustentação para a luta continuar.
Analistas pregam transigência para resguardar instituições
Sem holofotes do legado urbano, herança esportiva dos Jogos está longe do prometido
Rio 2016: Brasil está pronto para conter terrorismo, diz secretário
Casamento: o que o rito significa para a juventude
"Jeitinho brasileiro se sobrepõe à ideia do igual valor de todos"