Juliana Reigosa - aplicativo - Do Portal
03/07/2015Aprovada na Câmara na quarta-feira passada, menos de 24 horas depois de ter sido rejeitada, a redução da maioridade penal revela-se mais complexa do que sugere a polarização entre "conservadores" e "progressistas" observada nos embates parlamentares. Deputados de sete partidos (PT, PMDB, PCdoB, PDT, PPS, PSB e PSOL) e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Coêlho, reivindicam ao Supremo uma inconstitucionalidade na manobra regimental do presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Enquanto isso, analistas sugerem o aprofundamento do debate à medida que, para ser efetivada, terá de passar por segundo turno na Câmara e votação no Senado. O novo texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), menos severo do que o anterior, criminaliza jovens de 16 e 17 anos por crimes hediondos, homicídio doloso (com intenção de matar) e lesão corporal seguida de morte. Exclui roubo qualificado (com violência) e tráfico de drogas.
A esgrima parlamentar talvez seja movida menos por aspectos técnicos, comprometidos com o debate profundo exigido pela complexidade do assunto, do que fatores políticos e demagógicos, avaliam especialistas em Direito e Ciências Sociais. Nove em cada dez brasileiros são favoráveis à medida, aponta pesquisa do Datafolha divulgada há duas semanas. Refletem a sensação de impunidade dominante num país onde a violência e a corrupção, espelhos de uma desigualdade crônica, ainda afrontam famílias, trabalhadores, contribuintes. O apoio popular – resultado, para alguns analistas, da carência de discussões mais profundas sobre o tema – reforça os discursos dos defensores da mudança, como o presidente da Câmara. A juíza federal de São Paulo, Marcelle Ragazoni Carvalho reconhece que a impunidade estimula a criminalidade, mas ressalva: "Precisamos levar em conta a ressocialização, sobretudo em relação a crimes cometidos por jovens”.
A corrente contrária à mudança argumenta que experiências equivalentes adotadas em outros países se mostram inócuas à redução da criminalidade. “O debate está sendo realizado com afirmações ilusórias de que a redução acarretaria a diminuição da criminalidade, sem que haja o grau de informação devido à população sobre as causas que levam o adolescente à prática delituosa, assim como as soluções para estancar o desenvolvimento prolongado desse mal”, ressalta o juiz Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, integrante da Comissão Judiciária de Articulação das Varas de Infância, da Juventude e do Idoso.
– Está em jogo a possibilidade de apresentar à população uma solução para a criminalidade que é um monstruoso engano, no lugar de trazer a lume políticas públicas que deem efetividade às normas constitucionais e legais que determinam o respeito aos direitos das crianças e adolescentes. Por isso, deve ser levado em consideração se a medida extrema sugerida, de fato, é capaz de alcançar o resultado proposto, sendo negativa a resposta – afirma o juiz, titular da 4ª Vara de Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital/RJ.
O economista e professor do Insper João Manoel Pinho de Mello, especialista em economia do crime, diz que não há dados e estudos que avaliem o que ocorreria no caso de uma mudança. Sob a ótica econômica, Mello indaga: “por que a sociedade castiga alguém, adulto ou menor?”. Para ele, isso é explicado por duas razões: incapacitar e dissuadir. “Uma coisa que você pode fazer ao punir é incapacitar um criminoso, ou seja, tirá-lo do convívio social para que ele não cometa mais crime. Para adultos, há uma tonelada de evidências, tanto europeias como americanas, de que incapacitação é um fator importante. Mas querermos usá-la com os jovens de 16 a 18 anos é outra coisa”, ressalva.
Alinhada a este pensamento, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) posiciona-se contrária à redução da maioridade penal, pois a considera um risco aos direitos conquistados por crianças e adolescentes. Em nota divulgada há duas semanas, observa: o Mapa da Violência de 2014 mostra "que os adolescentes são mais vítimas que responsáveis pela violência que apavora a população. Se há impunidade, a culpa não é da lei, mas dos responsáveis por sua aplicação".
Assinado pelo presidente da CNBB, dom Sergio da Rocha, pelo vice-presidente, dom Murilo S. R. Krieger e pelo secretário geral, Leonardo Ulrich Steiner, o documento (leia a íntegra no fim do texto) argumenta que "o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), saudado há 25 anos como uma das melhores leis do mundo em relação à criança e ao adolescente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade". E alerta: "Se aprovada a redução da maioridade penal, abrem-se as portas para o desrespeito a outros direitos da criança e do adolescente, colocando em xeque a Doutrina da Proteção Integral assegurada pelo ECA. Poderá haver um efeito dominó, fazendo com que algumas violações aos direitos da criança e do adolescente deixem de ser crimes como a venda de bebida alcoólica, abusos sexuais, dentre outras".
Para a doutora em Educação Humanística e do Comportamento e membro do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, Esther Arantes, reduzir a idade penal, “além de não resolver o problema da violência, criará muitos outros, alterando a Doutrina da Proteção Integral e a prioridade absoluta assegurada às crianças e aos adolescentes no artigo 227 da Constituição Federal de 1988”:
– O rebaixamento da maioridade penal enviará adolescentes, em sua grande maioria pobres, para as prisões de adultos, diminuindo suas chances de não reincidência e de conclusão dos estudos e profissionalização. Contribuirá, também, para o aumento da população carcerária, agravando a situação já existente nos presídios brasileiros, considerados dos piores do mundo.
Segundo o pesquisador do Programa de Iniciação Científica da PUC-Rio (Ética e Alteridade) e interlocutor social na ONG Viva Rio, Ronilso Pacheco, o debate em torno da redução da maioridade penal é “extremamente prejudicado pela sensação de insegurança da sociedade, o que leva a mesma a ser orientada pelo medo”:
– O medo, por sua vez, legitima muitas sanções arbitrárias, desumanas e eliminadoras daqueles que são identificados como inimigos ou ameaças. De certo modo, a ação de menores de 18 anos que entram em conflito com a lei é real e ninguém nega. Porém, o debate orientado pelo medo orienta soluções que não estão referenciadas na justiça, e que querem corresponder a um desejo de vingança.
Já para a juíza Marcelle Ragazoni Carvalho, a discussão é de "extrema importância para que as pessoas saibam o que está em jogo". Ela pondera: “Não é apenas decidir por reduzir a maioridade penal para acabar com a impunidade. É importante conhecer a realidade do país, o que acontece com os menores infratores hoje em dia, com a lei atual, e o que aconteceria se fosse reduzida a idade mínima, envolvendo questões de ressocialização e abrigo”.
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Aprimoramento das instituições socioeducativas em jogo
Há dois tipos de dissuasão em jogo, aponta Mello: a genérica e a específica (o mesmo que reincidência). A dissuasão genérica opera pela ameaça de castigo, mesmo que alheio. Por exemplo: se a pessoa for pega, será punida por determinado castigo e isso pode dissuadi-la de cometer determinado crime. Já a dissuasão específica é o fato de que a experiência na cadeia fará a pessoa cometer menos (ou mais) crimes no futuro.
– No Brasil, não sabemos nada sobre dissuasão específica, nem sobre dissuasão genérica. Com dados de outros países, principalmente dos Estados Unidos, observamos que dissuasão genérica funciona um pouco. Por outro lado, a específica joga contra querer baixar a idade penal. Indo para cadeia, a probabilidade desse jovens reincidirem só aumenta – ressalta o economista, afiliado da Academia Brasileira de Ciências.
Na visão de Pacheco, a discussão da maioridade penal envolve lados políticos e sociais. Pelo lado dos parlamentares defensores da redução, ele destaca o posicionamento de enfrentamento ao governo. “A oposição sabe que o governo é fortemente contrário à redução, então defende essa proposta como uma forma de derrotá-lo”, aponta. Ele acrescenta que a imagem pública de "adolescentes que cometeram algum ato infracional sendo encarcerados gera a falta sensação de que a segurança está funcionando".
– Também existe a falsa defesa da vida e do “cidadão de bem” e a punição moralizante e estigamatizante entranhada na sociedade brasileira, herdeira do racismo e da criminalização da pobreza. Essa que quer garantir a segurança e a estabilidade da coesão social, punindo e isolando os que estão “inclinados à violência e ao crime” – destaca.
De acordo com Marcelle Ragazoni, a pena dos menores infratores tem três objetivos: punição, prevenção e ressocialização. “A impunidade estimula a criminalidade. No entanto, é extremamente importante a ressocialização, especialmente quando se trata de crimes cometidos por jovens, para que possam ter um futuro com mais esperança, livres do crime, o que é bom para toda a sociedade”, justifica a juíza federal de São Paulo.
Para Esther Arantes, as propostas de redução da maioridade penal suscitam o debate de questões que há muito estão negligenciadas no Brasil: “o lamentável, preocupante e indefensável estado em que se encontram e funcionam as prisões brasileiras, o fato do ECA não ter sido ainda implantado em sua totalidade e a própria legislação antidrogas, que tipifica como traficantes pessoas envolvidas no varejo da droga”.
“Presídios superlotados e mais marginais em convívio social”
O juiz Sérgio Luiz Ribeiro de Souza acredita que a redução da maioridade penal traria, como consequências, o “recrutamento de adolescentes cada vez mais novos pelas organizações criminosas, a superlotação ainda mais exagerada dos presídios e a formação de marginais que, um dia, retornarão ao convívio social”.
Segundo o advogado criminalista Douglas Galiazzo, mestre em Políticas e Práticas com Adolescente em Conflito com a Lei pela Universidade Bandeirante de São Paulo e assessor especial da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, “seria crueldade reduzir a maioridade, pois continuaríamos colocando negros e pobres encarcerados, sendo que o Estado novamente se omitiria em investir na educação, saúde, lazer e moradia”. Para Galiazzo, que defendeu em seu mestrado a tese “Adolescente em Conflito com a Lei”, é necessário discutir esses assuntos, e não a redução da maioridade penal.
A ausência de políticas públicas de promoção de direitos para adolescentes e jovens, incluindo as políticas culturais, esporte e lazer, é reconhecida por Esther Arantes. Para ela, também “não se pode permitir que o populismo penal seja a resposta dado ao vazio deixado por tais políticas”.
– Urge que toda a população brasileira tenha acesso a serviços de qualidade e que os projetos para crianças e jovens saiam do circuito penal. Deve-se, com a máxima urgência, implementar o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que prioriza as medidas em meio aberto, além da reforma das unidades de internação mediante parâmetros pedagógicos e arquitetônicos humanizados e que dispõe sobre os Programas e Planos de Atendimento Socioeducativos – avalia a professora da PUC-Rio e da Uerj.
Já na avaliação de Mello, a maneira mais produtiva de prosseguir seria o Congresso “obrigar a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) a produzir os dados do sistema penal, adulto e juvenil, para que se possa começar a conhecer o fenômeno”.
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Mensagem da CNBB sobre a Redução da Maioridade Penal "Temos acompanhado, nos últimos dias, os intensos debates sobre a redução da maioridade penal, provocados pela votação desta matéria no Congresso Nacional. Trata-se de um tema de extrema importância porque diz respeito, de um lado, à segurança da população e, de outro, à promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente. É natural que a complexidade do tema deixe dividida a população que aspira por segurança. Afinal, ninguém pode compactuar com a violência, venha de onde vier. É preciso, no entanto, desfazer alguns equívocos que têm embasado a argumentação dos que defendem a redução da maioridade penal como, por exemplo, a afirmação de que há impunidade quando o adolescente comete um delito e que, com a redução da idade penal, se diminuirá a violência. No Brasil, a responsabilização penal do adolescente começa aos 12 anos. Dados do Mapa da Violência de 2014 mostram que os adolescentes são mais vítimas que responsáveis pela violência que apavora a população. Se há impunidade, a culpa não é da lei, mas dos responsáveis por sua aplicação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), saudado há 25 anos como uma das melhores leis do mundo em relação à criança e ao adolescente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade. As medidas socioeducativas nele previstas foram adotadas a partir do princípio de que todo adolescente infrator é recuperável, por mais grave que seja o delito que tenha cometido. Esse princípio está de pleno acordo com a fé cristã, que nos ensina a fazer a diferença entre o pecador e o pecado, amando o primeiro e condenando o segundo. Se aprovada a redução da maioridade penal, abrem-se as portas para o desrespeito a outros direitos da criança e do adolescente, colocando em xeque a Doutrina da Proteção Integral assegurada pelo ECA. Poderá haver um “efeito dominó” fazendo com que algumas violações aos direitos da criança e do adolescente deixem de ser crimes como a venda de bebida alcoólica, abusos sexuais, dentre outras. A comoção não é boa conselheira e, nesse caso, pode levar a decisões equivocadas com danos irreparáveis para muitas crianças e adolescentes, incidindo diretamente nas famílias e na sociedade. O caminho para pôr fim à condenável violência praticada por adolescentes passa, antes de tudo, por ações preventivas como educação de qualidade, em tempo integral; combate sistemático ao tráfico de drogas; proteção à família; criação, por parte dos poderes públicos e de nossas comunidades eclesiais, de espaços de convivência, visando a ocupação e a inclusão social de adolescentes e jovens por meio de lazer sadio e atividades educativas; reafirmação de valores como o amor, o perdão, a reconciliação, a responsabilidade e a paz. Consciente da importância de se dedicar mais tempo à reflexão sobre esse tema, também sob a luz do Evangelho, o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunido em Brasília, nos dias 16 a 18 de junho, em consonância com a 53ª Assembleia Geral da CNBB, dirige esta mensagem a toda a sociedade brasileira, especialmente, às comunidades eclesiais, a fim de exortá-las a fazer uma opção clara em favor da criança e do adolescente. Digamos não à redução da maioridade penal e reivindiquemos das autoridades competentes o cumprimento do que estabelece o ECA para o adolescente em conflito com a lei". |
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