Isabella Rocha e Guilherme Simão - Do Portal
04/11/2013A cientista política Pilar Calveiro passou 18 meses presa em três diferentes centros de detenção clandestinos durante a ditadura militar argentina (1976-1983). No maior deles, instalado na Escola de Mecânica da Armada (Esma), em Buenos Aires, Pilar era identificada apenas pelo número 362. Para ela, ocultar o nome dos presos foi uma das estratégias de “desumanização” usadas pelos militares a fim de disseminar terror, a exemplo dos campos de concentração nazistas. Exilada no México, onde vive desde 1979, ela está no Brasil para lançar o livro Poder e desaparecimento: Os campos de concentração na Argentina (Boitempo), publicado na Argentina em 1998.
Para a pesquisadora e professora da Universidade Autônoma de Puebla, do México, a violência do Estado hoje em várias partes do mundo está vinculada a práticas do passado autoritário recente. E, enquanto na ditadura era praticamente restrita a dissidentes políticos, atualmente boa parte da população está excluída do Estado de Direito.
– A repressão pode se neutralizar em uma sociedade que não se escandaliza. Se a população se mostra indiferente ao desaparecimento de pessoas consideradas subversivas pelo governo, essa sociedade neutraliza os acontecimentos como algo normal – afirmou Pilar, em entrevista ao Portal (leia mais abaixo).
Em palestra promovida pela Comissão Nacional da Verdade, pela Comissão da Verdade do Rio e pelo Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio, na última sexta-feira, dia 1, Pilar alertou que cenários bélicos como as chamadas guerras contra o terror e o crime organizado podem estar sendo usados para justificar políticas de repressão e de exceção:
– A anulação de sentidos, da comunicação, a criação de lugares de armazenamento, a classificação das pessoas por número, como coisas, são todas práticas de terrorismo de Estado, designação que é adequada à praticada pela ditadura argentina, que também serve aos campos de Guantánamo, aos sítios negros da CIA criados na guerra antiterrorista.
Militante das Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e depois do grupo Montoneros, Pilar foi sequestrada em 1977 por uma equipe da Aeronáutica. Poder e desaparecimento, escrito nos anos 1990, busca fazer uma anatomia da repressão da ditadura argentina. No livro, Pilar compara os centros clandestinos de detenção da Argentina aos campos de concentração nazistas. Sua tese é a de que, em ambos os casos, houve espaços de exceção, isto é, aparatos do Estado nos quais as pessoas não tinham direito algum; os presos sofreram processos de desumanização, como a tortura ilimitada, além do extermínio, incluindo a destruição dos restos mortais das vítimas.
A cientista política também identificou diferenças entre os modelos repressivos: enquanto os presos do regime nazista eram submetidos a trabalhos forçados, os argentinos eram confinados em celas individuais de modo que houvesse uma “anulação de sentidos e de movimento”. Mas o resultado era o mesmo “processo de desumanização” das vítimas:
– Os presos políticos não tinham qualquer contato com o mundo exterior. Nos centros de detenção, eram tratados como caixas armazenadas em depósitos.
Pilar destaca que as políticas repressivas se deram no contexto da bipolaridade da Guerra Fria, em que os Estados Unidos buscaram assegurar influência política sobre a América do Sul. Segundo ela, a violência do Estado contra dissidentes políticos se intensificou com a Operação Condor, aliança político-militar entre os regimes militares do continente com a CIA, a agência de inteligência norte-americana, nas décadas de 1970 e 1980.
Diferenças entre os regimes militares da Argentina e do Brasil
A tese central da obra de Pilar, baseada em depoimentos de cinco outros sobreviventes, é que o desaparecimento forçado foi a principal política repressiva da ditadura argentina. Autora do capítulo de apresentação da edição brasileira de Poder e desaparecimento, a historiadora Janaína de Almeida Teles (à direita de Pilar na foto) fez uma comparação entre as políticas de pressão dos regimes militares dos dois países, lembrando que, se o uso do desaparecimento forçado foi a marca da política repressiva na Argentina, a tortura foi a principal prática de repressão usada pelos militares brasileiros. Membro da família Almeida Teles, que se destacou na luta armada contra a ditadura e que moveu na Justiça, em 2008, ação para que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi, fosse reconhecido como torturador, Janaína lembrou que a política do desaparecimento continua presente na sociedade brasileira: “Ainda hoje se repetem práticas da ditadura”, disse, citando o caso do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, desaparecido na Rocinha em 14 de julho, depois de ser levado para a sede da UPP para averiguação. Vinte e cinco policiais militares foram indiciados por envolvimento com sequestro, tortura e possível morte de Amarildo.
Pilar chamou atenção para o fato de que a ditadura argentina tinha um dispositivo de repressão ilegal funcionando à margem das instituições.
– Foram instalados no país 340 centros clandestinos de prisão, e cerca de 18 mil pessoas, ou seja, 90% dos presos, foram mortos nesses locais – calcula a cientista política argentina.
Janaina ponderou que a ditadura brasileira foi mais seletiva na prisão de opositores, pois a maioria dos mortos pelos militares pertencia aos quadros das organizações de combate ao regime. Por outro lado, acentuou que a apuração e o registro dos crimes do regime militar foram muito menores no Brasil que no país vizinho. Para a historiadora, a ditadura brasileira soube equilibrar as políticas legais com as autoritárias de modo eficiente:
– Havia uma preocupação com a legitimidade do regime. O funcionamento do Congresso Nacional e do aparelho judiciário, e a existência de um partido político de oposição moderada (MDB), garantiram uma aparência de normalidade institucional ao regime militar brasileiro.
Ao mesmo tempo, afirmou Janaina, nem todos os presos políticos no Brasil foram submetidos a processos de desumanização como ocorreu com os argentinos – como ser obrigados a ficar calados, sem se mover, encapuzados e acorrentados pelos pés. A historiadora atribui isto ao fato de que não se sabia previamente se os presos seriam mortos, “daí a preocupação de torturadores em não deixar marcas perenes nos corpos das vítimas”.
Pilar defendeu a necessidade de identificar e responsabilizar os agentes do Estado envolvidos em torturas e desaparecimentos:
– Não se trata de vingança pessoal. A responsabilização faz parte do processo de fortalecer e abrir novos acordos no processo democrático. Romper com a impunidade não é um mero resgate do passado, mas um compromisso com o presente e com o futuro.
Ao fim da palestra, Pilar Calveiro conversou com o Portal sobre sua pesquisa. Declarou não se sentir confortável para comentar especificamente casos da ditadura brasileira ou o desaparecimento de Amarildo, justificando não conhecer a fundo a realidade brasileira.
Portal PUC-Rio Digital: Em seu livro Poder e desaparecimento, a senhora afirma que a ditadura militar argentina foi apoiada por setores importantes da sociedade. Quais foram eles, e de que forma contribuíram com as políticas de repressão?
Pilar Calveiro: O governo militar de 1976 teve o apoio de distintos setores. Em primeiro lugar, de setores empresariais, como a cúpula econômica do país. Também houve o apoio explícito da Igreja católica e do setor judiciário, com juízes que desconheciam as denúncias de perseguições, desaparecimentos e assassinatos. Eles ignoravam esses acontecimentos mesmo com os indícios da repressão sofrido pelo povo. E, por último, mas não menos importante, o expressivo setor que colaborou com a ditadura foi a classe média.
Portal: Os jovens argentinos têm ideia do que se passou na ditadura do seu país?
Pilar: Trabalhamos com a memória, então fazemos referência ao que ocorreu nos anos 70 para não se tornarem fatos esquecidos. Os programas educativos recuperam as questões dos direitos humanos, e isso é muito importante, pois o intuito é levar àqueles que não viveram na aquela época uma consciência do que se sucedeu.
Portal: A senhora afirmou que práticas de repressão, como os desaparecimentos forçados, acabaram se naturalizando na Argentina. Como isso se deu, e como evitar?
Pilar: A repressão pode se neutralizar em uma sociedade que não se escandaliza. Por exemplo, se a população se mostra indiferente ao desaparecimento de pessoas que são consideradas subversivas pelo governo, essa sociedade neutraliza os acontecimentos como algo normal.
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