Guilherme Costa e Lisandro Violante - Do Portal
07/10/2008Um retrato da cruel realidade das meninas que vivem a exploração sexual no Brasil. É o que mostra o documentário Cinderelas, Lobos e um príncipe encantado, dirigido por Joel Zito Araújo, exibido na mostra Premiere Brasil, do Festival do Rio 2008. Presente em uma das mesas de debates do festival, o roteirista e professor da PUC-Rio José Carvalho, que assina o roteiro do filme, conta as dificuldades e as motivações que inspiraram a equipe no projeto, que não retrata a realidade de forma tão fiel como a que eles viram. “O que conseguimos coletar minimamente já está produzindo um efeito muito forte no público. Imagina se tivéssemos ido mais fundo”, argumenta.
Como foi a experiência de fazer um filme sobre um tema tão contundente?
O filme leva ao público uma temática social importante. Em Salvador, uma assistente social contou que, quando chega uma menina nova do interior, começando a se prostituir nas ruas de Salvador, as meninas mais experientes a iniciam sexualmente. E fazem as maiores aberrações, numa espécie de rito. A que acaba de chegar é submetida à mesma dor que elas já passaram se prostituindo nas ruas. Como traduzir isso num filme, numa situação hiper realista? Naquela noite, ninguém conseguiu jantar. Ficamos mudos por dois dias, ninguém dava uma palavra. Quando fomos conversar com as meninas, elas se justificaram. Esse material não entrou no filme. Aquilo nos agrediu de tal maneira que nem conseguimos traduzir em imagem, seria demais. É uma dor insuportável, muito pungente para o público. E você, como cineasta, ou mesmo roteirista, selecionar aquele material como um material a ser narrado, é quase uma perversidade.
Quer dizer que muito do material filmado ficou de fora?
O filme vai ter sempre essa distância entre o que vimos e o que mostramos, muito embora o que é mostrado já provoque um tipo de debate, de conscientização que, esperamos, leve o governo a tomar medidas imediatas para reverter o problema. Existe um depoimento da senadora Patrícia Sabóia, responsável pela CPI da exploração de crianças, que é aglutinador, sintético. Ela diz que não sabe por que o governo, que assumiu com o compromisso de erradicar a exploração, até hoje não tomou uma providência efetiva. Pelo contrário, atrapalhou as investigações porque havia ali outros interesses maiores de políticos envolvidos com a rede de tráfico de seres humanos, juízes que faziam parte de bacanais com crianças e outras aberrações. Eu li os laudos e você vê que há um envolvimento do poder público com o tema, o que impediu a apuração das investigações por parte dela. Ela chora durante o depoimento. Como traduzir isso com a crueza necessária pra mobilizar as pessoas? Eu não sei até que ponto o filme tem essa eficácia, mas a bandeira da discussão ele consegue fincar, então eu acho que, nesse ponto, saímos vitoriosos.
De onde surgiu a idéia do filme?
A motivação veio do diretor. Ele teve acesso a uma pesquisa mostrando que 85% do tráfico de mulheres era feito com as afro-descendentes. Ele, por ser afro-descendente, resolveu investigar o porquê dessa preferência e descobriu um mundo por trás disso. Desde o imaginário que o Brasil construiu lá fora, como sendo a mulata o objeto do desejo para que o turista venha gastar o dinheiro dele aqui, já num convite ao turismo sexual induzido pelo governo, até um resíduo de uma atração de um colonizador, que quando chega aqui se apaixona pela diferença. Encontra na índia nua, na cabocla, ou mesmo nas negras trazidas da África como mão-de-obra para a agricultura, um objeto do desejo que ele não teria na Europa porque lá as mulheres são mais frias, mais racionais, estão mais voltadas para um padrão social, para um comportamento que foge um pouco à questão da lascívia, e aqui o corpo é franco. Saímos nus no carnaval, o índio é nu. E descobre que há uma outra possibilidade dele se relacionar com o próprio corpo, e que essa negra, no caso, seria o objeto de desejo preferencial.
No filme, vocês filmaram meninas que se prostituem. Como vocês conseguiram que elas aceitassem ser filmadas, que contassem sua realidade?
Selecionamos os adultos que têm histórico de exploração na infância. Em relação aos menores, a câmera nunca revela o rosto. A dificuldade é pequena, porque eles estão num contexto de amoralidade. Eles não têm muito julgamento em relação ao que vivem, então, aceitam falar sobre aquilo. Elas já vêm de uma referência tão partida dentro de casa, que aquilo ali é uma extensão de uma aberração que elas estão acostumadas a ver desde que elas se entendem por gente. Não houve essa dificuldade.
Todas sofreram muito em casa? Nenhuma delas partiu pra prostituição por passarem necessidades?
Eu não tenho os números, mas, pelas meninas conseguimos entrevistar, 85% tem histórico de exploração sexual em casa. Ou o padrasto, ou o avô, ou o irmão, ou um primo. Ou, às vezes, até o próprio pai, por conta daquele machismo arraigado de dizer assim “ó, se a minha filha vai virar moça, antes que venha um espertão aí tirar a virgindade dela, tiro eu”.
Isso aí é mais um dia sem jantar pra vocês...
Exatamente. Pelo menos um...
Quais foram as dificuldades que você encontrou para escrever o roteiro deste filme?
Outro dia estava conversando com Walter Lima Júnior e dizia que, em Roteiro 2 (disciplina do curso de cinema), eu ensino algumas noções de narrativa pra documentário e ele estranhou e disse assim: “Mas há roteiro possível para documentário?” Eu disse para ele que, por coincidência, eu tenho um histórico até grande, de seis roteiros para documentário de longa-metragem. Mesmo que você não conceba da maneira como concebe no processo ficcional, você é o elemento aglutinador das imagens. Você ajuda na montagem, no corte e, no caso do Cinderelas, fazendo um texto em voice over, para ser narrado junto com as imagens que estão sendo apresentadas.
Então, você participou do processo todo.
O tempo inteiro, como roteirista, estive ali pensando a narrativa junto com a equipe. Equipe mesmo, porque na parte de pós-produção a presença do roteirista era imprescindível, porque você já tinha um encadeamento do efeito que queríamos provocar. E a organização do encadeamento é um trabalho de roteiro. Dito de outra forma, todo montador é um roteirista também, porque o encadeamento é que vai dar a rítmica daquilo que você quer provocar. A lágrima num determinado momento, um suspense num outro, um riso ali – que até isso tem também. Tem momentos engraçados, por incrível que pareça. De tão bizarros, eles atravessam a realidade e criam uma outra realidade hiper-realista, que leva o cara a gargalhar em alguns momentos. E aí a figura do roteirista é fundamental. Só que é um processo não linear, diferente do processo ficcional.
Você no filme mostra um final feliz, de pessoas que conseguiram superar essas condições de vida.
Essa pergunta tem sido recorrente. Quando coletamos os casos que envolvem abuso sexual na infância, depois exploração na adolescência e depois tráfico sexual na vida adulta, tem sido essa a cadeia dessas meninas. Já são abusadas ali na infância, perdem a referência do corpo, depois são exploradas na adolescência e ali conseguem uma porta, através de um estrangeiro ou de uma proposta para irem, sobretudo, para a Europa, que é o grande sonho delas – cinderelas vão encontrar os seus príncipes na Europa. E nós descobrimos na estrada que há algumas situações conjugais bem sucedidas, que começaram dentro dessa deturpação da prostituição e encontramos na Alemanha uma baiana, do interior do estado, com um casamento estável, com um filhinho lindo, um cara bem sucedido, apaixonado por ela, o cara esbanja carinho, pelo filho, por ela, super cuidadoso, mora numa casa bem montada, e mudou a vida dela. Então, nem tudo é tão claro ou escuro como a gente imagina. Tem matizes cinzas, reticulados, nesses encontros.
Outros projetos em andamento?
Tenho outros projetos com o cineasta Joel Zito Araújo. Um deles para TV pública, em que eu vou fazer, com a comunidade do Olodum, em Salvador, uma formação no campo da roteirização, para ver se eu recruto três colaboradores para uma minissérie sobre a Revolta dos Búzios. O Cinderelas, Lobos e um príncipe encantado serviu também a um projeto ficcional, que tem o título provisório de “Love for sale”, com o Lázaro Ramos vivendo uma pessoa que faz parte da rede e que ganha uma espécie de consciência no meio da narrativa. Vamos fazer no ficcional um elogio à mentira. Foi a única maneira que encontrei para tocar de algum jeito o tema, de saber que é preciso criar um universo completamente ficcional para poder abordar um tema tão espinhoso. Caso contrário, qualquer tentativa de representar esse universo não vai chegar aos pés da realidade. Vou acreditar que a mentira tem algum alcance e vou seguir escrevendo.
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