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25/11/2014Eco dos protestos que ganharam as ruas brasileiras em junho do ano passado, e transformaram a Copa em símbolo do mau uso de dinheiro público, o distanciamento entre a pauta social e a agenda política expõe uma crise de representação endêmica identificada por pesquisadores como o francês Pierre Rosanvallon, autor de Le Parlement des Invisible (O Parlamento dos Invisíveis, numa tradução livre, ainda sem versão em português). Para o professor do Collège de France, onde leciona História Moderna e Contemporânea da Política, a crise decorre de uma incapacidade de contemplar a complexidade da representação, que "corresponde não só a representar uma categoria social, mas também a recontar a história da sociedade, recontar a história de seus problemas e de suas repreensões, senão as individualidades não são ouvidas". No Brasil desde domingo passado, Rosanvallon abriu uma janela na intensa agenda de palestras – inclusive na PUC-Rio, terça-feira – para receber o Portal na residência do cônsul da França, no Flamengo, onde está hospedado. Em pouco mais de meia hora de conversa, apontou com eloquência os principais desafios da representação política e da democracia.
O primeiro deles talvez seja compreender que, a democracia não se consumou, pois "é sempre inatingível". Na avaliação dodiretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) e do ateliê intelectual na internet chamado La Vie de Las Idées (A Vida das Ideias), a grande dificuldade democrática está no descompasso entre a legimitidade das urnas e a legitimidade assaociada uma relação de confiança construída entre autoridade e sociedade. "Há uma legitimidade intermitente no lugar da legitimidade permanente. Observa-se uma distância entre a democracia de autorização, que corresponde ao voto, e a democracia de exercício, que corresponde à linha tênue entre governado e governante", alerta o especialista. Este tipo de distância costura, segundo Rosanvallon, traços comuns entre as manifestações do ano passado no país e movimentos como a Primavera Árabe e a onda separatista na Ucrânia: "Embora sejam questões muito diversas e muito diferentes, percebe-se um ponto em comum: a vontade do povo de ter a palavra, de fazer parte da decisão política. Democracia é isso: reanimar o diálogo social, e não simplesmente animar o jogo eleitoral".
Portal: No recente Democracia dos invisíveis, o senhor reforça a percepção, apontada por outros pesquisadores, sobretudo no campo das ciências sociais, de que o mundo vive uma crise de representação política. Ela é endêmica? Quais suas raízes?
Rosanvallon: A crise de representação parte do fato de que o princípio da representação nasce de uma imagem da sociedade. Mas é difícil formar uma imagem de uma sociedade muito mutável, individualista e a qual não se define simplesmente pela condição social. É definida também pela situação em que as pessoas vivem. Cada indivíduo é definido por sua postura, seu capital, sua formação, seu trabalho, sua família. Mas é definido ainda pelos eventos aos quais comparece, pelas repreensões que atravessa, pelas repreensões positivas, pelos reencontros e desencontros. Assim, a representação corresponde não só a representar uma categoria social, mas também a recontar a história da sociedade, recontar a história de seus problemas e de suas repreensões, senão as individualidades não são ouvidas na representação. Uma pessoa política tem o desafio de delegar por um certo grupo, uma certa bandeira. Penso que a representação é também um trabalho de conhecimento da sociedade, um trabalho de tomada de palavra pelos indivíduos. Portanto, é necessário pensar que a representação é, principalmente, uma questão colocada no mundo político.
Portal: Quais as implicações desta crise para a democracia?
Rosanvallon: A primeira consequência representa uma distância entre o mundo político e a sociedade. Esta distância é crescente porque uma eleição simplesmente permite governar, mas, depois, de alguma forma, esse governo deve ser legítimo na sua permanência. A grande dificuldade da democracia é que há legitimidade da instituição, legitimidade da autorização, mas não há uma legitimidade, posso dizer, associada à construção permanente de uma relação de confiança entre uma autoridade e a sociedade. Há uma legitimidade que se pode chamar intermitente no lugar da legitimidade permanente.
Portal: A “dessociologização da política” da qual o senhor fala em seus estidos é um sintoma da falência da democracia atual?
Rosanvallon: A política não é mais, simplesmente, uma imagem de uma sociedade. Porque, como disse, esta sociedade é difícil de mensurar. Não é simplesmente definida pelos grandes grupos sociais. A democracia não é um modelo a se realizar. A democracia é uma experiência, um projeto. O grande erro é pensar que essa nossa vivência é democracia, a qual, no Ocidente, muitos acreditam ter se concretizado. Os americanos pensaram que a iriam realizar e exportar para todo o mundo. Mas, mesmo lá onde ela nasceu há muito tempo, a democracia é sempre inatingível. Ao se pensar na democracia, deve-se pensar em seus problemas, suas utopias, suas falhas e dificuldades. Pensar na sua contradição, nas suas indeterminações.
Portal: A comunicação horizontal advinda das redes sociais abre a perspectiva, como acreditam muitos pesquisadores, de solucionar ou dirimir a crise de representação, por propiciar um envolvimento maior do cidadão no debate político e no processo decisório?
Rosanvallon: Não é a solução, mas pode ser um elemento de representação da sociedade. A representação não é simplesmente uma imagem. A representação é também a sociedade que se reconhece, na dimensão do conhecimento, da produção de um reconhecimento que não é só um reconhecimento das instituições políticas.
Portal: De que forma essa comunicação interativa proporcionada pelas novas mídias sociais altera a relação representante-representado?
Rosanvallon: A representação é um processo complexo que passa por diferentes modos e fases de expressão. O romance e o cinema, por exemplo,mostram-se muito importantes para a representação de uma sociedade. Assim também são as histórias tradicionais recontadas individualmente, os movimentos sociais. No fundo, uma sociedade é representada pela plena consciência dela mesma, de modo que se pode falar de uma denunciação competitiva do conhecimento de uma sociedade.
Portal: Ainda num contexto em que a representação política se mostra em xeque, pode-se perceber interseções entre as protestos de junho no ano passado no Brasil, em que a Copa virou símbolo do distanciamento da sociedade e do poder público, com a Primavera Árabe e os movimentos separatistas na Ucrânia, por exemplo?
Rosanvallon: O separatismo na Ucrânia e a Copa do Mundo são grandes questões, muito diversas e muito diferentes. Mas o ponto em comum é a vontade do povo de ter a palavra para ser parte da decisão, que está distante dele. A democracia é isso: reanimar o diálogo social e não simplesmente animar um jogo ou eleições.
Portal: Como o Brasil se insere nesse ambiente de crise representação?
Rosanvallon: Eu diria que, no Brasil, diferentemente da Europa e quase como em todos os países da América Latina, os partidos políticos não representam grupos sociais. A democracia na América Latina é definida pelos regimes históricos. No Brasil, os partidos representam os elementos da história do país. Pensar a história do PT, por exemplo, é como pensar a história do getulismo. Já no caso do PSD é repensar a história dos anarquistas liberais. Em cada país, os partidos políticos são os elementos formados pela história e pelo espírito do presente. Na França há o Partido Socialista, o Partido Comunista, o Partido dos Trabalhadores, há partido para todos os grupos sociais.
Portal: Quais os desafios e os principais problemas a serem superados na democracia atual?
Rosanvallon: Existem muitos pontos de problema na democracia, mas o principal está na margem da democracia de autorização, que é o voto, e a democracia de exercício, que é a linha tênue entre governado e governante. Esta nova faceta da democracia se opõe à questão do representante e representado. A representação é uma dimensão da vida democrática, mas a relação entre quem governa e quem é governado é outra dimensão.
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