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Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2024


Cidade

Beco das Garrafas, berço da Bossa Nova, hoje é uma placa

Luiza Tavares* - Da sala de aula

10/12/2013

 Gabriel Camargo

No ano em que o disco Getz e Gilberto, símbolo da internacionalização do ritmo e vencedor de cinco Grammys latinos, completa 50 anos, Bossa Nova é apenas o letreiro de uma loja na entrada do Beco das Garrafas. O lugar onde João Gilberto ouviu os primeiros aplausos não passa de um corredor abandonado, não raro tomado por moradores de rua. Embora a Bossa Nova seja um estilo imortal, consagrado nos quatro cantos do planeta, o Beco das Garrafas, apontado como berço do gênero, parece muito distante dos tempos de glória.

O turista que vem ao Brasil motivado pelos eventos internacionais e decide embarcar em um passeio despretensioso pela Rua Duvivier, a poucos metros da Praia de Copacabana, não faz ideia de quem já passou pela ruela entre os números 21 e 37. Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Eça e Sérgio Mendes também faziam do “inferninho”, como era chamado na época, o quintal de casa.

– Na década de 60, eu vi Jorge Ben aqui, pirralho, tocando seu violão. Você imagina essa cena hoje? – lamenta Luiz Migro, vendedor da loja Bossa Nova e morador do bairro desde que nasceu, lembrando-se do cantor que começou carreira por lá.

Olhando para a ruela suja e escura, Migro insiste:

– É mesmo difícil de imaginar.

Migro parece ser um dos únicos a se importar com o estado do local. Não apenas por motivos óbvios, como a movimentação econômica da área devido à revitalização de um ponto turístico, mas também por acreditar que a memória da época deve, sim, ser resgatada. Afinal, o país nunca esteve tão em voga e a Bossa Nova, tão esquecida.

– Isso tinha que partir de uma iniciativa pública. Conseguir R$ 1 bilhão para reformar o Maracanã é fácil. Tudo pela Copa do Mundo e os eventos internacionais. Custa liberarem R$ 500 mil para o resgate da cultura, da Bossa Nova? – indaga o comerciante. – O povo brasileiro gosta de se gabar por ser o país do futebol, mas se esquecem do orgulho que deveriam sentir da história da MPB. A cidade da garota de Ipanema não é mais como antes.

Um dos motivos que mais entristecem o lojista é a “privatização” do Beco das Garrafas. Em 2008, três empresários – Fernando Motta, Carlos Henrique Pollo e Sergio Martino – compraram o espaço. Na época, entusiastas do projeto chegaram a promover eventos para celebrar o novo rumo do lugar. O cartunista Ziraldo fez uma ilustração dos grandes cantores do momento de ouro do lugar para decorar a ruela. Cinco anos depois, no entanto, nem uma maçaneta foi trocada. A justificativa dos donos, ninguém nunca soube.

 Gabriel CamargoFernando Motta, procurado pela reportagem, disse que não podia responder sem os demais sócios, que não estavam na cidade. E assim, os planos de revitalização vão ficando para trás. Se, na década de 50, o nome do ponto surgiu do hábito que os moradores do edifício Cervantes – que fica em cima de onde eram as boates – tinham de jogar garrafas e até xixi nos cantores que varavam a madrugada, essa mentalidade ainda persiste.

Morador do entorno, o aposentado Rubens Mendes, 72 anos, é contra o projeto. Segundo ele, Copacabana é um bairro de idosos que não suportam muito movimento e barulho após as dez da noite.

–Se eles quiserem fazer um museu com lembranças da época, eu acho que a maioria apoia. Eu mesmo sou da geração Bossa Nova, ia gostar muito – afirma Mendes. – Mas não venham com música até tarde e bêbados fazendo bagunça na nossa rua, que a gente não vai deixar!

Do outro lado da história, Jorge Edison Silva, que diz atuar como faz-tudo na Dom Juan Night Club, única casa noturna que ainda resta aberta, sequer tinha conhecimento do projeto de revitalização do Beco das Garrafas. Não sabia se quer que ali, cerca de 50 anos atrás, respirava-se MPB.

– A maioria dos que tocavam aqui já morreu. Se fizerem uma obra nessa rua, os meus seguranças (como chama, com ironia, os moradores de rua) vão ter que procurar outra marquise e vão acabar caindo nos olhos da sociedade – protesta Silva.

O passado

Um dos grandes nomes da Bossa Nova daquela época e o precursor do projeto de revitalização do local, Luís Carlos Miele conta a história de sua vida no Beco das Garrafas. Para ele, o plano era um sonho, que hoje se transformou em frustração.

– O beco foi comprado por um empresário que parou as obras de revitalização e agora podemos ver o resultado: ele está novamente abandonado, não há nada lá – critica Miele. – O meu projeto começou como uma volta aos sonhos daquela época, um resgate daquela música maravilhosa, mas, infelizmente, não deu certo.

De acordo com Miele, mesmo na época de ascensão do local e do auge da Bossa Nova, o estilo musical migrava para outros lugares. Os artistas que se apresentavam no beco tornavam-se famosos. Teatros e casas de festas começavam a contratá-los. E, logo, o ritmo e seus atores conquistaram o mercado internacional.

– O Beco das Garrafas repentinamente acabou – lamenta Miele. – As garrafas que voavam dos apartamentos por causa do barulho pararam de voar. Lembro que em uma das boates que nós frequentávamos, a Ma Griffe, havia diversas mulheres, mas, pelo que eu me lembro, naquela época, o que importava mesmo era a música, nós só pensávamos em música.

Já o músico e produtor Roberto Menescal, um dos grandes ícones da Bossa Nova que por um tempo atuou no beco, não acredita no ressurgimento do local. Além disso, ele pensa que, se hoje ele não existe, um dos motivos foi a falta de infraestrutura.

– Sou completamente contra essa revitalização como lugar para shows, pois aquilo serviu muito na época – contrapõe Menescal. – Hoje isso não daria certo, pois são três bares pequenos demais, sem lugar para estacionamento, e acho que não existem voltas, a vida para mim é só de idas.

Menescal, ao lado de Carlos Lyra, Tom Jobim e Ronaldo Bôscoli, estourou, em 1958, com a Bossa Nova. Com composições próprias, a inspiração para as novas músicas veio de Jonhy Alf, Tom Jobim e Dick Farney. Ao voltar ao passado, ele relembra dos amigos e da emoção que sentia ao apresentar uma nova composição, feita muitas vezes no apartamento de Nara Leão, considerado na época um clube da bossa.

Segundo o compositor, entre 1950 e 1960, o Beco das Garrafas era um ponto de artistas e músicos que se encontravam depois do trabalho. As reuniões tornaram-se mais sérias e os grupos passaram a se transformar em trios e quartetos. Surgiram os primeiros pockets shows, muitos produzidos pelo próprio Miele e Ronaldo Bôscoli. Com o tempo, o lugar virou atração turística e ficou conhecido por todo o mundo. Apesar de tantas recordações, para Menescal, o beco, hoje, está somente nas lembranças.

 Gabriel Camargo – Atualmente o beco é apenas uma referência do passado, nada mais acontece de importante por lá, e acho que podia ser talvez um museu com fotos, vídeos, instrumentos, e local para palestras – sugere Menescal. – Isso perpetuaria a história daquele local que foi tão importante para o nascimento desse movimento conhecido no mundo inteiro.

O compositor completa ao afirmar que poderia ser construído um novo ponto de encontro chamado Beco das Garrafas, mas em outro lugar do Rio de Janeiro, como a Barra da Tijuca, por exemplo. A programação seria para um público interno e chamaria a atenção principalmente dos turistas, já que muitos ainda chegam à cidade em busca de ouvir a música.

Os projetos de revitalização não agradaram, também, a outro frequentador do Beco das Garrafas, o pianista Antonio Adolfo. Segundo ele, é uma ilusão tentar recriar o local.

– O passado não volta nunca mais, passou – afirma Adolfo. – Lembro-me de uma vez que cheguei a ir ao Little Club e estava horrível, não tinha clima nenhum. O Miele até estava organizando shows no Teatro Café Pequeno que lembravam o beco, mas é apenas um tributo, uma lembrança.

O músico começou a visitar o lugar aos 16 anos, quando ainda não podia entrar nas casas noturnas por serem para maiores de 21 anos. Segundo ele, falava-se muito sobre o beco durante as jam sessions feitas com os amigos e, por isso, ele tinha a curiosidade de conhecer o local que abrigava pianistas fantásticos como Luiz Eça, Luís Carlos Vinhas e Sérgio Mendes. Aos 17 anos, Adolfo começou a tocar profissionalmente e até hoje se lembra do momento — que foi seguido por uma apresentação no beco.

– Meu primeiro show foi com Carlinhos Lyra, um dos grandes nomes da Bossa Nova – destaca Adolfo. – Logo depois, em 1964, quando não tinha nem 18 anos, fui convidado para fazer um show no Beco das Garrafas com a Leny Andrade e com o Raul de Souza, Raulzinho naquela época. Tive que pedir autorização para o Juizado de Menores para poder entrar lá.

Já com 21 anos, sua trajetória de shows no beco engatou. Ele começou a se apresentar com vários artistas da época como Simonal, Rosa Maria e Lennie Dale – um bailarino norte-americano que ensinou a dança da Bossa Nova para muita gente. Adolfo contou, também, que o beco foi essencial para o aprendizado musical.

– Aprendi muito do que eu toco ali – afirma ele. – Lá era uma escola, até pela convivência que possibilitava, já que não tinham escolas de músicas que ensinavam esse estilo musical.

Sobre a importância da música atualmente, o músico afirma não ter acabado, apenas mudado de foco. “Agora são outros estilos, desde o chorinho até o hip hop”, pontua. O pianista disse, também, que ainda existem lugares que cultivam esse gosto pela música.

– A própria Lapa foi revitalizada com a ajuda do pessoal do chorinho – destaca Adolfo. – Ficavam pessoas tocando nos bares de lá e começou a atrair turistas, gente que gosta de música, e agora o local é uma coisa grande, comercializou demais.

Antonio Adolfo dirige o Centro Musical Antonio Adolfo, fundado em 1985 e instalado no Leblon e na Barra. O lugar oferece aulas práticas de diversos instrumentos, para adultos e crianças, assim como classes teóricas. Além disso, promove atividades em grupo e incentiva um ambiente que deixe vivo o gosto pela música.

A Bossa hoje

Em 2011, foi publicado um edital, pelo governo do estado, para a construção do Museu da Bossa Nova. Com desenho do arquiteto Jaime Lerner, seria erguido no terreno de 40 mil metros quadrados onde hoje tem sede o 23° Batalhão da Polícia Militar. Mas a iniciativa não seguiu adiante. Além da disputa pela posse da área, os moradores do Leblon não aprovaram a construção.

 Divulgação – Com a vinda do papa, a Copa e tudo mais que vem acontecendo no Brasil, todo mundo só quer saber de vir para cá. E, quem vem, tem, sim, que encontrar museus, centros culturais e espaços para o resgate da Bossa Nova ou qualquer outro movimento musical que represente o país. No entanto, o que a cidade e a comunidade do Leblon precisam é de praças, escolas, centros de recreação. E não mais um elefante branco para virar cidade da música. Para mim, esse projeto do museu é falcatrua. Não apoio.

Enquanto não é dada a continuidade ao projeto, amantes da música boêmia podem relembrar a vida daquela época na Toca do Vinícius, na Rua Vinicius de Moraes, em Ipanema.

Há duas décadas, o dono da livraria, Carlos Alberto Afonso, desenvolveu um projeto ligado à Bossa Nova, com shows e eventos, um domingo a cada mês ou em datas especiais. Ele afirma que a atividade comercial de livros e discos, aliada a esta programação mensal, estabelece um canal entre a bossa e o público. O objetivo é viabilizar o encontro da expressão entre um uma cultura local – a Bossa Nova – e os variados públicos que estão distantes dela, seja por razões etárias, socioeconômicas ou geográficas.

Apesar de manter viva a presença da Bossa Nova até os dias de hoje com a Livraria Toca do Vinícius, Carlos Afonso acredita que, para a revitalização do Beco das Garrafas, assim como o museu da música, se concretizarem, é preciso muito mais que vontade. Para ele, nesse trabalho deve haver a combinação entre dois fatores:

– Um verdadeiro empreendedor é aquele que, conhecedor e amante da história, pretende buscar nas atividades instaladas um retorno muito pessoal como uma espécie de missão cumprida em relação ao papel que aquela revitalização tem para a própria história e para a sociedade – explica Carlos Afonso. – E, para que um projeto seja viável, é imprescindível que seja concebido a partir da perspectiva histórica, sem ignorar a imutável vocação do lugar, como celeiro e, portanto, sem as ilusões de que artistas já realizados e famosos estarão no cardápio de casas que não dispõe de mais que 50 lugares para o consumidor viabilizar tal projeto.

* Reportagem produzida para a disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso.