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Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2024


Mundo

"Relativização de valores aumenta o risco de guerras"

Yasmim Restum - aplicativo - Do Portal

07/10/2015

 Arte:Thayana Pelluso A troca do cidadão pelo consumidor é o "mal da sociedade que se vê mergulhada numa crise ética", sentencia o professor da USP Luli Radfahrer, PhD em Comunicação Digital. O diagnóstico revela-se comum a especialistas de diversas áreas, diante de um esgarçamento de limites na sociedade contemporânea, ou pós-moderna, como alguns preferem qualificar. O reconhecimento dessa instabilidade de valores mostra-se, contudo, insuficiente para combater "o caos entre os deveres e direitos”, avalia Radfaher. Ele percebe um vazio de liderança ética, papel que, para a pós-doutora em Ética e Ciências Humanas pela Universidade de Oxford Maria Clara Dias, deve ser assumido por todos os cidadãos: “Devemos adotar a função fiscalizadora, tornando-nos os gestores temporários”.

A diluição de lideranças ou referências éticas expõe um traço preocupante deste início de século: o excesso de relativização, aponta o professor de Etica Cristã da PUC-Rio Celso Carias. Para ele, o pendor relativizante afasta a sociedade de possíveis consensos:

– Os direitos são fundamentais, sobre isso não há dúvida. Mas se vivemos num modelo de sociedade onde tudo é relativo, acabamos pensando as relações a partir de nós mesmos. Precisamos retomar uma ética dos mínimos – propõe. – Essa profusão de possibilidades e a falta de parâmetros reguladores de princípios dá uma aparência de crise ética, mas é uma crise de interpretação da ética – pondera o doutor em Teologia.

Especialista em Realidade Humana Pós-Moderna, Carias alerta sobre os riscos do relativismo e esclarece que o estabelecimento de consensos não pasteuriza o pensamento:

– Isso é extremamente perigoso, porque somos seres sociais e, portanto, precisamos de um consenso social, o que não significa uma homogeneização do pensamento, mas uma necessidade de chegarmos a um consenso ético. Senão, o próximo século será de guerras – alerta.

Sem subestimar o risco bélico no longo prazo, já é possível notar impactos nada desprezíveis do esgarçamento de valores em diversas fibras do tecido social – não só na política, na economia e na administração, áreas tradicionalmente mais associadas pelo senso comum a desvios éticos. O meio ambiente é um dos setores mais atingidos, afirma o diretor do Centro de Direito Ambiental da Nova Zelândia, Klaus Bosselmann. O professor de Direito da Universidade de Aukland também identifica um enfraquecimento da percepção ética:

– A ética é nossa tocha no escuro: permite vermos para onde estamos indo e nos faz perceber conscientemente as diferenças entre “como vivemos” e “como devemos viver”. Nossa geração parece ter perdido essa percepção ética, não completamente, mas o capitalismo e o consumismo são sistemas que se comportam de forma insensível, como se não houvesse amanhã. Sabemos que o capitalismo tem culpa no cartório. Todos sabemos disso, mas não o suficiente para traduzir nosso conhecimento em ação. Nunca precisamos tanto de uma liderança ética.

“Na internet, a dimensão do outro é ignorada”, diz especialista

Ao déficit de modelos éticos, Radfaher adiciona o que considera outra raiz preponderante dessa suposta crise: a valorização do consumo como símbolo de status. Ele acrescenta que a “perda do balizador de certo e errado” se estende ao chamado mundo virtual:

– Na internet, a dimensão do outro é ignorada. Pessoas não se veem, não trocam uma ideia porque está todo mundo falando sozinho. Perdemos um limite social porque as ditas redes sociais são qualquer coisa menos social. Elas promovem um comportamento antissocial que é elogiado. O que é viral nessas redes não é nada de valor: são sempre valores morais absortos. Desde que começamos a mergulhar em um mundo mais livre, perdemos o ponto de referência. Trata-se uma crise de modelos e uma realidade de consumo, no mínimo, torta. Se o cidadão é substituído pelo consumidor, o que podemos esperar dele? A coisa está feia.

Ainda de acordo com Radfahrer, a figura global que mais se aproxima de um guardião dos preceitos éticos é o papa Francisco:

– Hoje todo o mundo considerado “bonito” está do mesmo lado da sociedade de consumo. O Steve Jobs (fundador da Apple) morreu e já havia três filmes sobre ele, o que é bizarro, para não dizer patético. Cadê o indivíduo de valor do outro lado?  Neste sentido, talvez o único representante em escala global seja o papa Francisco. É um brilhante relações-públicas de uma Igreja que prega a igualdade. Faz um monte de coisas e acredita não fazer mais do que a obrigação. Precisamos de mais pessoas como ele.

 Divulgação CEP O apelo para herois ou mártires éticos pode carregar, no entanto, pondera o presidente da Comissão de Ética Pública (CEP), Américo Lacombe. O juiz federal lembra justifica a recomendação de cautela:  

– Herois surgem nas grandes crises. Nas guerras mundiais surgiram vários. Não só grandes chefes militares, mas grandes estadistas.  Hoje, não temos grandes chefes militares, e nada é mais perigoso que um chefe militar medíocre. Os herois podem ser perigosos, pois muitos se transformam em tiranetes.

Cenário político e crise migratória: emblemas da crise

 Arquivo pessoal Apontado por alguns pensadores como um das causas da diluição de valores e limites, o aguçado individualismo contemporâneo reflete “o modo como a liberdade se distribui pela sociedade”, acredita a filósofa Naomi Zack , professora da Universidade de Oregon. Autora de The Ethics and mores of race: equality after the History of Philosophy” (Rowman & Littlefield, 2011), Naomi afirma que o ganho de liberdade e direitos é gradual, decorre de movimentos históricos e políticos específicos, e não necessariamente evidencia sintomas de uma crise ética:

– A igualdade e a justiça têm uma aplicação universal crescente, que vem se ampliando desde a Revolução Francesa, um longo processo ainda em andamento. Esses valores e princípios morais universais são absolutos desde então. Há transições de valores ao longo do tempo, dependendo das condições de vida. Na medida em que a liberdade aumenta, devido à expansão do número de pessoas que têm direitos, os deveres que não infringem a liberdade também crescem para outros. O aumento de direitos para um grupo representa, naturalmente, um aumento de deveres para seus opressores. Logo, a moralidade não falta no nosso mundo mais do que no passado – argumenta.

Cenário político revela-se emblema Já para a professora da UniRio Maria Clara Dias, o “extremo do individualismo em que a sociedade está mergulhada” alastra, sim, uma crise ética. O sintoma mais evidente no Brasil, observa ela, remete ao cenário político “complicado”, que exige “melhor entendimento” entre grupos e demandas sociais:

– A crise política faz as pessoas repesarem a ética. Mas os movimentos de reestruturação são individualistas. Assim fica difícil, pois não há valores compartilhados. As pessoas falam em democracia, tolerância, mas até que ponto gostariam de lutar em nome dessas ideias? – indaga.

O questionamento em relação a modelos de governo é essencial na opinião de Lacombe. Mas a democracia “não pode ser vítima dos atuais descompassos políticos”, ressalva o professor. Ele distingue a crise “meramente política” do país da crise migratória, de acento ético:

– Está havendo, sim, uma transformação de comportamento perante a ética. Vivemos uma crise ética no mundo. A Europa está praticando um verdadeiro genocídio. Parece que alguns governos europeus se consideram super-homens, que podem eliminar os povos considerados “mais atrasados”. Já a democracia brasileira atravessa uma crise meramente política, mas não uma crise institucional. Não pode haver desgastes do modelo democrático, simplesmente porque não temos outro melhor. As infrações estão às claras porque são descobertas. O que pode estar em crise é o presidencialismo. Devemos separar as funções de Estado das funções de governo.

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Na opinião de Bosselmann, o Brasil ainda vive um processo de descolamento da herança colonial. Portanto, diz ele, o governo não tem uma estrutura democrática que sustente um estado liberal:

 Divulgação NZCEL – O Brasil ainda está na transição de um passado colonial para um Estado democrático moderno, assim como outros países em desenvolvimento. Mas o Brasil é uma grande, dinâmica e diversa nação, o que torna essa transição mais complicada. Todos os Brics têm avançados poderes econômicos e problemas sociais massivos na medida em que seus governos elitistas seguem a ideologia do mercado livre sem um controle de uma cultura democrática bem sedimentada. Isso aparta tanto os poderes públicos e privados quanto os movimentos sociais. Minha esperança é que esses levantes sociais vão prevalecer em todo o mundo, porque eles têm uma verdade histórica ao lado deles: sociedades só podem florescer se construídas com justiça, não violência. Esses valores éticos já estão incorporados à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Carta da Terra, por exemplo.

Deveres nanicos em terra de direitos

Consumismo: crescimento desordenado de direitos e achatamento de deveres

Valores éticos mostram-se, entretanto, flexíveis a conveniências de consumo, ou melhor, à valorização exacerbada do consumo, diz Radfaher. Este “exagero” produz, segundo o professor, um crescimento desordenado de direitos e um achatamento dos deveres na sociedade, na opinião de Radfahrer:

– Até os anos 1980, por mais que uma pessoa fosse usuário de um tênis Nike, por exemplo, ele não se definia dessa forma. Hoje é possível se definir por um tênis, assaltar e matar uma pessoa pela posse de um tênis, é um status de consumo. Essa realidade é, no mínimo, torta. Em vez de investirmos em educação, capacidade produtiva, comércio, microempresas, desburocratização, e em tornar o estado leve e ágil, investimos em consumo. Logo, se o grande valor é consumo, e esse é um valor de desigualdade, nunca seremos uma sociedade ética.

 A aposta do governo em ampliar o poder de consumo é o que reduz a percepção de uma responsabilidade social e aparta o indivíduo da política, na opinião de Maria Clara, que mesmo após a ditadura, há uma rigidez governamental que dificulta a participação do cidadão:

 Paula Bastos Araripe  – O que me impressionou em 2013 foi a violência com que as manifestações foram reprimidas, aconteceram situações em 2013 que não aconteceram nem durante a ditadura militar. Durante a ditadura, a polícia não entrava nas universidades. Em São Paulo, uma jornalista quase ficou cega, mas em nenhum momento algum dos três poderes disse “basta”. Nós achávamos que estávamos saindo da ditadura militar e modificando o status quo, mas então surge outra rigidez que não nos interessa, mas que é defendida com a força e foi isso que percebemos em 2013. Como assim estamos pedindo saúde, educação e eles vêm com polícia e bomba de gás lacrimogêneo? – afirmou indignada.

Os efeitos que esse comportamento do governo tem sobre a sociedade civil acabam destruindo as chances de uma participação política efetiva, de acordo com Maria Clara:

 – O problema é que as próprias instâncias governamentais despertam a falta de confiança do cidadão, quando o judiciário cria leis que valem para os indivíduos comuns, mas que não valem para os membros do próprio poder legislativo, perde-se a credibilidade e, assim, a falta de percepção de uma reponsabilidade social se torna mais grave quando o individuo percebe o quão difícil é lutar pelos seus direitos. Não só direitos para ele próprio, mas diretos do individuo comum da sociedade brasileira.

Carias acredita que pessoas de várias etnias e religiões, ou mesmo sem religião, unidas em torno de um mesmo objetivo, como ocorre no Fórum Social Mundial, pode ser saudável para a construção de uma perspectiva cidadã unificada. Bosselmann também destaca associações globais como unificadoras das demandas da sociedade, mas também realça a necessidade de perceber o mundo estruturado em democracia, e não em núcleos empresarias:

– A razão de não estarmos combatendo os problemas climáticos e outras formas de degradação ambiental de forma eficiente é pelo fato de que o mundo está mais baseado nas corporações do que em democracia, e isso não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. A visão de uma democracia global poderia nos inspirar a pensar soluções que hoje parecem impossíveis: uma assembleia global dos cidadãos, por exemplo, como a Global Climate Authority. Como cidadãos globais, podemos insistir que a atmosfera pertence à comunidade, e não a Estados ou organizações empresariais que utilizam a atmosfera como se fosse deles.

Mais do que o esforço cidadão em conjunto, Maria Clara reitera a necessidade uma reforma política com o objetivo de informar a população sobre o sistema democrático para que seja possível tornar os políticos temporários:

– A corrupção atingiu o nível que fez com eu o país chegasse às margens da bancarrota. Precisamos exigir uma transparência em todos os setores públicos, universidades, hospitais para que estampem em suas páginas online o quanto foi recebido, usado e como foi usado. Existe um discurso de “o governo não coloca verba na educação”, e o governo diz “não é verdade”. A opinião pública fica no meio desse impasse absolutamente desinformada, mas sem poder checar a informação. Nossa arma é fazer com que os políticos se sintam temporários por meio de mecanismos democráticos para tirá-los do poder, como aconteceu com o Collor – e a professora exemplifica: – Os votos que não são pra candidatos específicos não são sequer computados. Então, numa eleição na qual um candidato ganha com 50% dos votos, onde estão os brancos e nulos? Será que eles não chegaram a 50%? E se tiverem chegado, não teriam força para anular uma eleição?  Não temos uma democracia porque existe uma enorme ignorância sobre como funciona o nosso país e tem pessoas que estão se beneficiando com isso. O brasileiro espera o pacote pronto para, então, se livrar dele – lamenta.

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Há uma evidente perda de admiração pelo governo, segundo Radfahrer, mas a reconquista da credibilidade não pode mais se basear em promessas. Sobre os recentes portais digitais da presidência, como o Dialoga Brasil para ampliar a participação do cidadão:                                                      

– Para recuperar a admiração não se pode dizer “meu nome é João, eu sou ex-ladrão” porque respeito não se pede, conquista-se. O governo precisa vestir a carapuça de culpado sem se fazer de vítima, porque senão ele perde a admiração. Nós cometemos o erro de valorizar o gestor pelas promessas que ele faz, e não pelo conjunto da obra. As pessoas esperam uma figura mágica que vai nos tirar do buraco, mas, na verdade, temos que escolher o representante como escolhe o funcionário. Se contratamos um pedreiro, é irrelevante saber se ele é gente boa ou não, e mesmo que ele seja zangado, a gente até faz uma ressalva, mas já diz “olha, não liga pra cara feia, não, porque o cara é profissional”. É assim que tem que ser com os políticos. O governo pode gastar fortunas em portais de comunicação digital com os eleitores: isso não vai dar em nada. A internet precisa ser utilizada pelo governo de forma útil, algo além de Instagram e Facebook, mas eliminando cartório, por exemplo, com atendimento digital eficiente para o SUS. Mas o governo parece que não sabe o que a internet é capaz de dar.

Os impactos dessa crise desdobram-se em diversas fibras do tecido social, não só na política, na economia e na administração, áreas tradicionalmente mais associadas pelo senso comum a desvios éticos. O meio ambiente é um dos setores mais atingidos, afirma o diretor do Centro de Direito Ambiental da Nova Zelândia, Klaus Bosselmann.