Juliana Reigosa e Maria Silvia Vieira - aplicativo - Do Portal
11/05/2015Cem anos depois do massacre de armênios cometido pelo Império Turco-Otomano, entre 1915 e 1917, a declaração do papa Francisco, qualificando-o de “genocídio”, renova o debate sobre as implicações desse episódio à sombra da História. Localizada em uma região montanhosa da Eurásia (encontro do leste europeu com a Ásia Menor, entre o mares Negro e Cáspio), a Armênia foi a primeira nação a adotar o Cristianismo como religião oficial, a partir do ano 40 d.C. Para o professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio Márcio Scalércio, a divisão entre os armênios revela-se um dos pontos centrais para compreender os desdobramentos históricos: uma parte é ligada à Igreja Cristã Armênia, que aceita a supremacia romana, enquanto a outra é formada por cristãos ortodoxos greco-russos, que procuram outro tipo de vinculação. “A declaração do papa é no intuito de satisfazer esse anseio da nação armênia, especialmente dos cristãos armênios, que aceitam a supremacia romana”, avalia.
O discurso do papa causou reações discordantes na Turquia, que controlava o Império Otomano na época do massacre, e o governo turco chamou o embaixador do Vaticano à capital Ancara para "pedir explicações". Até hoje, o país governado por Tayyip Erdogan nega ter havido extermínio sistemático dos armênios. Alega que as mortes foram consequência da Primeira Guerra Mundial e da fome, não de uma campanha do extinto Império Turco-Otomano para dizimar as minorias cristãs. Segundo as autoridades turcas, morreram 500 mil armênios. Por outro lado, historiadores estimam uma quantidade três vezes maior (1,5 milhão), resultado da perseguição dos soldados otomanos.
Os massacres de armênios, inclusive, são descritos por vários especialistas como “o primeiro genocídio do século XX”. O pesquisador Bruno Hendler, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), ressalta: apesar das reformas políticas e institucionais "que modernizaram e secularizaram a Turquia", pondo um fim ao Império Turco-Otomano e criando a Turquia moderna, o genocídio dos armênios ainda é um tabu. Permanece na sociedade atual "porque está inserido na própria formação e consolidação do nacionalismo turco":
– A identidade de uma nação é definida por experiências sociais comuns, narrativas históricas construídas e um senso de futuro compartilhado entre seus indivíduos. A revisão histórica de acontecimentos específicos, como genocídios, tende a mexer com sentimentos particulares de cada nação, pois costuma contestar conceitos e tabus já cristalizados. Por isso, quando historiadores revisam a formação de Estados modernos, a chance de encontrar xenofobia atrelada à criação de uma identidade nacional é grave.
Para o professor de Direito da PUC-SP Pedro Henrique Demercian, coordenador da Comissão de Preservação da Memória do Genocídio do Povo Armênio (mais informações no quadro abaixo), “não há dúvida de que o chamado ‘genocídio do povo armênio’ caracterizou o primeiro do século XX”. Ele pondera, no entanto, que o episódio já se iniciara no fim do século XIX, entre 1894 e 1896, com os massacres de Abdul Hamid, quando cerca de 300 mil armênios foram mortos pelo sultão do Império Turco-Otomano:
– Dezenove anos depois, em 1913, os Jovens Turcos (coalizão formada por diferentes grupos que objetivavam reformar o governo e a administração do Império Otomano) ficaram irritados com o fato de as grandes potências se ocuparem da reforma e da questão armênia. Ainda mais por esta ter envolvimento direto do poderio europeu, como da Alemanha e da Rússia, na proteção e liberdade dos armênios.
Em novembro de 1914, o Império Otomano entrou na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Áustro-Húngaro e Reino de Itália). O então ministro da Guerra, Enver Pasha, desenvolveu um plano para cercar e destruir o exército russo do Cáucaso e de Sarikamis, além de recuperar territórios perdidos para a Rússia após a guerra Turco-Russa (1877-1878). Encaminhadas para a Batalha de Sarikamish, as forças de Enver Pasha acabaram destruídas. Ao retornar a Constantinopla, Enver creditou publicamente a derrota aos armênios que viviam na região, pois ficaram ao lado dos russos.
– O início do plano do genocídio começou com o desarmamento da população armênia, no início de 1915. A dificuldade de se chegar a informações precisas sobre o que ocorria em terras vizinhas favoreceu o cenário em que o governo turco-otomano mentia um acordo com o governo armênio. Dizia que as armas dos armênios deveriam ser entregues nas igrejas para que fossem recolhidas. Dessa forma, algumas pessoas influentes faziam esse pedido ao povo, sob o pretexto de que a Turquia entraria em paz com a Armênia caso seus habitantes se desarmassem – explica Demercian.
Logo depois, começou a completa censura aos serviços postais estrangeiros. A comunicação no campo de batalha cessou e, na Turquia, todas as cartas enviadas haviam de passar pela aprovação de um órgão do governo. “No início, a única forma de comunicar ao resto do mundo o que acontecia na Ásia Menor era por meio dos cônsules de outros países, instalados na Turquia e na Armênia, o que poucos anos depois também foi censurado pelo governo turco”, recorda o professor de Direito da PUC-SP.
– Após o completo desarmamento dos armênios, seguido de prisões e execuções de líderes políticos, religiosos, intelectuais e jovens, famílias foram despojadas de seus bens e deportadas. O resultado dessa empreitada foi um saldo de 1,5 milhão de armênios mortos, cerca de 80% da população na época. É difícil imaginar, nesse evento, uma mortandade exagerada decorrente apenas dos males da Primeira Guerra Mundial. Até porque o projeto dos Jovens Turcos tinha por escopo atingir uma população específica – avalia Demercian.
A embaixada turca argumenta, em nota, que "falar em genocídio é impossível, por ser um conceito jurídico". o professor de Relações Internacionais James Onnig, pesquisador do Grupo de Conflitos Contemporâneos, Massacres e Genocídios da Universidade Federal de São Paulo (UFSP), considera a retórica da embaixada turca “uma forma de desviar o assunto”. Para o especialista, “não há a mínima dúvida de que foi um genocídio, face à participação direta do governo nas deportações. A discussão técnica da expressão também é esvaziada, já que o termo surgiu para denominar o caso armênio”, reforça o também diretor de assuntos políticos do Conselho Nacional Armênio no Brasil.
– O jurista Raphael Lemkin baseou-se nos fatos ocorridos com os armênios para criar o termo genocídio. A partir do momento em que a Organização das Nações Unidas (ONU) começa a ser formada, ele é um dos maiores incentivadores da convenção contra genocídios. Várias vezes, Lemkin falou de forma pública que esse termo surgiu das notícias que recebia do conflito armênio e das comprovações de que aquilo seria premeditado – argumenta Onnig.
O doutor em História e professor do Departamento de História da UnB Virgílio Arraes é outro a descrever os massacres de armênios como o “primeiro genocídio do século XX”. “Não se pode esquecer de que, no século anterior, os irlandeses passaram por um sacrifício por conta da postura do governo britânico diante da chamada Praga da Batata. Por isso, dado o número de mortes e de deslocamentos forçados da população armênia na época, a ação do governo turco-otomano se enquadraria no conceito atual de genocídio”, compara Arraes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Relações Interacionais.
Reconhecimento está associado a interesses geopolíticos e comerciais
Ao chamar a atenção para o episódio histórico, o papa Francisco recoloca o tema "genocídio" em escala mundial, observam especialistas. Rússia, França e Alemanha, por exemplo, concordam com a qualificação feita pelo papa. Entretanto, a denominação não é reconhecida oficialmente por vários países, como Israel, Turquia e, inclusive, pelo Brasil. Para Scalércio, o reconhecimento, ou não, está associado a interesses geopolíticos e econômicos:
– Israel costuma ter proximidade com a República da Turquia e, ao mesmo tempo, é atento a situações de deslocamento de população que ocorrem em territórios palestinos. Por isso, Israel não tem inclinações e não entra na discussão de que os turcos cometeram genocídio. Já Estados Unidos e França são países com colônias armênias grandes. Os Estados Unidos, em especial, toma cuidado com as relações com os turcos porque a Turquia é uma grande aliada da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), tem uma posição estratégica no Oriente Médio e é praticamente o único país muçulmano com um sistema político parecido com o Ocidente. Ao mesmo tempo, o governo americano sofre grande pressão dos descendentes de armênios para tomar uma posição mais radical.
Na visão de Demercian, o Brasil não reconhece o termo oficialmente por conta das relações diplimáticas e comerciais com a Turquia, que são mais intensas do que com a Armênia. "A Armênia é um país pobre, sem saída para o mar, com frágeis relações internacionais e pouca força política no âmbito das Nações Unidas. Além disso, sua economia é do terceiro mundo e as relações econômicas internacionais são incipientes", contextualiza o professor.
– O Brasil, embora seja signatário de uma profusão de tratados internacionais sobre a proteção dos direitos humanos, até hoje não se sensibilizou com a questão do genocídio armênio. A omissão do governo brasileiro é entendida por meio de uma análise comparativa das nossas relações com a Armênia e com a Turquia – reitera o especialista.
Os laços diplomáticos entre Brasil e Armênia começaram em 1992, porém a Embaixada do Brasil em Ierevan foi aberta só em 2006. As relações bilaterais entre os países têm como principal suporte a comunidade armênia relativamente grande no país, residente no país, estimada em 40 mil pessoas, 25 mil das quais no estado de São Paulo, aponta o Ministério das Relações Exteriores. Já as relações entre Brasil e Turquia iníciaram-se, formalmente, em 1858, com a assinatura do Tratado Bilateral de Amizade e Comércio. Em 2010, foi firmado o Plano de Ação para a Parceria Estratégica, que aprofunda o diálogo e a cooperação em campos como política internacional, agricultura, ciência e tecnologia, comércio exterior e energia, entre outros setores. O comércio bilateral, por exemplo, cresceu 900% entre 2011 e 2012, alcançando o equivalente a R$ 6,3 bilhões, destaca o Itamaraty.
Para James Onnig, o reconhecimento do genocídio passa por uma série de etapas. “Em primeiro lugar, reconhecer o genocídio é permitir que esse tema entre nos currículos oficiais de educação. Os países que reconhecem o genocídio estão prestando um grande serviço à humanidade”, afirma.
– Ao entrarem no rol dessas nações que reconheceram o termo, os países engrossam as vozes pelos direitos humanos dentro de organismos multilaterais e dentro do sistema ONU, que é outra forma de levar a ideia adiante – pondera o professor de Relações Internacionais da Facamp.
Os países que reconheceram o genocídio armênio mais recentememnte são Alemanha e Áustria. No dia 23 de abril, o presidente alemão Joachim Guak admitiu a “corresponsabilidade” do país no crime. Um dia depois, a Áustria também reconheceu o episódio como genocídio. Ambos eram aliados do Império Turco-Otomano na Primeira Guerra. Onnig acredita que a aceitação do termo por países "com peso" pode criar uma mudança no quadro internacional:
– As ações da Alemanha devem ser mais concretas a partir de agora, e isso, aliado à posição do Vaticano, pode ser um termômetro das mudanças em escala mundial. É fundamental exigir que o país repercuta o tema dentro dos fóruns mundiais, pois tem uma força política muito grande. A partir de agora, a Alemanha deve se tornar uma fiadora para que outros países também reconheçam o genocídio.
Demercian, por sua vez, considera o reconhecimento como um passo importante para as Nações Unidas:
– Esse reconhecimento não é inspirado pelo sentimento de revanchismo ou pautado na busca de vantagens econômicas. No entanto, tem uma dupla repercussão: evitar que episódios semelhantes ocorram no mundo e resgatar a dignidade e a própria identidade do povo armênio, abaladas pelos episódios ocorridos no início do século passado e que foram responsáveis pela difusão, nos mais diversos continentes, das comunidades armênias.
Diálogo para não repetir erros
O governo da Turquia é um importante aliado na luta contra o islamismo radical, que está sendo devastador para as comunidades cristãs no Oriente Médio. Para Scalércio, a questão do islã tem “muita retórica e pouca ação porque não interessa à República da Turquia e ao próprio governo turco que esse islamismo radical ganhe força”. O mestre em Relações Internacionais Bruno Hendler afirma que a Turquia está em uma posição delicada no jogo de poder do Oriente Médio:
– De um lado, a Turquia é obrigada a tolerar a militarização de minorias curdas (povo apátrida que busca sua autodeterminação em território turco, iraquiano, sírio e iraniano) para combater o crescimento do Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Do outro, testemunha o crescimento de um populismo liderado pelo presidente Erdogan, que tem como base o retorno à tradição e à religião, em detrimento do secularismo que caracteriza a Turquia moderna.
Na visão de Arraes, a declaração do papa não desencadeia uma crise diplomática entre o Vaticano e a Turquia porque se refere a um império que não existe mais. “Embora a Turquia seja a herdeira direta do Império Turco-Otomano, a laicidade sempre foi um elemento importante na política do país”, argumenta o coautor do livro Introdução ao estudo das Relações Internacionais (Editora Saraiva, 116 páginas, 2013).
O governo turco afirmou que a declaração do papa Francisco "causa um problema de confiança nas relações com a Santa Sé". Há cinco meses, o Sumo Pontífice fez uma visita histórica à Turquia, quando promoveu uma importante aproximação com as lideranças muçulmanas. Para Arraes, o papa tem sido um “diplomata notável”:
– A intenção do papa, ao chamar a atenção para um episódio histórico, é importante porque não deixa aflorar o esquecimento. Ao relembrar o massacre, ele aponta para o diálogo como solução das divergências políticas, culturais e religiosas, e não da coerção. Em sua visão, a História teria uma finalidade pedagógica: não repetir os erros do passado.
Na visão de Scalércio, o governo turco poderia esboçar uma vontade maior em relação a isso, ao assumir um compromisso de conversas com os armênios e discutir algum tipo de reparação, que pode começar pelo reconhecimento do massacre e por um pedido de desculpa simbólico. Para o historiador, o objetivo do papa, em longo prazo, é reunificar a cristandade no mundo, e essa declaração seria um primeiro passo:
– Existe uma diáspora armênia, isto é, comunidades armênias vivendo em vários países do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, é muito grande. Esses povos pressionam os governos dos países onde moram a pedir explicações aos turcos sobre o assunto. O comportamento do papa também é um indício de que as pressões internacionais contra a Turquia tendem a aumentar.
Já para Arraes, a reunião entre cristãos no Ocidente e no Oriente sempre foi um ideal, mas ele não acredita que seja uma meta da Santa Sé:
– É possível que o objetivo seja próximo ao Concílio Vaticano II: a convivência, apesar das diferenças.
Impasse marca relação entre Armênia e Turquia
Para Hendler, a relação entre turcos e armênios deve ser entendida no contexto de segurança regional do Cáucaso, onde potências exteriores, como Rússia, União Europeia (EU) e Estados Unidos projetam seus interesses, de forma mais clara, desde o fim da Guerra Fria. Dos três países soberanos da região, a Armênia é o mais próximo à Rússia, enquanto Geórgia e Azerbaijão têm relações mais fortes com o Ocidente (EU e Estados Unidos).
– É natural que a Turquia, que é membro da Otan e alinhada ao Ocidente em termos de segurança internacional, tenha maior afinidade com Geórgia e Azerbaijão. A questão histórica do genocídio apenas reforça o maior distanciamento entre Turquia e Armênia, que ainda não possuem relações diplomáticas formais e são peças de um jogo maior envolvendo alianças com grandes potências, rotas de escoamento de recursos energéticos para a EU e movimentos separatistas como Nagorno-Karabakh (entre Armênia e Azerbaijão), Chechênia (dentro da Federação Russa) e Ossétia do Sul (na Geórgia) – analisa Hendler.
De acordo com Onnig, uma conversa entre Armênia e Turquia ainda é “difícil”:
– Recentemente, houve uma tentativa de aproximação mediada pela ex-chefe do Departamento de Estado dos Estados Unidos Hillary Clinton. Foi feita uma aproximação diplomática através de um jogo de futebol entre a Turquia e Armênia, tentando quebrar o gelo. O presidente da Turquia foi assistir ao jogo na Armênia. Isso foi chamado de ‘Protocolos Turco-Armênios pelos Estados Unidos. Porém, a primeira coisa que a Turquia exigiu foi uma equipe científica para avaliar se foi ou não genocídio. Os armênios, por sua vez, não aceitam discutir o fato. Esse é um dos maiores impasses que continuam até hoje.
Comissão da PUC-SP preserva a memória do genocídio do povo armênio A PUC-SP, por meio do Ato 03/2-15, instituiu a Comissão de Preservação da Memória do Genocídio do Povo Armênio, formada por professores e funcionários da instituição, descendentes de armênios, em um total de cinco membros. Coordenada por Pedro Henrique Demercian, a comissão foi incumbida de realizar uma série de eventos, ao longo deste ano, com caráter acadêmico e cultural, para marcar o episódio e se juntar na luta por seu reconhecimento. De acordo com Demercian, o objetivo geral é mostrar, inquietar e mobilizar o processo de convergência de conhecimento sobre o genocídio armênio, que completa 100 anos neste 2015. “É uma reflexão atualizada, interdisciplinar e multicultural sobre suas consequências na atualidade”, afirma. Serão realizadas palestras e colóquios, exposições de arte, música e teatro sobre o assunto, dando um maior significado ao episódio, mas com variantes que verberem para outros acontecimentos e sentidos. Além disso, Demercian destaca que a comissão criou um portal –em breve estará disponível – que reunirá todas as atividades relacionadas ao genocídio, com fotos, vídeos, links para outras plataformas e mídias, fora a possiblidade de interação com o usuário-visitante, que poderá inserir comentários, textos e outros dados de interesse ao tema. Ainda segundo o professor de Direito, esse registro não se encerra no ano de 2015. “Será permanente e constituirá uma documentação importante sobre o genocídio”, destaca. |
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