Raphael dos Santos* - Da sala de aula
09/01/2014A sonoridade de britadeiras e máquinas de construção que ecoa na Zona Portuária não compete com o ritmo do samba. Músicos e compositores de diversas gerações, que se dedicam ao gênero popular, ainda são atraídos pela localidade, conhecida por abrigar os primeiros bambas da história.
Para o percussionista Wilson Almeida Mariano, 64, morador do Morro do Pinto há cerca de 40 anos, o amor pela região precisa estar evidente: “Aqui é muito bom. Nunca pensei em me mudar”, afirma o músico. Nascido na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Wilson se mudou para a Zona Portuária após uma enchente ameaçar a casa em que morava com a família. No mesmo ano desfilou no Bloco Coração das Meninas, da Gamboa, e foi levado por uma amiga que namorava o Mestre Cinco, na época diretor de bateria da Portela, para conhecer a escola de Oswaldo Cruz. O ritmista passou a fazer parte da bateria da agremiação e desenvolveu habilidade em diversos instrumentos.
Entre os principais mestres que orientaram sua trajetória na Portela, Wilson destaca a figura de Marçal:
– Eu fiz parte da incrível bateria do Mestre Marçal. Tocava na ala de tamborins. Na época, lembro que participei da gravação com o Carlinhos da Caprichosos de Pilares e a cantora Simone, na Polygram (gravadora), e fizemos diversos shows pelo país – orgulha-se.
Na década de 90, Marçal se afastou da Portela e foi substituído pelo Mestre Timbó, que convidou Wilson para uma turnê pela Espanha e Portugal com a bateria da escola. Foi a primeira vez que o bamba saiu do Brasil, experiência que marcou sua vida e carreira musical.
– Na época eu trabalhava numa fábrica de bolsas e cintos e faltava um ou dois meses para vencer minhas férias. Era tudo o que precisava para fazer a viagem. Quando contei para o patrão, ele aceitou na hora.
Para o pandeirista Raphael Moreira, 31, estudar a história do samba foi o maior impulso que poderia ter dado à sua trajetória. O músico nasceu na Rua do Russel, na Glória, e mora na Gamboa com sua esposa e dois filhos desde 2010, quando enxergou a região com outros olhos:
– Foi uma coincidência proposital. Eu conhecia a Praça da Harmonia apagada, nem imaginava que tinha vida depois dela. Quando vi o apartamento e conheci a área, me encantei completamente pela vizinhança e pela vista.
O cultivo da tradição da raiz do gênero resultou na criação do grupo Bebadosamba junto com amigos, em 2005. Raphael também é criador do projeto Samba Menino, que conta a história do samba para crianças, e da roda do Sambastião. O projeto infantil nasceu em 2011 após uma apresentação na creche da Tia Dora, onde seu filho Mateus estava matriculado. Como o músico já conhecia a história do samba devido aos estudos para sua monografia da faculdade de publicidade, bastou adaptar estilo e linguagem para contar às crianças. Com o sucesso da apresentação, veio a ideia de procurar uma editora para publicar a história em livro. A primeira edição do Samba Menino saiu em dezembro de 2011. Em seguida, o sambista transformou o projeto em contação musical da história do gênero disposto em forma de show, até que, em agosto de 2012, foi lançada a segunda edição do livro, com opção de leitura em i8nglês.
Raphael, que trabalha na Secretaria de Cultura, também integra uma roda de samba e relembra obras de grandes nomes que se dedicaram ao ritmo. Essa é a proposta do grupo Sambastião, criado em 2012 com o cuiqueiro Marcelo Gimenez, apelidado de Paxú. A roda se apresenta em diversos lugares da cidade, especialmente na Rua do Russel, onde o grupo faz as festas com os ilustres convidados do samba, e na Zona Portuária. Entre as atrações que já se apresentaram com o Sambastião estão os compositores da Portela Noca e Monarco. O grupo também é um dos destaques mensais da quadra do histórico bloco Fala, Meu Louro, no Santo Cristo.
O fôlego que o pandeirista encontra para realizar suas atividades já não é comum para Wilson, que com o passar dos anos preferiu reduzir as viagens até Oswaldo Cruz e integrar a turma de cuiqueiros da Portela, onde ficou até 2010. Aposentado, o sambista vende churrasco num conhecido bar da região, além de prestar serviço para a Cedae como aguadeiro durante eventos públicos. Nos dias de carnaval, Wilson demonstra seu conhecimento nos desfiles de blocos da Zona Portuária como o Fala, Meu Louro e o Pinto Sarado.
Um recanto musical dos grandes
Além de Raphael e Wilson, a Zona Portuária também atraiu o percussionista Jaguaraci Pereira Machado, 59, mais conhecido como Jaguara. Nascido no Morro da Mangueira, Jaguara começou cedo no samba como componente da primeira bateria mirim do carnaval carioca, ao lado da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. O primeiro desfile foi em 1967, quando o sambista tinha 13 anos. Após alguns meses, Jaguara foi convidado pela cantora Alcione a integrar seu grupo já com viagem marcada para Portugal.
– Foi aí que começou minha carreira musical. Eu não tinha experiência nenhuma de viagens. Conheci a Europa durante dois meses. As primeiras viagens me deixaram muito assustado – relembra o músico.
Durante a aproximação com a cantora e a escola de samba fundada por Cartola, Jaguara foi diretor de bateria da Mangueira, entre 1988 e 1991, e fundou com Alcione a escola de samba mirim Mangueira do Amanhã. Havia muitos trabalhos paralelos de gravação, que foram responsáveis pela consagração do músico no meio dos bambas.
– Gravei com Agepê, Roberto Ribeiro e grandes sambistas daquela época. E depois ingressei na MPB – destaca o percussionista, que na década de 80 dividiu palco com Roberto Carlos, Maria Bethânia, Lulu Santos, Daniela Mercury, Ivan Lins e a Blitz, entre outros.
Em 1995, foi convidado para integrar o grupo oficial do cantor Zeca Pagodinho, onde toca até hoje. Sua ida para a Zona Portuária foi em 2001, quando se casou com uma moradora da região. Depois de divorciado, o percussionista comprou um imóvel na Rua Carlos Gomes, no Santo Cristo, e não planeja se mudar:
– Este lugar tem tudo a ver comigo. É musical, tem grandes músicos e eu fui muito bem acolhido pela comunidade. É um local que dificilmente se encontra aqui no Rio. Espero não sair daqui tão cedo.
Na mesma rua de Jaguara mora o poeta e compositor Nelson Nogueira, 69, mais conhecido como Seu Nelson. O sambista nasceu no Morro do Tuiuti, onde seus tios e sua avó desfilavam na escola Paraíso das Baianas – mais tarde batizada como Paraíso do Tuiuti.
– Acho que eu já nasci na música. Meu pai não era de samba, mas tocava oito baixos (sanfona) – ressalta Seu Nelson.
O músico chegou ao Morro do Pinto com apenas 4 anos. Na adolescência, ingressou como compositor do bloco Unidos do Moreira Pinto, um dos primeiros da região, e compôs para diversas agremiações da localidade. Saudosista e com olhar romântico sobre o bairro que o acolheu a vida inteira, Seu Nelson se emociona ao lembrar dos parceiros que obteve no samba. Entre os lugares em que já se apresentou, o compositor destaca o Zicartola, antigo reduto de sambistas fundado pelo sambista Cartola e sua companheira Zica.
Com tantas histórias acumuladas de uma vida de entrega ao samba, Seu Nelson tornou-se um dos personagens centrais do longa-metragem Cidade sem chão, dirigido pelo estudante de cinema da PUC Thiago Ortman, que retrata o processo de transformação da Zona Portuária através do olhar de moradores.
Para o último dos quatro a chegar à Zona Portuária, o pandeirista Raphael Moreira, o esquecimento do legado cultural da região é sua maior preocupação. Já Seu Wilson e Seu Nelson temem que o encarecimento dos serviços seja um fator que inviabilize a permanência de antigos moradores, enquanto o percussionista Jaguara afirma que a descoberta da região já esteja tornando a localidade agitada.
A trajetória do samba na Zona Portuária a partir do legado africano
No fim do século 19, a influência africana na cultura brasileira era mais evidente em localidades que reuniram quilombos de resistência e moradias baratas de negros recém-libertos. A contribuição religiosa e rítmica desses povos para a música popular resultou no primeiro gênero considerado nacional: o maxixe, mais tarde conhecido como o tango brasileiro. O estilo é contemporâneo do choro, que na época era o termo designado aos grupos que animavam as festas populares. Os principais expoentes da fase foram os compositores e pianistas Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga.
No início do século 20, o bota-abaixo da política de remodelação do prefeito Pereira Passos derrubou centenas de moradias de antigos escravos e sociedades pobres do Centro. Os morros de Santo Antônio e do Castelo foram completamente destruídos. Esta ação era determinante para que a região aludisse às largas avenidas francesas. Parte desta população removida se instalou na região da Cidade Nova, próxima à Praça Onze, onde já havia casarões e cortiços de famílias baianas. Este foi o cenário em que os primeiros sambas-maxixes surgiram de forma coletiva.
A conexão dessa sociedade composta pela região portuária e a Cidade Nova inspirou o sambista Heitor dos Prazeres a apelidar o local de “Pequena África”. Nesta fase, o carnaval já era marcado pelos festejos populares proporcionados pelos diversos ranchos e agremiações espalhadas região. Nas primeiras linhas da crônica Os cordões, do livro A alma encantadora das ruas, o escritor João do Rio descreve a sensação de estar num desfile de cordões já no início do século XX: “(...) Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipo que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que o Largo de São Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas (...)”.
Havia diversas agremiações na região conhecidas como blocos de sujos, que desfilavam sem organização de uma diretoria. Um dos blocos da região que resistiu à passagem do tempo é o Fala, Meu Louro, famoso por seu mascote ser um papagaio de bico azul. Durante as décadas de 70 e 80 a região viveu o auge dos desfiles de blocos, conforme relata o morador Wilson Carneiro.
Para a presidente do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, Maria De la Merced Guimarães, o resgate histórico da região, responsável pelo retorno de diversas agremiações locais, resulta na perda da espontaneidade cultural.
– Na verdade, eu vejo uma sobreposição. Acho que a preservação daqui, tirando essa parte da arqueologia histórica, está bem equivocada – afirma Merced, lamentando que a relação afetiva dos moradores com o bairro esteja sendo abafada pelas transformações da região.
* Reportagem produzida para a disciplina Laboratório de Jornalismo.
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