Marta Szpacenkopf * - aplicativo - Da sala de aula
28/08/2015Apesar de ter vivido uma infância típica de criança dos anos 40 e 50 no Rio de Janeiro, Marcos Aníbal pode ser considerado um caso raro. Criado em Botafogo, o cirurgião plástico mantém até hoje as duas casas em que cresceu. Marcos vai contra a realidade pela qual passa o bairro atualmente. Com uma quantidade de casas sendo derrubadas mais rápido do que se é possível perceber, Botafogo está vivendo uma mudança drástica na paisagem.
De acordo com dados da Prefeitura do Rio de Janeiro, entre 2000 e 2011, Botafogo perdeu 745 casas e ganhou cerca de 7.700 apartamentos. No mesmo período, a população do bairro aumentou 4%. Com a especulação imobiliária, o aumento dos preços de imóveis em outras áreas da Zona Sul e o caos no trânsito do Rio, a procura por Botafogo vem crescendo cada vez mais. Hoje esse número pode ser ainda maior. Somente em 2014 foram concedidas 44 licenças para construção de prédios com mais de cinco pavimentos no bairro.
As duas casas que Marcos mantém ficam na rua Conde de Irajá e estão alugadas para uma doceria e para um spa especializado em gestantes. As duas mantiveram a fachada, mas só a segunda preservou a estrutura interna. Hoje as duas casas são protegidas pela Apac (Área de Proteção do Ambiente Cultural), mas antes do decreto de preservação 22221-02 entrar em vigor, em 2002, Marcos recebeu propostas de venda de construtoras. Por sorte, o médico pôde mantê-las. “Consigo manter a minha casa e as outras, mas é um caso raro hoje em dia”, reconhece.
Testemunha das mudanças
Gracinda Bairros pode ser considerada uma anciã de Botafogo. Ela trabalha no colégio Liessin há 60 anos e viu de perto as mudanças do bairro. A própria escola foi afetada pelo crescimento urbano e teve a sede da rua Visconde de Ouro Preto desapropriada e demolida em 1972, por causa das obras de construção do metrô. Naquela época, a vizinhança era toda de casas. As crianças faziam educação física em um terreno emprestado da casa do vizinho, pulavam o muro para pegar manga e os vizinhos levavam até bolo para comemorar aniversário.
Hoje, o Liessin fica em um terreno que vai da rua Sorocaba até a São Clemente. Para chegar à estrutura atual, o colégio foi aos poucos comprando casas vizinhas e adaptando de acordo com a necessidade, tentando manter a identidade original dos imóveis. Quando a escola se mudou para a região, havia apenas casas na rua Sorocaba e agora, está para inaugurar o novo prédio que substituiu uma antiga creche, penúltima casa vizinha da escola.
Para Gracinda, o crescimento vem com um preço. “Perdemos o contato com os vizinhos. Às vezes faltava água e as pessoas vinham buscar aqui, a gente ia buscar na casa deles. Isso se perdeu”, afirma. Ela sente muita falta das casas e da antiga configuração de Botafogo, mas, por outro lado, admite que não conhece outra solução que não a construção de prédios para abrigar o crescente número de pessoas que querem estar perto do “centro” da cidade: “Se destrói uma coisa para vir outra, né?”.
A complexidade do crescimento
Mozart Serra, arquiteto e urbanista especializado em desenvolvimento urbano, normalmente não vê problema na construção de edifícios e nem na alta densidade populacional. Quanto mais altas as construções, mais pessoas são concentradas em outros lugares. Para ele, o ruim na construção desenfreada é o arranjo, que é desastroso.
Além disso, no caso de Botafogo, é no mínimo estranho adensar o bairro em altura. Trata-se de um bairro com duas saídas que priorizam o uso de automóveis (as ruas Voluntários e São Clemente). Como as pessoas vão sair do bairro?
– Para crescer para cima, é preciso ter espaço. Se Botafogo tivesse calçadas, praças, praia... Mas não tem lugar para as pessoas irem. É um processo de urbanização esquizofrênico. Diferente de um plano ou indicação de crescimento, o bairro precisa urgente de um plano de calçadas”, disse.
Planejamento para o futuro
Mozart acredita que o que está acontecendo em Botafogo é mais um retrato do que sempre aconteceu no Rio de Janeiro: falta de planejamento. Para ele, é necessária uma conjugação de responsabilidades. O Estado não cumpre o seu papel e os especuladores agem dentro do limite imposto pelo próprio estado. “O jogo entre mercado e ação governamental não pode existir. A construção sem critério prejudica tudo.”
Segundo o arquiteto, as ações de planejamento que ele considera essenciais para Botafogo e para toda a Zona Sul englobam o fim das autorizações de construção na região, investimento pesado em transporte, linhas de metrô ligando a Gávea diretamente ao centro e a Tijuca à Zona Sul, a criação de um transporte interno circular menos pesado dentro dos bairros (uma opção seria o VLT – veículo leve sobre trilhos) e a restrição aos carros em determinadas áreas. Mozart admite que é difícil, mas planejamento é a chave mestra para o futuro.
Preservação da memória
Outro problema da construção desenfreada é que a cidade está ficando toda igual, sem preservar a memória de cada região. É ela que dá personalidade para os bairros se diferenciarem entre si e manterem sua essência. Também se faz necessária a fiscalização das alturas dos prédios, que, segundo Mozart, não existe: “É um absurdo que os edifícios comecem a tampar as montanhas tão características do Rio de Janeiro”.
As medidas oficiais da prefeitura para preservação de imóveis consistem em duas situações. Na primeira, todos os imóveis construídos antes de 1938 precisam passar por uma consulta ao IRPH (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade) antes de serem demolidos. A idade do prédio ou casa é vista de acordo com o que está escrito no carnê do IPTU. O Estado então avalia se tem algum grau de preservação, se é uma construção importante, se tem alguma qualidade arquitetônica que deva ser preservada. Na segunda situação, são prédios que, independentemente da idade, formam um conjunto ambiental que deve ser preservado. São definidos imóveis ou áreas que são tombados ou preservados. Esses dois critérios valem para imóveis em todos os cantos da cidade.
Apesar de parecer ineficiente, a prefeitura desenvolveu mecanismos para tentar proteger o patrimônio móvel dos bairros. O IRPH desenvolveu um aplicativo no qual seria possível encontrar todos os imóveis que são protegidos pela Apac no Rio de Janeiro. A ideia é criativa, motiva as pessoas a procurarem mais sobre o patrimônio e permite que o usuário salve quais casas gosta mais. Porém, o aplicativo apresenta alguns erros e não mostra de fato todos os imóveis protegidos pela Apac. As casas do Marcos, por exemplo, não estão por lá.
Fiscalização para o bem
O Estado alega não ter equipe de fiscalização suficiente para cobrir toda a cidade, e a função acaba ficando para os vizinhos de obras, para o cidadão comum. A Associação de Moradores e Amigos de Botafogo (Amab) também não consegue realizar um trabalho extenso de fiscalização dos imóveis do bairro pelo mesmo motivo: faltam pés. A associação se dedica há muitos anos à discussão sobre a preservação dos imóveis do bairro, mas, por não ser um órgão público e as edificações serem privadas, não há muito o que possam fazer efetivamente. Segundo a presidente da associação, Regina Chiaradia, as áreas mais construídas de Botafogo são as ruas da Passagem, Assunção, Visconde de Silva e Pinheiro Guimarães (foto).
Com tantos canteiros de obras espalhados pelo bairro, quem sofre mais é o morador. Wanderson da Silva Alcides, segurança da Rua Pinheiro Guimarães, afirma que a situação daquela área piorou muito. Com as obras, o alagamento e a situação do esgoto da região ficaram mais complicados. Um morador que não quis se identificar resume: “Ninguém faz obra dentro do chão; não aparece”.
O jornalista e professor da PUC-Rio Chico Otávio se mudou há cinco anos para Botafogo. Não condena as novas construções, mas acha que falta fiscalização para que as obras não interfiram no direito da vizinhança. “Caminhões e betoneiras bloqueiam as ruas. Os canteiros avançam sobre as calçadas. Já vi ratos circulando nas obras. Isso sem falar no barulho intenso”, contou.
Um pouco de história
Botafogo é um dos bairros mais antigos do Rio de Janeiro. O bairro surgiu com a doação de um vasto território feita por Estácio de Sá para Francisco Velho. As terras iam do morro da Viúva ao da Babilônia e da enseada de Botafogo à Lagoa. O nome só apareceu em 1590, quando Francisco Velho vendeu o terreno para João Pereira de Souza Botafogo. Até o início do século XIX, o bairro era praticamente despovoado e considerado uma área rural. A chegada da família real, em 1808, mudou a vida de Botafogo. Dona Carlota Joaquina escolheu um terreno na enseada para construir sua mansão e mudou o estilo do bairro. As terras passaram a ser disputadíssimas.
De bairro rural, Botafogo virou local preferido dos nobres e dos comerciantes ingleses. Na primeira metade do século XIX o bairro ganhou colégios, clínicas, casas de pasto e comércio. A partir de 1900 passou a ser habitado também por operários, artesãos, funcionários públicos, militares, comerciantes e profissionais liberais. As habitações coletivas se tornaram a marca do bairro. Mais tarde, o crescimento de Copacabana e do Jardim Botânico provocaram uma explosão no comércio e nos serviços de Botafogo, gerando a alcunha de bairro de passagem.
Quem conheceu e viveu um Botafogo cheio de casas e crianças pela rua não consegue evitar o saudosismo. Hoje, como toda a Zona Sul do Rio de Janeiro, a região perdeu essa essência e se transformou em um gigante urbano cheio de gente, prédios, engarrafamento e problemas urbanos. A grande questão é junto com o crescimento, garantir qualidade de vida para os novos e antigos moradores e manter viva a memória de Botafogo para as próximas gerações.
* Reportagem produzida para o Laboratório de Jornalismo.