Gabriel Camargo - aplicativo - Do Portal
10/12/2013Quando o projeto de pacificação nas favelas cariocas foi inaugurado, em dezembro de 2008, no Morro Dona Marta, em Botafogo, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) eram apresentadas como a grande solução para recuperar regiões da cidade que passaram por décadas abandonados pelo poder público e relegadas às mãos de traficantes. Cinco anos depois, são 36 UPPs lançadas, e muitos ainda os problemas a enfrentar, como mostram episódios como o do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido em 14 de julho após ser levado para averiguação na UPP da Rocinha, onde morava. Depois que o caso ganhou repercussão nacional, 25 policiais militares da unidade foram denunciados pelo Ministério Público. Os avanços são reconhecidos pela população e se refletem em dados como a diminuição da violência e melhores resultados escolares nas comunidades pacificadas. Mas a percepção sobre as UPPs, seja entre os moradores, seja entre especialistas em segurança pública, está longe da unanimidade.
Fundador e chefe do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ e membro do Centro Internacional de Pesquisa de Violência (International Center for Violence Research / ICVR) da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, o sociólogo Michel Misse afirma que as UPPs trouxeram ganhos e danos à cidade:
– Um lado muito positivo é o fato de que o atual governo conseguiu desarmar as quadrilhas nas principais favelas, onde o tráfico estava mais organizado e havia um controle armado muito forte por várias décadas. O lado negativo é a presença ostensiva e irregular da polícia nas favelas, que é necessária, mas ao mesmo tempo cria constrangimento para os moradores, especialmente os jovens, que passam pela situação humilhante de revistas. Os efeitos disso em médio e longo prazo são péssimos.
Especialista em sociologia urbana e coordenador de projetos de pesquisa como o que avalia o impacto das UPPs em três favelas no Rio, o professor Marcelo Burgos, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, vê o projeto de pacificação como positivo:
– A UPP, no geral, é positiva em vários aspectos. Primeiro porque desloca a lógica que ainda existe nas áreas não pacificadas, ou pelo menos introduz um novo horizonte de possibilidades em relação à segurança pública das favelas. Embora tenha havido políticas anteriores de policiamento comunitário, talvez tenha sido a mais bem-sucedida, ainda que seja uma experiência pontual. Será difícil simplesmente retroceder. Acho que a UPP abriu uma possibilidade, é uma chance de as coisas acontecerem.
Os traficantes revidam tentando demonstrar poder: a UPP instalada na Vila Cruzeiro não inibiu um tiroteio durante o Desafio da Paz, corrida no Complexo do Alemão, no dia 27 de maio, por exemplo. Ainda assim, o subcoordenador de polícia pacificadora, coronel Cláudio Lima Freire, afirma que as UPPs são o caminho mais fácil para se devolver ao Estado certas regiões que antes “pertenciam” aos traficantes, por exemplo, e torná-las mais justas:
– Precisamos retomar o território para o Estado. Sem segurança, as outras entidades (públicas e privadas) não conseguem entrar e desenvolver suas atividades profissionais nestas regiões. Busca-se, com a chegada da Polícia Militar, criar um ambiente de segurança para a comunidade para que, com isso, a polícia passe a ser um facilitador para a chegada de cidadania e de liberdade, com ações dos órgãos públicos e privados, que muitas vezes não conseguiam entrar nestes locais.
Porém, a presença da Polícia Militar nas favelas cariocas nem sempre é vista com bons olhos. O caso do auxiliar de pedreiro Amarildo de Souza, que após entrar em um carro de PMs na Rocinha não foi mais visto, trouxe de volta à tona o debate sobre a violência policial, principalmente pelo passado de conflitos entre moradores e policiais – o coronel Cláudio Lima Freire não quis comentar o caso Amarildo antes da “solução dos inquéritos e a devida apreciação do Ministério Público e do Poder Judiciário”.
Misse acredita que o problema não esteja apenas na formação dos PMs.
– Não é só falta de treinamento. Isso tem a ver com uma cultura policial autoritária, que já vem de décadas. Não vamos mudar de uma hora para a outra; mas, aos poucos, vamos mudar.
No site oficial da UPP, o governador Sérgio Cabral Filho afirma que o “principal objetivo (das UPPs) é combater facções criminosas e devolver à população a paz e a segurança”. O sociólogo Eduardo Alves, da diretoria do Observatório de Favelas, cobra outra forma de ação:
– Falta treinamento para uma ação diferente. O policial não é só mal treinado; é treinado para a repressão, para a guerra, para a ação violenta. Isso é um equívoco. É necessária uma mudança de concepção. A segurança pública tem que se focar na defesa do cidadão, na defesa da vida. Não se pode utilizar os instrumentos de segurança para proporcionar o terror, a violência, a truculência. Repito: o Brasil precisa alterar o significado de segurança, precisa rever suas polícias, precisa desvincular a ideia da guerra de suas ações.
Já Burgos vê o processo de ocupação das favelas como uma forma de reformar a Polícia Militar, mesmo que de maneira discreta:
– Ela representa uma reforma da própria polícia, sem alarde. Foi uma forma muito pragmática que o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, encontrou de, por dentro, tentar melhorar a polícia. Mas a UPP tem prazo de validade. Mesmo que Cabral consiga eleger seu sucessor, esse truque de fazer reforma sem fazer reforma esbarra num processo que tende a ocorrer, o de a velha polícia se impor.
Para Alves, a aposta, enquanto mudanças mais radicais não acontecem, deve ser numa alteração do comportamento dos policiais nas UPPs. Ele sugere ações como: acabar com o uso ostensivo das armas pelos policiais; garantir a entrada de outros serviços públicos; assegurar que o comandante da unidade não seja uma espécie de “prefeito da favela”; construir um espaço de diálogo com prefeitura, representantes da segurança pública e da força policial para diálogo permanente com os moradores; e acabar imediatamente com as ações repressivas, por exemplo.
– Enquanto as mudanças mais profundas não ocorrem, temos que saber dialogar com as UPPs e com o poder público. Essas medidas ajudariam muito. Tais iniciativas não significam mudanças profundas na polícia, mas melhorariam muito a ação das UPPs e a relação delas com os moradores.
Hoje são 36 Unidades de Polícia Pacificadora que ocupam 233 comunidades por todo o Rio de Janeiro, de acordo com o site da UPP (ao lado, a última atualização do mapa, com 28 comunidades destacadas). Apesar de contar com unidades em todas as regiões da cidade, a Zona Oeste, com Jardim Batan e Cidade de Deus, unidade com maior área, teve menos atenção em comparação à Zona Norte, por exemplo, que conta com 23 UPPs. O chamado “Cinturão Olímpico” já foi fechado e tinha o foco a Zona Sul – com oito unidades – e a região ao redor do Maracanã, o que gerou críticas em relação ao planejamento. O coronel Freire pondera que era preciso começar por algum lugar:
– O processo de pacificação deveria iniciar-se por alguma região, e o primeiro passo foi dado cinco anos atrás em uma comunidade pequena, o Santa Marta, pois precisávamos experimentar e aperfeiçoar o programa. E se começássemos por outra região? Sempre vai haver essa comparação de regiões e o questionamento de “por que começou por ali e não por lá”.
Uma das promessas do governo Sérgio Cabral, em 2010, foi que o Complexo da Maré seria ocupado no primeiro trimestre de 2011. Agora, a região considerada uma das mais violentas da cidade –marcada pelo assassinato do engenheiro Gil Augusto Gomes, em 8 de junho, que entrou por engano na Maré ao tentar retornar para o Aeroporto do Galeão e acabou baleado, além do jogador Bernardo, do Vasco, que também se envolveu em uma confusão com traficantes do local –, tem previsão para ser ocupada apenas em 2014. Sobre o atraso, o coronel Freire alega falta de efetivo:
– A Maré será ocupada, porém com a mesma dedicação no planejamento operacional e logístico já utilizado em inaugurações de UPPs anteriores. Só aguardamos ter efetivo e logística para isso.
Hoje, são pouco mais de 9 mil policiais que trabalham em UPPs, cerca de 20% do efetivo da PM no estado. Para Jacqueline Muniz, pesquisadora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), “é impossível crescer as UPPs para outras áreas, a menos que a polícia do Rio fique maior do que a da Índia”. Misse concorda com o coronel Freire e Jacqueline, e ainda lembra o custo dessa política.
– Com exceção do Complexo da Maré, as áreas mais perigosas já foram ocupadas, mas é claro que existe a migração. Isso acontece em qualquer parte do mundo. Esse é outro problema: saber como essa política pode ganhar abrangência maior do que tem atualmente. É uma política muito cara, muito difícil de ser mantida e, portanto, limitada. Mas não vamos criticá-la só porque é limitada.
Eduardo Batitucci, pesquisador da Fundação João Pinheiro (MG), lembra que “a polícia não tem só a ver com o crime”. Visão que Eduardo Alves também partilha, lembrando que os objetivos das UPPs não são restritos à guerra contra o tráfico.
– UPP é uma coisa, UPP social é outra. A segunda ainda não vi acontecer, está muito longe. Adotou-se um marketing para falar de policiamento de proximidade. E se continuou no mesmo sentido, misturando polícia com outras coisas. Mas até aí tudo bem. Só que ainda não deu certo. UPP social envolve o quê? Quais foram os direitos assegurados? Nem o direito a segurança foi ainda assegurado. No lugar da circulação dos fuzis nas mãos do tráfico, agora circulam nas mãos dos policiais. Qualquer território da cidade deveria ter direitos assegurados: transporte, saneamento, iluminação, água, educação, artes, compondo uma cultura de direitos. Esse para mim é um dos maiores problemas.