Jana Sampaio e Júlia Cople - aplicativo - Do Portal
07/12/2013Mandela não pertence a nós, pertence à história. O discurso do presidente americano Barack Obama sintetiza a repercussão mundial da morte de Nelson Mandela, ontem, em decorrência de complicações respiratórias. O legado do primeiro presidente negro da África do Sul – que lutou durante os 95 anos de vida, 27 dos quais preso por divergências políticas contra o regime de segregação do Apartheid – representa, para especialistas, um avanço em relação aos modelos tradicionais de resistência. Ainda de acordo os professores, Madiba, como era conhecido, deixa uma herança de “materialização das pautas e de reativação da agenda de direitos”.
Segundo o professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio Alexandre dos Santos, especialista em história da África, a mensagem mais importante é que a vingança torna-se plenamente superável quando o objetivo envolve a reconciliação nacional.
– A crítica de que Mandela manteve o sistema econômico da minoria branca e falhou em combater a corrupção é uma visão estreita de sua administração. O principal era a transição pacífica do regime do Apartheid para o regime democrático. A construção de uma base para a democracia racial – ressalta Santos, em entrevista ao Portal (leia a entrevista completa abaixo) – Ele deixa um vácuo enorme na África como um todo, pois não há alguém que esteja policamente alinhado a sua postura e ao que ele representa em termos de reconciliação nacional , bom senso e moral política e social – completa o especialista.
Para o professor de Relações Internacionais e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da UFRJ Pedro Cunca Bocayuva, poucas personalidades mundiais sensibilizaram tanto e ao mesmo tempo o Ocidente e o Oriente e as diferentes gerações. Mandela, acrescenta, representa a contramão da crise de ética e de representação política atual.
– Em 95 anos, o estadista simboliza a passagem do século XX ao XXI. Em meio ao dramático processo de descolonização sul-africano, enfrentou o racismo com uma política de "p" maiúsculo. Institucionalizado no debate formal histórico e escolar, como evidentemente acontecerá, traz para a sociedade atual a relevância das causas dos oprimidos e, assim, pode ajudar a reativar a agenda de direitos – afirma Bocayuva.
O professor de Relações Internacionais da PUC-Rio Márcio Scalércio (foto) divide o legado de Mandela em duas partes: o militante político e o estadista conciliador. Lembra que, como guerrilheiro, o sul-africano combateu o regime colonial e pós-colonial sul-africano, acreditando ser a luta armada o melhor caminho de transição.
– Na prisão, esse caráter militante não desapareceu, mas foi preenchido por reflexões sobre como evitar uma guerra civil em seu país. Quando se tornou presidente, conduziu o país sob o viés da conciliação. O ponto de intercessão entre os dois legados é a luta – complementa.
Na visão do especialista, Mandela, além de patrimônio da humanidade, é figura muito importante no desenho da África do Sul contemporânea. O cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael ressalta a determinação do estadista:
– Embora tenha passado tantos anos na prisão, conseguiu vencer o sistema de Apartheid na África do Sul. Além disso, quando chegou ao poder, procurou unir o país e não adotou uma postura revanchista, e sim conciliadora, para que o país pudesse avançar.
Bocayuva considera Madiba expressão mais forte do capital simbólico de valores humanísticos, solidários e universais. Ainda assim, credita o sucesso do líder à solidez política de sua atuação. “Mandela não é abstração, tem carne, osso e voz. Uma voz que tem cor e materialidade”, diz. Por esse motivo, diz, sua trajetória serve de exemplo para os movimentos sociais da atualidade:
– É preciso pensar nas formas de luta, como e a partir de que bandeiras a juventude deve atuar. Não pode haver conformismo. Mandela conduziu a luta mesmo preso por 27 anos. Isto é, a revolução é um processo, não um marco. Política é voz. As ruas, no caso do Brasil, ainda não encontraram a voz nem definiram uma gramática. Mandela traz essa simbologia de pôr os direitos sociais no centro, tira a luta do lugar-comum.
Embora Bocayuva (foto) ressalve que a dinâmica de luta social e luta por valores de hoje seja diferente, por causa da crise das instituições, e deposite nos coletivos e nas minorias a esperança de sucessão das pautas políticas de Mandela, Scalércio e Ismael são descrentes quanto ao surgimento de um líder semelhante.
– Mandela foi pioneiro. Estava no lugar certo na hora certa, sob o domínio de uma minoria branca. Venceu politicamente um sistema segregacionista e assumiu o governo. Não vejo alguém que possa sucedê-lo do ponto de vista simbólico, em razão de seu carisma, do contexto sul-africano de descolonização e da grande repercussão que causou – argumenta Ismael.
Alexandre dos Santos: "Não há sucessor para Nelson Mandela" Em entrevista ao Portal, o professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio especializado em África Alexandre dos Santos ressalta a importância política de Nelson Mandela para a instauração de uma democracia racial na África do Sul. Para o professor, apesar das contradições ainda presentes no país, o mandato de Mandela foi um importante primeiro passo para retirar a perspectiva de uma guerra civil. "Seu o objetivo principal era a transição pacífica sem revanchismo do regime do apartheid para o regime democrático, e nisso ele foi bem-sucedido." Portal PUC-Rio Digital: Qual o legado de Mandela para a África do Sul e para a classe política mundial? Alexandre dos Santos: O mais importante é que a revanche e a vingança são plenamente superáveis quando seu objetivo é a reconciliação nacional. É mais difícil, mas ele mostra que é possível quando se tenta agregar as populações para um bem comum. Portal: Em relação à atuação política e social de Mandela, o senhor vê alguma persona ou grupo que poderia sucedê-lo na África do Sul e no mundo? Santos: Mandela deixa um vácuo enorme na África como um todo, pois não há alguém que esteja politicamente alinhado à sua postura e do que ele representa em termos de reconciliação nacional, bom senso e moral política e social. Sua história é única. Podemos aproximar sua trajetória pacifista com a de Gandhi, mas ainda assim há diferenças. Portal: Alguns especialistas avaliam que a postura política de Mandela mudou após sua experiência na prisão. Se antes ele aderiu a luta armada, quando se tornou presidente o militante político adotou um discurso pacifista e conciliador. Como o senhor avalia essa mudança? Santos: Nada mais humano que um homem preso por 27 anos reflita sobre sua vida e amadureça seus ideais. Ele foi responsável pela mudança de paradigma de um Congresso Nacional da África do Sul, antes pautado pela violência. O tempo na prisão teve um impacto grande na sua vida; ele passou o tempo estudando, se inteirando do que estava acontecendo em seu país. Foi durante esse período que alcançou grande projeção internacional. Portal: Em relação ao mandato de Mandela enquanto presidente da África do Sul, a opinião pública se divide; para alguns sua marca foi o pacifismo, para outros Mandela manteve a política econômica vigente e falhou no combate à corrupção. O senhor concorda? Santos: Concordo em termos. Em 1948 o regime do apartheid virou lei e até 1994, quando Mandela assumiu o poder, existia um passivo de desigualdade que vinha desde da virada do século XX. Essa critica é uma visão estreita de sua administração, uma maneira ineficiente de analisar seu mandato. Ele preparou a base para que uma democracia racial fosse instalada na África do Sul. Em quatro anos de mandato ele fez o que pôde. Seu o objetivo principal era a transição pacífica sem revanchismo do regime do apartheid para o regime democrático. E nisso, sem dúvidas, ele foi bem sucedido. Não existiam setores estratégicos nos quais Madiba pudesse se desfazer dos responsáveis brancos, que em algum momento tinham se alinhado ao regime. Ele precisava dessas pessoas estratégicas para manter o país funcionando. Portal: No período do Apartheid uma minoria branca concentrava terras, renda e poder na África do Sul. Quase vinte anos depois do fim do regime segregacionista, os brancos ainda são os detentores do poder? Qual a contribuição do líder sul africano na implantação de um país mais igualitário? Santos: A realidade sócio-política de um país não muda rapidamente. Não é porque Mandela tinha sido eleito que o país deixaria de ser segregacionista, racista e desigual. Líderes políticos como Madiba colocam os trilhos e indicam o caminho, como um primeiro passo. Portal: Ainda há na África do Sul a segregação racial, mesmo que não seja mais institucionalizada? O que fazer para mudar isso? Santos: Um passivo tão grave como a segregação racial não se resolve do dia para a noite. Mas vejo uma tentativa de integrar um caminho considerado mais adequado para essa transição, embora as desigualdades proporcionadas por anos de exclusão ainda sejam presentes. Trata-se de um esforço que começou com ele e tinha o objetivo de pôr fim a um passivo de praticamente um século. Portal: Até que ponto a desigualdade social sul-africana se aproxima com a realidade brasileira? Santos: Assim como o Brasil, que tem muita dificuldade em promover maior igualdade social, o problema das tribos africanas é mais intensificado, já que o processo de segregação racial era muito arraigado. Redemocratização da população negra nos vários postos de trabalho. Hoje, todos podem competir pelos mesmos empregos, ainda que a desigualdade social e a qualificação se sobreponham. É um problema que precisa ser resolvido aos poucos, um passo de cada vez. Portal: Para especialistas, Mandela trouxe uma estabilidade social e política antes inexistente e foi fundamental para o avanço econômico da África do Sul. Na sua opinião, esse avanço possibilitou a inclusão do país nos Brics (grupo de países emergentes que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)? Santos: Mandela ajudou no processo de abertura. A ideia dos Brics é justamente integrar economias emergentes como as do Brasil e da África do Sul. Independentemente da crise econômica mundial e dos problemas financeiros desses países, a formação de um bloco de emergentes com questões semelhantes colabora, inclusive, para resolver as dinâmicas internas. Portal: Até 2008 Mandela integrava a lista de terroristas perigosos dos EUA. Qual a simbologia da retirada do nome de Mandela no mesmo ano em que o primeiro presidente negro dos Estados Unidos foi eleito? Santos: Acredito que a manutenção do nome de Mandela nessa lista foi um equívoco. A partir do momento em que ele ganhou o Nobel da Paz em 1993 e foi eleito presidente da África do Sul no ano seguinte, não teria motivos aparentes para que os Estados Unidos continuassem a considera-lo um guerrilheiro.
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De chefe tribal a chefe de Estado: a trajetória política de Nelson Mandela Primeiro membro de sua família a frequentar escola formal, Mandela recusou posto de chefe tribal, para o qual foi preparado durante a infância, e migrou para Joanesburgo, em 1941, em direção à formação em Direito e à participação política. Dois anos antes, o futuro líder sul-africano já questionava a ordem vigente: foi expulso por ativismo da Universidade de Fort Hare, onde cursava Artes. No mesmo ano em que o Partido Nacional começa a implantar o regime segregacionista na África do Sul, Mandela é eleito secretário nacional da Liga Juvenil do Congresso Nacional Africano, criada por ele com amigos. Quatro anos depois, seria escolhido líder da campanha de oposição. Articulou ainda a Carta da Liberdade, documento que consolidou as ideias antiapartheid e foi preso com outros 155 ativistas sob a Lei de Supressão do Comunismo. Logo após a absolvição, torna-se líder da guerrilha Umkhonto we Sizwe, durante a proclamação da república sul-africana, em 1961. Deixa o país ilegalmente para receber treinamento militar. Em 1964, Mandela é sentenciado à prisão perpétua por sabotagem ao governo, iniciando o período de 27 anos em que ficou enclausurado. Durante a reclusão, conquistou o respeito dos guardas, escreveu sua biografia e desencadeou a pressão internacional pela sua liberdade e pelo fim da violência de repressão. O símbolo da resistência da comunidade negra recebe o Nobel da Paz em 1993 ao lado de Frederik de Klerk, que conheceu nas negociações para sua libertação: juntos levaram ao fim da segregação racial instituída. Foi eleito presidente, aos 75 anos, nas primeiras eleições democráticas e multirraciais da história da África do Sul, aposentando-se da política dez anos depois. Considerado O Pai da Pátria pela população, a Organização das Nações Unidas instituiu o Dia Internacional Nelson Mandela em defesa da luta pela liberdade, justiça e democracia. |
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