Projeto Comunicar
PUC-Rio

  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram

Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 2024


País

Um estupro por minuto, e apenas 10% são denunciados

Isabella Rocha e Nathalia Cardoso - aplicativo - Do Portal

06/06/2014

 Arte Lucas Sereda

Pesquisa ainda inédita do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima um quadro alarmante sobre a violência sexual no Brasil: há pelo menos 527 mil casos ou tentativas de estupro por ano – um por minuto –, dos quais apenas 10% são denunciados à polícia (51.101, em 2012). O economista Daniel Cerqueira, diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest) do Ipea, afirma que este número pode ser ainda maior, considerando a dificuldade das vítimas em falar do assunto. De acordo com o levantamento, 30% dos estupros são praticados por pais, padrastos ou parentes próximos à vítima – 11,9% das crianças são vítimas do próprio pai. Quando somado ao número de estupros cometidos pelos padrastos, há um aumento para 24%. Outro dado é que 15% dos estupros são coletivos.

A estimativa foi feita a partir de respostas específicas sobre violência sexual (leia abaixo), incluídas pela primeira vez em um conjunto mais amplo de perguntas que compõem o questionário do Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips), aplicado no fim de 2013 em 3.775 domicílios, em todos os estados brasileiros. A íntegra desta pesquisa ainda não foi divulgada, mas pedido do Portal o pesquisador antecipou dados e as perguntas a partir das quais foram estimados.

Cerqueira explica que o instituto vem realizando uma série de pesquisas sobre o tema num esforço de entender como a sociedade e as autoridades se comportam diante do problema – entre as quais a polêmica Tolerância social da violência contra a mulher, que abriu debate extenso sobre a violência contra a mulher no Brasil e gerou manifestações como a campanha #eunaomerecoserestuprada pelas redes sociais ao divulgar que 65% dos entrevistados (na verdade 26%, corrigiu-se depois o instituto) concordavam com a afirmação “Mulheres que usam roupas inadequadas merecem ser atacadas”, entre outras. (leia artigo A pesquisa do Ipea: um mal que veio para o bem).

– Percebemos que temos um grande problema de violência no país, então comprovamos que precisamos de mais politicas públicas. Por que não é simples, não basta pôr policiais na rua, e sim criar políticas públicas efetivas.

 Cerqueira descreve como alarmante a situação do país, não só pela violência em geral, mas pela violência contra a mulher e a criança, em particular o estupro:

– A violência sexual é algo abominável e mostra um país em processo civilizatório incompleto. É uma verdadeira barbárie – afirma, antecipando que, em junho, está prevista a divulgação de nova pesquisa, sobre o efeito da Lei Maria da Penha.

Notificações de profissionais de saúde

Outra pesquisa já divulgada pelo instituto, Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde, utilizou pela primeira vez dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde.

– Quando resolvemos pesquisar sobre estupro, não encontramos nenhuma base de dados nacional. Então fomos atrás de dados do Ministério da Saúde, as chamadas notificações de agravo – explica Cerqueira, que desenvolveu o trabalho com o técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea Danilo Santa Cruz Coelho.

O sistema foi desenvolvido no início da década de 1990 para padronizar o processo de Registro de dados de doenças e agravos de notificação compulsória – desde 2011, os profissionais de saúde estão obrigados a notificar as secretarias municipais ou estaduais de Saúde sobre qualquer caso de violência doméstica ou sexual que atenderem ou identificarem, como fazem com doenças infectocontagiosas (poliomielite, sarampo, febre amarela etc) em centros de referência para violências, centros de referência para DST/Aids, ambulatórios, maternidades, entre outros. Em 2011 foram notificados 12.087 ocorrências de violência sexual, sendo 88,5% contra mulheres e 50,7% crianças e jovens de até 13 anos.

De acordo com pesquisadores, as consequências do estupro se estendem no campo físico, psicológico e econômico, indo de lesões nos órgãos genitais, a contusões, fraturas, gravidez indesejada, DSTs e até a morte. Em termos psicológicos, o estupro pode resultar em transtornos como a depressão, fobias, ansiedade, uso de drogas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.

Perguntas sobre violência sexual*

1. Às vezes, algumas pessoas agarram, tocam ou agridem outras por razões sexuais de uma maneira realmente ofensiva. Isto pode acontecer em casa ou em outros lugares. Nos últimos 12 meses, alguém tentou fazer ou fez isso com você?

( ) Tentaram agredir sexualmente. Quantas vezes? ____ vezes [anotar]
( ) Agrediram sexualmente. Quantas vezes? _______ vezes [anotar]
( ) Não sabe/Não respondeu

2. [Se o indivíduo sofreu alguma agressão sexual nos últimos 12 meses prossiga. Se não, vá para a próxima questão]. Quem foi o agressor sexual na última vez?

( ) Pessoa desconhecida ( ) Policial ( ) Segurança privada ( ) Colega de trabalho ( ) Cônjuge/ex-cônjuge ( ) Padrasto ou madrasta ( ) Pai ou mãe ( ) Outro parente ( ) Qualquer outra pessoa conhecida ( ) Não sabe/não respondeu

3. [Se o indivíduo sofreu agressão sexual nos últimos 12 meses, prossiga. Se não vá para a próxima questão]. Na última vez que você sofreu agressão sexual, você fez o registro de ocorrência na polícia?

( ) Sim ( ) Não ( ) Não sabe/Não respondeu

4. [Se o indivíduo sofreu agressão sexual nos últimos 12 meses, prossiga. Se não vá para a próxima questão]. Se não fez o registro da agressão sexual, qual foi a razão?

( ) Vergonha ( ) Não queria envolver a polícia ( ) Medo de represália física ( ) Medo de ser mandado embora de casa ( ) Medo de ser mandado embora do emprego ( ) Outro motivo

( ) Não sabe/Não respondeu

* Perguntas feitas por equipe do Ipea em pesquisa domiciliar mais ampla, do Social (Sips) em 3.775 domicílios em 220 municípios em 2013. A margem de erro é de 5%.

 

O coordenador da pesquisa, Daniel Cerqueira, pesquisa crimes no Brasil pelo menos desde 1996. Sua tese de doutorado na PUC-Rio, em 2011, foi sobre Causas e consequências do crime no Brasil. Leia a entrevista exclusiva:

Portal PUC-Rio Digital: Qual é a dimensão do estupro no país?
Daniel Cerqueira:
Chegamos à estimativa de 527 mil estupros por ano, ou seja, um a cada minuto, mais achamos que ainda pode ser mais. Estamos relativamente próximos ao padrão americano, que é de 0,26% da população, e aqui é de 0,2%. Acertamos na mosca, ao comparar com os dados oficiais do Ministério da Saúde.

Portal: Quais foram os dados mais alarmantes apontados na pesquisa?
Cerqueira:
Vimos que 30% desses estupros são praticados por pais, padrastos ou parentes próximos à vítima, algo que é um absurdo. O que me chamou muito atenção é que 11,9% das crianças foram vítimas do próprio pai. Quando somado ao número de estupros cometidos pelos padrastos, há um aumento para 24%. Aquele que deveria proteger a criança é seu próprio agressor. A violência sexual contra as crianças se torna repetida, porque o agressor está dentro do âmbito familiar. Isso é uma tragédia do ponto de vista do desenvolvimento da criança: a autoestima e a sociabilidade desse indivíduo ficarão comprometidas. Outro dado bastante grave é que 15% dos estupros são coletivos.

Portal: Como as pesquisas Tolerância social da violência contra a mulher e Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde estão ligadas?
Cerqueira:
Elas são pesquisas complementares: uma delas, Tolerância social da violência contra a mulher, é qualitativa: nela, as pessoas responderam a perguntas específicas, que retrataram o brasileiro como bastante tolerante à violência. Somos uma sociedade patriarcal e ainda hoje muito machista. A outra, Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde, foi feita pelo método quantitativo, de acordo com os dados de ocorrência na rede pública de saúde, e só comprovou ainda mais as ideias culturais da população brasileira. Essas duas pesquisas foram uma iniciativa do ex-diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Rafael Guerreiro Osório (que se exonerou por causa da pesquisa divulgada com erro), e minha. Já tínhamos esse assunto na agenda da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais e da Diretoria de Instituição de Estado e Democracia. Quando resolvemos fazer a pesquisa sobre estupro, não encontramos nenhuma base de dados nacional. Então fomos atrás de dados do Ministério da Saúde, as chamadas notificações de agravo. Se alguém chega ao hospital vítima de alguma violência, o médico é obrigado a fazer esse documento. Usamos dados a partir de 2011, quando a violência contra a mulher foi incluída na lista de notificações de agravo.

Portal: Que ressalvas devem ser feitas na divulgação destes dados?
Cerqueira: Usamos esses números com bastante cautela por se tratar de um tabu e até por envolver a segurança do entrevistado, e pela dificuldade de extrair esta informação do entrevistado. Muitas pessoas não respondem por se sentirem envergonhadas em falar a respeito disso. Por toda uma ideologia presente na sociedade, há uma inversão de valores: é a mulher que acaba se sentindo culpada. Às vezes, ela é estuprada e não fala nem para o próprio marido, por medo de que ele a recrimine. É por isso que devemos falar deste número com bastante parcimônia. Acreditamos que o número é ainda maior. Assim como nem todo mundo vai para um hospital, e só 10% dos casos chegam ao conhecimento da polícia.  Nos EUA, 19% chegam ao conhecimento da polícia, aqui só 10%. Isso tem a ver com o padrão da polícia. O que sabemos é que, quanto pior a polícia, quanto menos confiança se tem nela, menor é a probabilidade de a vítima dar queixa.

Portal: Quais devem ser as ações tomadas a partir dos dados obtidos?
Cerqueira:
Queríamos fazer um estudo quantitativo para descrever o que se passa na nossa sociedade e entender os determinantes para que esses fatos aconteçam. Saber qual a variável para uma criança ser estuprada, ou qual a probabilidade de uma pessoa contrair uma Doença Sexualmente Transmissível (DTS). Estamos levando o estudo para discussão na área da Saúde e com as autoridades. Participei de duas audiências públicas, uma no Senado Federal e outra na Câmara dos Deputados. A ideia é que agora, com o conhecimento desses resultados, possamos fazer propostas de políticas públicas. Porque o importante não é só pôr policial na rua: devem-se criar políticas públicas efetivas.

Leia também:

Feminicídio: crime contra a mulher está prestes a se tornar agravante

A cartografia do estupro no Grande Rio.