O dia 15 de março marca oficialmente o fim da ditadura militar no Brasil, exatos 30 anos atrás. Tancredo Neves assumiria a Presidência do Brasil se não tivesse sido internado por razões de saúde. Ele foi eleito no início de 1985, na última eleição indireta para presidente do país. Em seu lugar, José Sarney, então eleito vice, assumiu o cargo. A transição da ditadura militar para a democracia foi árdua. De acordo com o livro Diretas já: o grito preso na garganta, de Alberto Tosi Rodrigues (2003), uma pesquisa do Instituo Gallup mostrava que, em 1983, 80% das pessoas queriam a volta das eleições diretas, após 21 anos sob o poder dos militares. A retomada da democracia no Brasil foi resultado do enfraquecimento do poder militar e da pressão popular sobre as autoridades.
Uma das ações fundamentais para direcionar o cenário político à democracia foi a proposta da Emenda Constitucional nº 5. Também conhecida como Emenda Dante de Oliveira, ela recebe o nome em homenagem ao autor do projeto, o deputado do Mato Grosso pelo PMDB na época. No texto, a volta de eleições diretas para presidente e vice-presidente da República era a principal exigência, mas o voto universal e secreto também era uma demanda. O documento já estipulava novas eleições no dia 15 de novembro do ano que antecedesse o fim do mandato presidencial vigente.
Um acordo entre os partidos oposicionistas (PMDB, PDT, PT e PTB) fez com que a emenda começasse a tramitar no Congresso em março de 1983. A reconquista das eleições diretas para governador, em 1982, foi um dos fatores que possibilitaram uma proposta como essa. Segundo o professor de História do Brasil da PUC-Rio Rômulo Mattos, o regime passava por uma crise de legitimidade profunda.
– O sistema não se sustentava mais nem do ponto de vista político, nem econômico. Acima de tudo, havia um clamor pela volta da cidadania política no país – explica.
De acordo com o Diário Oficial, o documento dizia que, ao submeter a Emenda Dante de Oliveira ao Congresso Nacional, os deputados assumiam o papel de “porta-vozes do anseio da Nação, da imensa maioria do nosso povo, que há muito acalenta esta aspiração, mais forte agora, após ter ressuscitado politicamente, com a última eleição direta para governador”. Eles ainda afirmavam que, na época, bastava "um mínimo de patriotismo, de honestidade e de sentimento humanos para entendermos que é hora de mudar".
O anseio da nação estava só começando. A apresentação da emenda foi o início da campanha nacional conhecida como "Diretas Já!", liderada pelo então presidente do PMDB, Ulysses Guimarães. Mattos conta que, ainda em 1983, houve um "ensaio teste" em Goiânia para discutir as eleições diretas, a que compareceram cerca de cinco mil pessoas. O movimento, então, ganharia adesão nacional. Os esforços da campanha culminaram em comícios históricos pelo Brasil, marcados pela cor amarela e a frase "Eu quero votar para presidente".
No dia 25 de janeiro de 1984, 300 mil pessoas se reuniram na Praça da Sé, em São Paulo, segundo o jornal Folha de S.Paulo. A classe artística foi representada por Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Chico Buarque e Fafá de Belém, que marcou a manifestação ao cantar Menestrel das Alagoas, de Milton Nascimento e Fernando Brandt. O administrador Rui Daher compareceu ao comício logo após o fim do expediente de trabalho.
– Foi a manifestação que teve maior repercussão em São Paulo. O que mais me marcou foi a presença de gente que antes era muito dividida politicamente e, naquele momento, estava unida: Lula, Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães... É uma coisa que a gente não viu mais no Brasil. Naquela época, era algo focado somente na volta da democracia – observa.
O calendário de comícios se estendeu até abril, e a população se manifestou em várias cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, o grande comício em frente à Igreja da Candelária (foto do alto) se estendeu pela Avenida Presidente Vargas, em 10 de abril de 1984. De acordo com reportagem do dia seguinte do jornal O Globo, o Comitê Pró-Diretas calculou 1,2 milhão de manifestantes. A jornalista e cientista política Lúcia Hippolito foi ao comício e, assim como Daher, tem a união popular como principal lembrança.
– Uma coisa é passeata de militante. Outra coisa é família, gente com criança, na maior paz. Eu brincava dizendo que a polícia estava dando segurança e eu nunca tinha visto isso, eu sempre tinha que correr da polícia – recorda.
O economista Leonardo Andrade se formou na faculdade três anos antes da “Diretas Já”. Ele afirma que o cenário não era favorável para a juventude. Em 1984, aos 27 anos, ele foi ao comício porque acreditava que a campanha era uma esperança, um suspiro de alívio para os jovens.
– No meu convite de formatura, estava escrito: “Estudando em tempos difíceis”. Então, foi uma mobilização muito grande. O meu carro tinha adesivo das Diretas, meus amigos andavam na rua com adesivos, era uma coisa muito marcante. O movimento na Candelária foi emblemático – define Andrade.
Por mais forte que tenha sido o grito da população brasileira, as autoridades não pareceram escutá-lo. Às 9h do dia 25 de abril de 1984 começou a votação da Emenda Dante de Oliveira na Câmara dos Deputados em Brasília, derrubada após 17 horas de sessão. Eram necessários 320 votos a favor para alcançar o quórum de 2/3 dos deputados. Dos 479 congressistas que compunham a Câmara na época, 298 disseram “sim” e 65, “não”. Três se abstiveram e 113 deputados do Partido Democrático Social, partido dos militares, se ausentaram da votação. Mesmo com apoio de alguns dissidentes do PDS que votaram “sim”, a emenda foi vetada.
No filme Tancredo Neves, a travessia (2011), de Sílvio Tendler, as imagens após a sessão ilustram a indignação dos brasileiros. A plateia presente no plenário vaiava ininterruptamente. O hino nacional ecoava na sala com todos em pé, de mãos dadas, inclusive com apoio dos parlamentares favoráveis à emenda. O grito “1, 2, 3, 4, 5, mil, queremos eleger o presidente do Brasil!” se repetia.
Após derrota, o plano B
O livro de Rodrigues cita uma enquete da Folha de S.Paulo depois do veto em que 80% dos entrevistados condenavam a rejeição da emenda. Mattos afirma que não era mais possível voltar atrás.
– Houve a sensação de que “a luta continua”, esse era o jargão. Essas passeatas, mesmo que a causa tivesse sido derrotada, criaram um compromisso no Brasil com a volta da democracia – conta o professor.
Os opositores ao regime militar seguiram em frente. Segundo reportagem da Folha, na véspera da votação, Franco Montoro, então governador de São Paulo, pronunciou em nome dos governadores do PMDB: “Essa luta não pode cessar senão com a conquista das eleições diretas”. O plano da oposição era articular a indicação do então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves. Dessa maneira, ao menos o governo seria ocupado por um civil e não mais pelos militares. Segundo Lúcia, Ulysses Guimarães articulava o povo e Tancredo, os políticos.
– Tancredo era o político dos políticos. Ulysses fez a articulação para fora com as Diretas, não deu certo. Então, passou a ser a hora da articulação para dentro, e o nome de Tancredo era o candidato natural – explica a jornalista.
Mattos, no entanto, afirma que Tancredo também foi criticado.
– Tancredo Neves era o negociador preferido dos militares. O comportamento dele foi criticado por setores da oposição favoráveis às “Diretas Já” porque, quando a oposição estava apostando nos movimentos de rua para conseguir essa vitória, ele estava negociando com os militares, como se aquela postura tirasse o peso das ruas.
Era preciso conquistar o apoio de mais dissidentes do PDS. O desgaste interno do governo militar ampliou o número de governistas que optaram por apoiar os democratas. José Sarney, futuro aliado de Tancredo, decide deixar a presidência do PDS e cria a Aliança Frente Liberal para ratificar apoio ao PMDB. Em agosto de 1984, uma decisão na convenção do PDS ampliou o número de pedessitas que apoiaram a oposição: a escolha do deputado federal Paulo Maluf para representar o partido nas eleições indiretas no lugar do então ministro do Interior, Mário Andreazza.
No mesmo mês, a convenção do PMDB reafirmou a aliança democrática e anunciou José Sarney como candidato à vice-presidente da oposição. Com os apoios garantidos, Tancredo Neves renuncia ao governo de Minas Gerais para, enfim, concorrer à presidência da República.
Em 15 de janeiro de 1985, os 686 integrantes do Congresso votaram. Tancredo Neves obteve 480 votos, Paulo Maluf, 180. Nove deputados faltaram e 16 se abstiveram. Assim, Tancredo era eleito o novo presidente do Brasil. A euforia foi geral e a esperança de um novo país se confirmou. A posse de Tancredo seria no dia 15 de março daquele ano. Na véspera, o Brasil descobre o segredo que Tancredo omitiu durante toda a campanha: ele sofria de diverticulite.
A notícia veio junto com a internação do futuro presidente. Antes, ele assinou os atos da Presidência, para garantir que não houvesse retrocesso, conforme depoimento de Aécio Neves, neto e secretário particular de Tancredo, no filme de Tendler – procurado pela reportagem após a derrota nas eleições presidenciais de outubro, Aécio não retornou o pedido de entrevista. Os porta-vozes, no entanto, afirmavam que tudo se passava bem, mas no dia da posse o presidente não estava apto para assumir o cargo. Seguindo a Constituição, José Sarney, vice-presidente, foi empossado até que Tancredo se recuperasse.
A população brasileira acompanhou passionalmente a situação do presidente durante os 38 dias seguintes, com diversas manifestações de apoio. Em 21 de abril de 1985, por complicações da doença, Tancredo Neves morreu. José Sarney assumiu de fato a Presidência. Mattos lembra que a morte deixou muita gente preocupada e até desanimada.
– A morte de Tancredo foi um baque. Pelo fato de o ex-presidente do partido da ditadura ter assumido nesse momento novo da democracia, ficou uma interrogação na sociedade: o que vai ser esse governo?
Segundo Lúcia, as pessoas não estavam seguras com a posse do vice.
– [Sarney] sempre foi o queridinho da ditadura, então havia um medo muito grande. Por isso a posição de doutor Ulysses foi importante de ficar como uma espécie de “guardião” dos compromissos assumidos – ressalta.
A impopularidade de Sarney melhorou com a proposta do Plano Cruzado, que a princípio foi uma solução econômica, mas também terminou em crise. Politicamente, o novo presidente deu continuidade ao processo de transição. No mesmo ano, ele propôs a convocação da Assembleia Constituinte. Eram os primeiros passos para a elaboração da Constituição de 1988: um novo Brasil seria construído.
* Reportagem produzida para o Laboratório de Jornalismo.
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