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Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2024


Cultura

"Brasil está rasurando suas raízes portuguesas", diz pesquisadora

Luisa Oliveira, Viviane Zhuo e Yasmim Restum - aplicativo - Do Portal

06/03/2015

 Luisa Oliveira

A exuberante fachada de pedra lioz, tipo raro de calcário, num tom de cinza quase melancólico, disfarça todo o encanto escondido no salão principal de leitura, morada de tantos tesouros da literatura lusófona. Adentrar o Real Gabinete Português de Leitura é se permitir mergulhar no mundo mágico de M.C. Escher a cores, por um momento ser um dos personagens de suas criações surrealistas. A maçaneta dourada em forma de mão instiga na primeira visita, como um convite para conhecer um pouco mais do passado colonial brasileiro. Por trás dos pesados portões de ferro, um infinito de prateleiras e uma imensidão de lombadas coloridas acompanham o pé-direito de 23 metros de altura. Os 177 anos de história do Real Gabinete são comparáveis a seculares museus e bibliotecas do velho continente.

Metros de fita zebrada amarela e preta indicam os espaços interditados pelas reformas na suntuosa claraboia principal (a equipe de restauro é a mesma do Teatro Municipal). Em meio às obras, a professora Gilda Santos, doutora em Literatura Portuguesa e vice-presidente do Real Gabinete Português de Leitura, recebeu o Portal para uma imersão na cultura luso-brasileira, nas atuais trocas e influências entre as produções culturais de ambos os países e nas dificuldades para manter acesa a memória lusitana em terras tupiniquins.

Prestígio que não se converte em investimento

Frente a um cenário difícil para a cultura no país, o acervo de mais de 350 mil livros e uma rara coleção de pinturas, esculturas e pratarias do século XIX “sobrevive” com custo. Ancorado por uma associação independente formada por instituições e pessoas físicas e, sem o apoio do Ministério da Cultura ou das secretarias estadual e municipal, o Real Gabinete tenta driblar a tendência ao esquecimento das raízes portuguesas no Brasil:

– Temos um reconhecimento que mantém viva a cultura portuguesa no Rio de Janeiro, no momento, com um grupo de pesquisadores gabaritados trabalhando no nosso Centro de Estudos, o que nos dá prestígio internacional. O problema é que reconhecimento não se traduz necessariamente em verbas. Cultura aqui é samba, futebol e música popular brasileira; o Brasil está rasurando sua ascendência portuguesa – afirma com pesar.

O arrocho de R$ 22,62 milhões mensais da verba destinada ao Ministério da Cultura pelo Planalto não afeta diretamente o Real Gabinete Português de Leitura, mas põe em xeque o investimento do país na renovação, manutenção e perpetuação da sua história e riqueza cultural. Recentemente, entre 50 bibliotecas mais majestosas eleitas pela revista digital Architecture & Design, o Real Gabinete do Rio de Janeiro ficou em terceiro lugar, o que se reflete como mais uma confirmação de prestígio, mas não se converte em verbas.

– Como somos um depósito legal, todas as obras editadas em Portugal têm um exemplar obrigatoriamente destinado ao Gabinete, ou seja, somos um acervo permanentemente atualizado. Guardamos obras raríssimas como as primeiras edições de Os Lusíadas, de Luís de Camões, de 1572, e do Dicionário da Língua Tupi de Gonçalves Dias, manuscritos autografados da peça Tu só, tu, puro amor, de Machado de Assis, além de jornais, revistas e vasta correspondência de escritores. Temos até um dente do escritor Camilo Castelo Branco (na foto ao lado, veja a fotogaleria), conta a pesquisadora:

  Luisa Oliveira – Um senhor português muito rico, e frequentador assíduo do Gabinete, decidiu voltar para Portugal e se despedir de sua terra, já que estava muito idoso. Este senhor era cunhado de Castelo Branco, que tinha acabado de falecer. Assim, foi recebido em Portugal pela nora de Camilo, e insistiu em pedir à moça uma recordação do falecido. Então ela entregou a ele o dente do escritor, contando que um dia, quando ele sofria de dor de dente, sem conseguir escrever ou pensar, chamou um dentista e pediu que lhe arrancasse o dente. Quando todo o tormento acabou, Camilo disse a sua nora: “Toma lá, minha filha, por tudo o que me viste padecer”.

Quando ele voltou de Portugal, incumbiu um amigo de entregar o dente ao Gabinete. Foi então que, ao catalogar uns documentos, achou-se a carta do próprio dono do dente contando essa história e também uma carta do amigo, que termina com uma citação do livro de Camilo no qual fala do valor dos presentes: “Coisas que não têm valor intrínseco, mas que podem valer para uma pessoa, e coisas cheias de valor que podem não representar nada”, completa Gilda, emocionada.

Os mistérios e encantos do Gabinete

Transformada em auditório na década de 1960, a Sala dos Brasões reúne os brasões das cidades portuguesas ao redor do mundo, como Goa, na Índia, e Macau, na China. Mas antes de se tornar um auditório, era um espaço de convívio, reuniões. Gilda orgulha-se de quando Machado de Assis, renomado escritor brasileiro e fundador da Academia Brasileira de Letras, promovia encontros de intelectuais e catedráticos membros da ABL enquanto a Academia ainda não tinha sede própria. Segundo Gilda, Machado era frequentador do Gabinete desde criança, e tinha uma relação afetiva com o lugar, embora, para frustração de Gilda, só haja uma única referência ao prédio em sua obra, uma crônica na qual a personagem sobe as escadas do Real Gabinete:

– Subir por subir, poderia ser tanto as escadas do gabinete como as do açougue da esquina. Mas, como dizem que há fantasmas no Gabinete, acredito que ele é um dos que moram aqui, se penitenciando por não ter dividido com o Gabinete a glória e a fama dele – diverte-se, arriscando ainda um palpite sobre o esconderijo do fantasma do escritor: – Há três portas aqui nesta sala: uma que dá para o corredor, outra que é uma entrada para a Sala Queirosiana, onde guardamos os manuscritos e recebemos eventos e espetáculos, como o projeto Música no Museu (leia aqui). A terceira é uma falsa porta. Ela só foi feita para fazer a simetria da sala. Quem já leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, para um defunto autor ou um autor defunto, nada melhor que uma porta que não é porta – sugere com bom humor.

 Luisa Oliveira Ainda sobre a arquitetura neomanuelina do Real Gabinete, é possível reparar que as cordas retorcidas se repetem na fachada, nas colunas de ferro da sala principal de leitura, nas banquetas, mesas e cadeiras, colaborando para promover uma estética harmônica. Esculturas e pratarias antigas também fazem parte da decoração, como uma peça de prata e marfim original da exposição do Centenário da Independência, em 1922.

– Como se sabe, quando se comemorou o Centenário da Independência, houve uma exposição aberta às Nações Amigas, que construíram vários palácios para representar cada um seu respectivo país. Uma peça de Antônio Maria Ribeiro, que esteve na exposição de Portugal e mostra uma passagem de Os Lusíadas, foi roubada e só veio reaparecer uns cinco anos atrás, à venda num antiquário. Quando soubemos, fomos comprar imediatamente!

Gilda fala que o mistério mais recente do Real Gabinete está bem aos pés dos visitantes:

– Uma fotógrafa veio aqui e só fotografou os azulejos do chão, foi então que percebi a variedade. Devida a minha paixão por azulejos hidráulicos, reparei que nestes azulejos há monogramas: um “N”, um “J” e um “A”. Até hoje não sabemos o que essas iniciais significam.

Patrimônio histórico, condições arcaicas.

Durante a conversa com a equipe do Portal, a doutora em Literatura Portuguesa chegou a reclamar do calor algumas vezes, e lembrou que o tombamento do Gabinete pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural dificulta a instalação de ar-condicionado e até mesmo os planos de instalação de uma midiateca:

– O ar-condicionado vai ter que ficar para depois, infelizmente, estamos tentando fechar parcerias que possam dar início a essa obra. Temos um projeto, mas não temos verba. Tínhamos um projeto multimídia, vieram até alguns equipamentos, mas não chegamos a ativar porque não havia como manter. Nós precisávamos de espaço pra botar as caixas de livros. Por outro lado, precisávamos de pessoa para tomar conta, orientar, além de toda uma infraestrutura da qual não dispomos atualmente, lamenta.

Apesar da necessidade das reformas, o Gabinete está aberto ao público de segunda a sexta e promove cursos, conferências, musicais, tudo gratuitamente. É a maior biblioteca de autores portugueses fora de Portugal e, “talvez por todos esses méritos" foi o único escolhido para receber o patrocínio da Petrobras para o projeto Real em Revista, para preservar parte do acervo de periódicos brasileiros e portugueses do século XIX por meio de descrições e digitalizações. “Fomos os vencedores no Estado do Rio na linha de apoio a museus, arquivos e biblioteca dentre os 4.319 inscritos em todo o Brasil”, comemora Gilda.

Na última semana de janeiro, o Gabinete recebeu a segunda edição do Real em Revista, com 35 mil páginas digitalizadas, num total de 50 periódicos. O projeto não contemplou manuscritos ou livros raros, muitos desses em estado avançado de deterioração.

Embora para Gilda as relações entre Brasil e Portugal estejam economicamente bem, no aspecto político se encontram relativamente estremecidas:

– Portugal nunca exportou tanto vinho e tanto azeite como agora, mas isso não é cultura, tudo fica muito maleável. Não há investimentos do governo federal, estadual ou municipal para valorizar a cultura portuguesa. Acho igualmente importante, por exemplo, a forte candidatura do Cais do Valongo – principal porta de entrada de escravos do país em 1811 – como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, é uma parte da nossa história, de fato, mas não deveria ganhar destaque em detrimento da valorização da cultura portuguesa, afirma.

 Luisa Oliveira  E acrescenta:

– Nos últimos anos, o governo vem mudando o passado como se Portugal não tivesse descoberto o Brasil. É a pura verdade, basta abrir os jornais: o Brasil agora conta a sua história como se fosse escrita apenas por negros e índios, enquanto Portugal parece não existir. Há uma cultura de esquecimento das raízes portuguesas no Brasil.

 Na opinião da vice-presidente do Real Gabinete, “o Brasil dos últimos anos está rasurando essa ascendência portuguesa”, mas ela também critica o fato de Portugal ter reduzido os incentivos à manutenção da herança lusitana.

– Esse tipo de trabalho que realizamos no Gabinete deveria ser apoiado pelo governo português. O Instituto Camões tem muita força em Portugal, mas nós deixamos de ser vistos como um pólo importante de difusão da cultura portuguesa. Centros de estudos portugueses existem de norte a sul do país, em qualquer curso de letras. São pessoas que já trabalham com isso, então não precisam de espaço, só precisam de incentivos como livros, DVDs, CDs e pagamento de passagens para realizar o intercâmbio entre pesquisadores e autores. Isso tudo é muito barato, mas eles não investem nisso. Portugal acaba contribuindo para essa política de apagamento do Brasil, de rasura da ascendência portuguesa, desabafa.

Gilda frisa que a sensação é a de “remar contra a corrente para tentar mostrar a importância de Portugal” e que há marcas na cultura que valem a pena conservar, caso do Real Gabinete, xilogravura viva e a cores de M.C. Escher esquecida no Centro do Rio: “Quem não sabe a arte não a estima”, um dia lamentou Camões.