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Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2024


País

Fla-Flu das biografias: para juristas, leis são suficientes

Benda Baez e Jana Sampaio - Do Portal

07/11/2013

Arte:Nicolau Galvão

Com a apreciação do Projeto de Lei 393/2011 pelo Supremo Tribunal Federal, nos próximos dias 21 e 22, e a iminente votação na Câmara dos Deputados sobre a mudança no Código Civil para dispensar a necessidade de autorização às biografias, aproxima-se do fim esse Fla-Flu esquentado por craques da nossa música cujas vozes inspiraram também causas libertárias. Entre avanços e recuos, Chico, Caetano e Gil surpreenderam os fãs, e suas histórias, ao seguirem a partitura entoada há anos por Roberto Carlos e ora capitaneada pelo grupo Procure Saber — que, em nome da privacidade, reivindica autorização prévia e participação no lucro das publicações. Do outro lado, a Associação Brasileira das Editoras veste a camisa do acesso livre às informações para cobrar a extinção do que considera censura, como se observa na maior parte dos países. Segundo alguns analistas, a polarização ideológica, entre os direitos constitucionais à liberdade de expressão e à privacidade, camufla um embate econômico, de olho na partilha das receitas decorrentes da venda de biografias, inclusive dos direitos de adaptação de biografias para a tevê e o cinema.

Em tom conciliador, o presidente do Supremo, ministro Joaquim Barbosa, sugeriu, durante conferência na PUC-Rio, que as biografias dispensassem autorização prévia, mas fossem punições severas a calúnias e difamações. Alinhado à ministra da Cultura, Marta Suplicy, Barbosa apoia a "liberdade total de publicação", desde que os abusos sejam punidos com mais rigor e mais rapidez.  Luis Edmundo Sauma

O jornalista Mário Magalhães, autor da biografia não autorizada sobre o líder político Carlos Marighella, morte em 1969, numa emboscada, concorda com o ministro. Pois “o Brasil é a única democracia do planeta que exige uma autorização prévia para publicar biografias”:


— A existência de uma lei não impede que crimes como os de calúnia de difamação sejam cometidos. A lei pune o homicida e todo dia são cometidos assassinatos. Para que essa alternativa dê certo, a lei deve ser cumprida de maneira rápida e rígida — reforça.  

Dallari: "Há leis já rigorosas contra abusos do gênero"

A sugestão esbarra, no entanto, no ritmo dos tribunais. Dos 92 milhões de processos que tramitaram na Justiça em 2012, só 28% foram apreciados, aponta levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em relação ao rigor, basta aplicar as sanções previstas em lei. Assim afirma o jurista Dalmo Dallari, professor emérito de Direito da USP. Dallari esclarece que a punição a crimes contra a honra está contemplada nos artigos 138 e 139 do Código Penal, quando a vítima considera sua reputação atingida. A pena varia de seis meses a dois anos de prisão, no caso de calúnia, e de três meses a um ano, nos casos de difamação, além do pagamento de multa. Na avaliação do jurista, não é necessário criar novas leis do gênero, pois o país já tem punições suficientemente rigorosas:

— É preciso, naturalmente, que não haja tratamento difamatório por parte dos biógrafos. Mas, caso isso ocorra, ele será enquadrado na já existente lei de calúnia, injúria e difamação do Código Penal, que prevê punição para quem comete tais atos. Essas leis só precisam ser aplicadas — reforça o especialista.

De 100 processos que chegam aos tribunais, só 30 são concluídos

A aplicação depende, no entanto, da celeridade sugerida pelo ministro Joaquim Barbosa, porém confrontada pela pesquisa Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. De acordo com o recente estudo, cerca de 70% dos 92 milhões de processos tramitados no ano passado aguardam na fila de apreciações. De 100 processos que chegam aos tribunais, só 30 são concluídos. O percentual mostra-se "estável" em relação aos quatro anos anteriores.

Embora a quantidade de processos concluídos tenha aumentado 7,5% em relação a 2011 (cada juiz apreciou, em média, 1.450 casos no ano passado), o número de casos novos cresceu ainda mais: 8,4%. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a taxa é elevada devido à pendência de processos em primeira instância do Judiciário. O congestionamento sobe para 80% nas ações em fase de execução.

A produtividade do Judiciário avançou, mas revela-se ainda insuficiente para tornar esse fluxo mais rápido. A longa fila de processos em espera nos tribunais indica que a rigidez sugerida pelo presidente do Supremo nos processos de calúnia e difamação fica comprometida.

Lei própria para biografias divide especialistas

Na avaliação de especialistas como o professor de Direito da PUC-Rio Fábio Leite, uma legislação própria para as biografias ajudaria a aliviar a sobrecarregada apreciação de processos. Leite argumenta que a ausência de regras específicas irriga a inclinação ao embate judicial:

— O que gera um grande número de processos é uma norma vaga, ampla e desproporcional como temos hoje. Ela não deixa claro se é proibido ou não, ou em que medida. Na dúvida, os biografados, os herdeiros, os parentes ou mesmo terceiros citados na biografia ajuízam ações.

Já o advogado Nehemias Gueiros, a exemplo de Dallari, considera as normas contra calúnia e difamação previstas no Código Penal suficientes para punir inverdades e abusos publicados. Ele explicou, em palestra na PUC-Rio, por que uma legislação própria para as biografias “provaria nossa infantilidade jurídica e intelectual”:

— Criar uma legislação especial é um atraso. As coisas devem ser resolvidas entre as partes. Se o biografado e o biógrafo se entenderem, está tudo certo. O Brasil tem legislação suficiente para que as pessoas se entendam nas suas relações comerciais.

Embora favorável à circulação dos livros não autorizados, Barbosa propõe multas "pesadas" para osl violarem a honra ou a privacidade do biografado. Ele sugere também que, se o biografado já estiver morrido, tais biografias sejam publicadas só dez anos depois da morte. 

— Sinto um certo desconforto na seguinte situação: um grande artista, um grande músico ou compositor, que ainda vive e vê subitamente uma biografia devastadora sobre a sua vida, a sua intimidade. É disso que se trata. Eu defendo, neste caso, indenização pesada — esclarece — Ninguém está interessado em proibir simplesmente a forma de produzir. 

Gueiros: "Quando a pessoa se torna uma celebridade, rompe o telhado do anonimato"

Esse tipo de carência mostra-se exagerada, na opinião de Gueiros: “Quem espera tanto tempo após a morte do biografado para publicar sua obra?”. Segundo ele, o confronto entre as dimensões pública e privada do personagem provocado pelas biografias tem um caráter democrático:

 Jana Sampaio — Quando você se torna uma celebridade, você rompe o telhado do anonimato e tem que estar preparado para certas coisas. É preciso que existam biografias de todos os tons e sem distorções. Proibir essas obras é uma violência contra a liberdade de expressão.

Contra as acusações de censura, integrantes do Procure Saber alegam — como exposto em vídeo publicado, no último dia 29, na página do grupo no Facebook — que reconhecem o direito à liberdade de informação, até o limite da privacidade, igualmente resguardada pela Constituição. Gilberto Gil, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, ora favoráveis à autorização prévia, lembram que lutaram pelo pleno direito à liberdade de expressão durante os anos de chumbo. Para o professor Fábio Leite, o rótulo de censores é válido só como forma de protesto:

— Aqueles que são contrários à publicação de biografias não autorizadas compartilham uma visão civilista (escorada no Código Civil). Podem até ser chamados de censores, mas apenas como forma de protesto contra uma visão que, embora juridicamente válida, não me parece a mais adequada.

Na perspectiva civilista, a vida privada de pessoas públicas, como políticos e artistas, não pode ser exposta sem autorização, por tratar-se de "direito personalíssimo". Profissionais de comunicação temem que esse princípio se estenda ao jornalismo, que passaria a precisar de autorização para publicar notícias não autorizadas. O receio é aguçado por restrições como as impostas aos jornais Estado de S. Paulo e Gazeta do Paraná. Ambos foram proibidos de publicar informações sobre o presidente do Senado, José Sarney.

Leite: Se fosse reportagem, biografia sobre Roberto Carlos dificilmente teria parado na Justiça

Leite relativiza a preocupação. Segundo ele, se a biografia Roberto Carlos em detalhes, escrita pelo jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, fosse uma reportagem especial de jornal e revista, provavelmente não teria sido alvo de uma ação judicial para impedir a publicação. (O livro foi retirado de circulação em 2007, mas o autor aposta no fim da autorização prévia para reconduzi-la ao mercado). 

— Não digo ser impossível, mas dificilmente alguém defenderia uma ação judicial para evitar a publicação da reportagem. Esse caso sugere que as informações relativas à vida privada não são necessariamente um limite à liberdade de expressão. Se as informações podem ser expostas em jornais e revistas, por que não poderiam estar num livro? — questiona Leite.

Para o professor, a autorização prévia necessária às biografias representa dois pesos e as duas medidas:

— Devemos ainda considerar as pesquisas acadêmicas, como dissertações, monografias, teses. Nesses casos os resultados não poderiam ser publicados? Entendo, portanto, que a perspectiva civilista tem “pé de barro”, não se sustenta, e espero que o STF reconheça a inconstitucionalidade da lei.

A legislação brasileira protege o desejo do biografado, de sua família, e mesmo dos mencionados na biografia. Assim aconteceu com a biografia autorizada de Anderson Spider Silva escrita pelo jornalista Eduardo Ohata.  O autor foi processado pelo ex-treinador de Anderson, citado em uma passagem da publicação.

“A censura prévia começa nas próprias editoras", afirma Paulo Cesar de Araújo

Revestidas de tons ideológicos, as discussões que opõem os direitos à privacidade e à liberdade de expressão envolvem também aspectos econômicos. Embora correspondam a 1,3% do mercado editorial, as biografias atraem cada vez mais leitotres mundo afora. No Brasil, as incertezas sobre os direitos legais do biografado mantêm um cenário inóspito às publicações não autorizadas. Escaldadas pelo volume de ordens judiciais para retirá-las do mercado, editores freiam o investimento em livros do gênero. Para Paulo César de Araújo, a censura começa nas próprias editoras, quando “pedem que se retire um trecho mais polêmico da obra para evitar processos”.

O risco de batalhas judiciais que ameaçam a sobrevivência das obras se reflete na redução do número de exemplares produzidos no Brasil – de 6,5 milhões, em 2011, para 4,1 milhões, em 2012. Naquele ano, as biografias chegaram a representar 40% das vendas da Saraiva. Ainda muito distante do olimpo editorial protagonizado em outros países. Nos Estados Unidos, personagens como o ex-presidente John Kennedy e astro pop Michael Jackson já renderam mais de 300 biografias publicadas sem autorização prévia. 

No mercado brasileiro, autores e editoras garantem que o lucro com as biografias é baixo. De acordo com Fábio Sá Earp e George Kornis, autores do estudo Economia Produtiva da Cadeia do Livro, de 2005, "10% das obras são lucrativas, 20% se pagam e 70% dão prejuízo". A maré tende a melhorar caso a autorização prévia seja dispensada e, consequentemente, o segmento de biografias se aqueça, apostam os editores.

Aspectos econômicos acirram a polarização

Ao contrário dos EUA, onde o biógrafo não precisa pagar por direitos autorais, no Brasil essa decisão é determinada pela Justiça. Teria a privacidade um preço?, ironizam críticos da permissão obrigatória. Em 2007, processo movido contra a biografia não autorizada do Rei implicava, além da retirada do livro das livrarias, o pagamento de R$ 500 mil em multas. A biografia Garrincha - Estrela Solitária, de Ruy Castro, também empacou, em 1995, e só foi liberada para venda depois de acordo financeiro firmado com as filhas do jogador. Para Dalmo Dallari, a polêmica só esquentou porque atinge também interesses financeiros:

 Agência Brasil — A questão da autorização das biografias está em voga porque agora alguns artistas se manifestam publicamente a favor. Eles querem participação nos lucros das vendas dos livros, ou seja, querem receber para que falem deles.

O cantor Moraes Moreira, contrário à autorização prévia, não se empolga com a possibilidade de participar da receita gerada pelos livros biográficos. “Se nós músicos vendemos 10 mil discos, é um sucesso, quase um milagre. Essa dificuldade também atinge o setor literário. Por isso, não vejo necessidade de repartir os royalties”, compara. Ele sugere que "a melhor alternativa é biógrafo e biografado entrarem em acordo quanto à divisão dos royalties", e lembra que a liberdade de expressão é essencial para o conhecimento histórico:

— Acredito que a liberdade de expressão precisa ser plena. Se alguém quiser me biografar, ou os Novos Baianos, não verei problema. A menos, é claro, que sejam ditas inverdades. Aí o caso deve ser resolvido na Justiça — ressalva Moraes. A história dos Novos Baianos já foi mostrada no documentário Os filhos de João: o admirável mundo novo baiano, de Henrique Dantas, lançado em 2009. 

"Liberdade de expressão e direito à privacidade não são excludentes", esclarece professor 

A oposição ideológica essencial em jogo remete à libertade de expressão e ao limite entre o público e o privado. O artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988 garante serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Já o artigo 220, § 2º, proíbe qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Para o professor Fábio Leite, os dois direitos não são excludentes:

— Liberdade de expressão e direito à privacidade não são naturalmente excludentes na medida em que se tratam de direitos fundamentais protegidos pela Constituição. Igualmente legítimos, afinal, são valores.

Somada às dimensões econômica e simbólica associadas ao debate sobre as biografias não autorizadas, essa dupla legitimidade constitucional justifica o enredo complexo desse Fla-Flu e a dificuldade de desempatá-lo. Dificuldade que, segundo Leite, pode ser sintetizada pela posição do jurista argentino Nestor Pedro Sagués, para quem o discurso dúbio (civilista e constitucionalista) que reina na área provoca, além de certa esquizofrenia jurídica, um sério obstáculo para encontrar uma resposta uniforme e consensual.

 

 

Aposentadorias forçadas

Roberto Carlos em detalhes: Quatro dias depois de a biografia ter sido lançada, o cantor entrou na Justiça. Alegou-se ofendido e acusou invasão de privacidade. Pediu indenização diária de R$ 500 mil e a prisão do autor do livro, o jornalista e historiador Paulo Cesar Araújo. A Editora Planeta entrou em acordo com Roberto Carlos e 11 mil exemplares, dos 60 mil originais, foram retirados de circulação e entregues a Roberto Carlos em 2007. A Justiça do Rio proibiu a edição e a venda do livro em todas as livrarias do país. A obra, no entanto, está na internet.

Garrincha, estrela solitáriaRuy Castro, autor da biografia sobre o craque do Botafogo e da Seleção, travou nos tribunais, por cerca de 11 anos, uma batalha com as filhas do jogador. Elas processaram o biógrafo por danos morais e matérias. Ruy Castro não precisou entregar os exemplares restantes, mas a biografia ficou 11 meses proibida de circular nas livrarias e de ser reimpressa, de dezembro de 1995 a novembro de 1996. A ação foi encerrada em 2006, com um acordo feito a pedido das filhas de Garrincha. Cada uma recebeu, da Companhia das Letras, indenização de R$ 30 mil.

Sinfonia de Minas Gerais – A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa: Uma decisão judicial obrigou a LGE Editora a retirar do mercado o livro de Alaor Barbosa, lançado em 2007. O processo foi movido por Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor. Responsável pelos direitos de natureza civil de Guimarães Ros, ela avaliou que a obra, publicada sem autorização, contém informações erradas. Alegou também ter sofrido prejuízo aos direitos autorais em virtude de a biografia ter chegado ao mercado na mesma época em que ela relançou, pela editora Nova Fronteira, coautora da ação, o livro Relembramentos, uma reprodução de cartas de Guimarães Rosa. 

Raul Seixas: A biografia escrita pelo jornalista Edmundo Leite nem chegou a ser impressa. Uma das viúvas do cantor, Kika Seixas, proibiu informalmente a publicação. Segundo ela, já foram lançadas mais de 15 biografias sobre Raul Seixas, mas todas realizadas por fãs. Kika e a filha argumentam que o biografado, morte em 1989, não pode se defender das histórias contadas nas obras. Por isso, Kika informou o jornalista que, caso a biografia seja publicada, ela recorrerá à Justiça.

Noel Rosa – Uma Biografia: As músicas de Noel são de domínio público, mas a biografia sobre o compositor da Vila escrita por João Máximo e Carlos Didier foi proibida de circular. Lançada em 1990, pela editora UnB, é considerada pela crítica um dos melhores exemplos do gênero. Aina assim, a obra foi constestada na Justiça pelas sobrinhas de Noel, filhas do irmão Hélio. Elas moveram processo contra os autores e a UnB. Alegando invasão de privacidade, conseguiram tirar o livro do mercado. Tornou-se raridade e, com tal, custa caro. No sebo Estante Virtual, por exemplo, é vendido a R$ 700.