Marina Ferreira - aplicativo - Do Portal
05/11/2014Foi em meio ao barulho das obras de expansão do metrô carioca, na Gávea, que a escritora argentina Beatriz Sarlo, uma das mais respeitadas ensaístas da América Latina, contou como registrou as transformações e as consequências da modernidade em sua cidade, Buenos Aires. Simpática, a autora de 72 anos – que veio ao Rio especialmente para o lançamento da edição brasileira de A cidade vista – Mercadorias e cultura urbana, lançado em 2009 e agora traduzido para o português pela editora Martins Fontes – falou por duas horas sobre a obra para uma plateia de cerca de 80 estudantes e professores da PUC-Rio, e lamentou poder ficar apenas um dia na cidade.
A cidade vista fala sobre Buenos Aires, mas não a da Casa Rosada, dos alfajores e do tango, e sim aquela que fica às margens, que é esquecida e invisível. Durante quatro anos Beatriz percorreu bairros da periferia para compor suas colunas semanais no jornal Clarín, registrando tudo com uma câmera fotográfica e utilizando métodos etnográficos próprios para analisar as diferentes regiões da cidade. Sempre bem-humorada, Beatriz compartilhou de algumas histórias curiosas sobre sua jornada:
– Percebi que, se percorresse certos lugares com um caderno moleskini nas mãos me olhariam torto, então resolvi trazer apenas minha câmera como companhia. A tal da máquina sobreviveu aos bairros mais violentos, mas quando a levei a um museu luxuoso ela sumiu de minha bolsa. Achei no mínimo curioso.
A autora explicou que procura entender a cidade como espaço onde se manifestam as consequências sociais da modernização, como o surgimento das “vilas-misérias”, bairros muito pobres que abrigam os imigrantes que as cidades grandes não conseguem absorver. E percebe que a própria representação de suas origens é alterada, numa tática de sobrevivência cultural:
– No bairro boliviano há uma festa para homenagear a Virgem de Copacabana. A santa não é popular na Bolívia, mas foi uma tradição construída pelos imigrantes para dar voz à sua cultura e integrar a vila.
Mas se, na América Latina dos anos 20, os problemas estavam mais concentrados em certas regiões das cidades, hoje, observa, questões como miséria, violência e descaso por parte das autoridades estariam espalhados pelo ambiente urbano, sem distinção entre bairros ricos e pobres: “Se antes estavam lá longe, na periferia; hoje miséria e violência estão por toda parte, foram horizontalizadas”.
As fortes migrações nos anos 20 também revelam outro quadro problemático de integração, no qual imigrantes coreanos com mais de 50 anos não dominam a língua espanhola, e seus netos, com menos de 25 anos, não falam uma palavra de coreano. Assim, viu de perto as consequências que a crise econômica trouxe para a cultura urbana, principalmente nos bairros onde se concentram imigrantes.
– A pós-modernidade, por si só, é excludente, mas se agrava principalmente onde os imigrantes encontram um lugar com governo ausente e miséria em abundância.
O primeiro capítulo do livro trata dos shoppings, centros comerciais e mercadorias que circulam pela cidade, que acentuariam ainda mais as dicotomias da modernidade, na qual, quando não se tem o poder de compra, não resta nada a não ser observar. Beatriz contou que foi em São Paulo que entrou em um shopping pela primeira vez – Buenos Aires só dez anos depois teria um.
Foi apenas uma das referências à sua relação com o Brasil. Contou diversas histórias sobre suas visitas ao país, a primeira delas com um grupo de amigos universitários à recém-inaugurada cidade de Brasília, nos anos 1960, deslumbrados com as construções de Niemeyer e o paisagismo de Burle Marx. “Apontávamos para as construções, e a cada palmeira que avistávamos dizíamos o nome de Burle Marx”, contou, em tom entre jocoso e saudosista.
Se seu ponto de partida e chegada é a cidade, a inspiração é a literatura:
– Minha vontade de conhecer a verdadeira Buenos Aires veio primeiramente do contato com a literatura argentina na juventude. Estudando autores argentinos como Jorge Luis Borges e Roberto Arlt, meu interesse cresceu e o primeiro livro grande que publiquei, Uma modernidade periférica, foi sobre a cidade. Apesar disso, não diria que foi a cidade em si que me inspirou a começar a escrevê-lo, mas antes de tudo, foram os escritores.
Sem pretender que suas reflexões tenham um caráter absoluto, já que entende os sistemas que formam as cidades modernas como muitas vezes incoerentes e que abrem espaço para diversas leituras, ressaltou a forte influência do pensamento do crítico francês Roland Barthes e do pensador alemão Walter Benjamin no processo de escrita de A cidade vista, entre 2004 e 2008. A partir de Barthes, compreendeu que a cidade é um espaço construído coletivamente por todos que o ocupam; e com Benjamin procurou perceber quais aspectos da cidade foram deixados de lado no projeto moderno das culturas dominantes.
– Hoje pensamos na categoria de cidade e associamos imediatamente à exclusão, termo que não aparece nos registros históricos do século XIX. No Brasil, por exemplo, não se pensava nos escravos; era uma sociedade escravocrata que pensava não ter escravos! Acredito que hoje há uma quantidade ainda maior de pessoas excluídas do que nessa época, mas continuamos a ignorá-las com nossa visão treinada e acostumada aos problemas sociais das cidades pós-modernas.
Se na palestra não houve espaço para temas políticos, antes de discorrer sobre sua cidade e país Beatriz – uma forte crítica da gestão Nestor-Cristina Kischner, escrevendo artigos sobre seus governos e sua estratégia de controle da imprensa – afirmou ser “absolutamente contra o patriotismo”, que considera “algo abominável”:
– Deveria ser deixado de lado ao se estudar qualquer sociedade, principalmente se for aquela em que você cresceu.
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