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Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2024


Cultura

A relevância da crítica em meio à pulverização da internet

Jana Sampaio - aplicativo - Do Portal

08/10/2013

 Arte: Nicolau Galvão

O Festival do Rio, que se encerra amanhã, representa uma maratona não só para os cinéfilos, diante do banquete de 380 produções de 60 países, mas para os especialistas incumbidos de julgar os filmes nas mostras competitivas. Só a Première Brasil, a principal delas, reuniu 11 longas e 16 curtas. "Chegamos a ver 40 filmes de uma só tacada", estima a professora do curso de Cinema da PUC-Rio Denise Lopes, uma das juradas do Festival de Brasília deste ano. Maratona permanente vivem os críticos de jornais e revistas, cujas resenhas semanais encolheram e ganharam a companhia das publicadas em blogs especializados, como o do jornalista Marcelo Janot. O ex-aluno da PUC-Rio equilibra-se entre as rotinas de DJ, comentarista da TV Brasil, crítico de cinema d'O Globo e gestor do críticos.com.br, criado em 2002 justamente para aprofundar as análises. Na opinião do jornalista, essa pluralidade — sinalizada nos mais de 500 blogs do gênero no país — é, por um lado bem-vinda, pois ajuda a oxigenar a crítica e mantê-la alinhada ao desafio de, como destaca Denise, "levar o público a refletir e sair do lugar-comum". Por outro lado, exige uma reflexão sobre os rumos para, em meio à pulverização, conservar seu relevo social.

Em meio à propagação das análises fora dos espaços convencionais, acadêmicos, jornalistas, cineastas e empresários do setor rediscutem os caminhos da crítica — tanto a associada a mostras competitivas quanto a convertida em resenhas impulsionadas pela internet. Janot reconhece a importância desse juízo de valor à sociedade e ao mercado, mas ressalva: os textos veiculados nos cadernos de cultura não têm mais o poder dos tempos do Cinema Novo, "quando levavam milhares de espectadores aos cinemas". Hoje, reitera ele, há uma diluição da crítica em blogs e páginas de cultura na rede. O cenário demanda um debate aprofundado, propõe Denise:

— Um país que não possui críticos cinematográficos mantém-se inerte e seu cinema não evolui. É preciso que a crítica crie um pensamento sobre determinado movimento cinematográfico ou filme. A Monalisa só se tornou a Monalisa porque alguém escreveu sobre ela, fez uma crítica ao quadro até então desconhecido de Leonardo da Vinci — compara.

Na avaliação de Janot, a crítica precisa imergir da pulverização proporcionada pela internet e tornar-se novamente "fato cultural". Ele conta, assim, por que decidiu criar um novo espaço para expandir a mediação da crítica: 

— O que se faz para a crítica retomar sua importância no cenário cinematográfico, eu não sei. Mas o que pude fazer para incentivar o diálogo entre filme e público mediado pela crítica é criar o críticos.com.br, onde tento agregar em um só lugar críticos que têm o que dizer.

O repórter e crítico de cinema d'O Globo Rodrigo Fonseca considera positiva a disseminação de visões por blogs e páginas específicas na internet, mas ressalta: a crítica deve voltar-se não a impor um juízo, e sim a fornecer subsídios para que o leitor possa ter uma experiência mais proveitosa, enriquecedora, ao ver o filme. Para o também crítico e Arturo Netto, professor de Cinema da PUC-Rio, a crítica, ou o crítico, deve se "despreconceitualizar", livrar-se de filtros pré-concebidos que possam prejudicar a análise e, consequentemente, a sua contribuição para o "fazer cinema", como diz Denise, e para a reflexão social.

Nesse compromisso, mais até do que na formação especializada, sustenta-se a função do crítico de cinema, ressaltam os especialistas. Um trabalho para o qual concorrem competências mais complexas do que se costuma imaginar, observa Janot. O embasamento vem, segundo ele, de uma cultura cinematográfica ampla.

— O problema da nova geração é achar que basta ver os seis filmes de Star Wars e saber sobre os efeitos hollywoodianos para se tornar um bom crítico — ironiza — Mais que isso, é preciso ter bagagem e conhecer minimamente as escolas cinematográficas. 

Miguel Pereira: “O que conta é a capacidade do olhar do crítico”

 Arquivo Portal Na opinião do jornalista e crítico de cinema Miguel Pereira, coordenador da pós em Comunicação da PUC-Rio, o que deve prevalecer é "a capacidade do olhar do crítico". Para exercê-la, aguçá-la, deve-se evitar que “a paixão pelo cinema seja maior que a razão do cinema”.

— Se a critica está assinada, sempre estará atrelada à opinião daquela pessoa. Não existe critica objetiva. A critica é sempre subjetiva, sempre a visão pessoal de alguém. O que deve ser levado em consideração é a capacidade do olhar do critico. O chororô do cineasta que se vê injustiçado sempre vai existir — completa Janot.

Pereira lembra que não existe crítica "perfeita", pois toda avaliação é uma perspectiva pessoal “construída a partir das experiências fílmicas de cada um”. Ainda assim, ele aponta caminhos para torná-la menos vulnerável a considerações rasteiras ou, como se diz, "achismos" sem o compromisso de fomentar a experiência estética, a reflexão e o próprio cinema, como instrumento cultural:

— O que diferencia um bom crítico de um crítico ruim é a internalização do exercício da crítica associado ao conhecimento da linguagem cinematográfica — explica — Não acho que haja críticos melhores ou piores. É sempre alguém com uma opinião sobre determinado produto fílmico. Ele gosta ou não gosta, como qualquer outro espectador. A diferença é que a sua obrigação, como crítico, é ir além do gosto pessoal e analisar todos os aspectos do filme, que muitas vezes passam despercebidos pelo espectador comum.

Do outro lado do balcão, ou melhor, da tela, cineastas avaliam que, não raramente, faltam a críticas padrões claros e coerentes. Assim observa, por exemplo, o diretor de cinema e também professor da PUC-Rio, Marcelo Taranto, para quem a crítica carece de critérios definidos. Ele percebe uma dificuldade dos críticos em entender a proposta de filmes mais complexos, e exemplifica:

— Quando lancei meu filme Ponto final no Festival de Gramado, um crítico escreveu: “Marcelo Taranto, 47 anos corpinho de 32 (...)”. O que isso tem a ver com o meu filme? — questiona, embora reconheça:

— Claro que há exceções e que o país ainda têm bons críticos, como o próprio Miguel Pereira. Mas, infelizmente, são minoria. Muitos críticos não entendem a proposta do cineasta e acabam fazendo críticas positivas sobre filmes que agradam seu gosto pessoal. 

Críticas tradicionais ainda influenciam decisão de consumo 

Talvez a "falta de entendimento" apontada por Taranto tenha a ver com o encolhimento das resenhas tradicionais, em páginas de cadernos de cultura e guias de programação. Se até os anos 1990 revistas como a extinta Programa, do Jornal do Brasil, eram generosas às críticas de cinema, hoje congêneres como a Rio Show, d'O Globo, reservam a tais análises pequenos textos. A mudança fermentou, em parte, a proliferação de espaços mais robustos na internet. "Assim pode-se desenvolver melhor uma ideia, ou o confronto delas, pois é possível contrapor as visões de vários críticos", salienta Janot.

Apesar da perda de espaço e da disseminação de análises cinematográficas pela internet, inclusive nas redes sociais, acredita-se que avaliações tradicionais, como a do bonequinho d'O Globo, ainda influenciam comportamentos; estimulam, ou não, a ida ao cinema. Sobretudo para o público acima dos 35 anos, tradicionalmente apontado nas pesquisas como os maiores de leitores de jornais e revistas. Por outro lado, observam os especialistas, a dispersão das informações reflete-se também no peso da crítica tradicional sobre a decisão de ver um filme. 

Miguel Pereira identifica até uma distorção nessa consulta. Em meio à velocidade e ao pendor imediatista da vida contemporânea, muitos sequer leem a análise do filme: vão direto à cotação. Algo como se o leitor de esporte pulasse a crônica sobre uma partida para ler só as notas referentes às atuações dos jogadores. Os leitores contumazes de crítica costumam ser os apaixonados por cinema, que não se contentam com análises rasas, buscam mais informações e valorizam o confronto de opiniões. 

— Há um indicativo expressivo que aponta para a disseminação das cotações em detrimento do texto. Ainda existem leitores de crítica em jornais e revistas. Mas esse número está cada vez mais reduzido — lamenta o professor.

Imediatismo contemporâneo valoriza a cotação do filme, em detrimento de análises consistentes

Para Arturo, o bonequinho e similares ainda mexem na relação do espectador com o filme, o que aumenta a responsabilidade da crítica e dos críticos. Ele concorda que grande parte do público de cinema quer saber só se a análise é positiva ou negativa, para decidir a que filme vai assistir: 

— Muita gente se norteia pela crítica na hora de escolher um filme. Avaliações negativas e positivas afetam a demanda por determinado filme. 

A diluição da crítica e a prioridade dada à cotação não devem, no entanto, abalar a importância da crítica, ressalva Denise. Em que pese a pulverização movida pela internet, ela atribui ao universo digital a ampliação do diálogo proposto pela crítica profissional.

— Por mais que se negue o poder dos bonequinhos, a curiosidade pelo simples comentário de um filme influencia o interesse do público. Isso é inegável — admite a professora.

Taranto diz que a classificação dos filmes "foi ganhando uma importância maior do que deveria ao longo dos anos". Ele recomenda que o leitor reúna um painel de apreciações, ao se informar sobre um filme:

— O problema é que a crítica atribui um juízo de valor maior ao bonequinho/estrelinha: a classificação de um filme como bom ou ruim, de modo geral, não apenas na visão de um crítico em particular. Por isso, quem gosta de cinema deve ler várias críticas, para formar a própria opinião.

Rodrigo Fonseca também prescreve a pluralidade contra o que ele aponta como ameaça: a dicção arrogante que volta e meia pode contaminar a crítica, em busca de um “censo absoluto”. Para o jornalista, a crítica deve resistir à tentação de se encastelar:

— A crítica está encastelada, acha que tem um censo absoluto. Quando o crítico considera os aspectos do filme e escreve de forma menos postulante e mais investigativa, o diálogo fica sensual, criativo, bem escrito e bem temperado.

É preciso garimpar boas análises na internet, recomenda Janot

 Arquivo Portal Atrás de mais espaço para, como diz Janot, desenvolver suas ideias — e de mais projeção —, críticos "amadores e profissionais" invadem a internet. Nesse varal de análises, Pereira reforça a importância da distinção entre crítica e opinião pura:

— Há de tudo na internet, inclusive as coisas mais infantis e ingênuas, que representam uma opinião, não uma crítica. Opinião, todo mundo tem. Gosto pessoal não é critério de análise.

A mesma internet que dissemina opiniões embrulhadas como críticas também abriga análises mais profundas feitas por especialistas de distintas gerações e estilos, unidos pelo mundo de sessões (no cinema, no escritório, em casa) incorporadas à rotina. Janot vê 300 filmes por ano e produz, em média, 40 resenhas. Um volume proporcionado pela internet, cuja ajuda revela-se, contudo, relativa:

— O ambiente web é essa faca de dois gumes. Permite análises mais profundas, o maior confronto de apreciações críticas e o acesso à pluralidade. Por outro lado, banaliza o que está sendo escrito. Tem gente que nunca leu uma crítica e, quando começa a ler pelos sites, acha que crítica é aquilo que está escrito na primeira pessoa, mas aquilo não é crítica.

Embora seja, a princípio, benéfico ao leitor (cinéfilo ou não), à reflexão social e ao avanço do cinema, o extenso repertório de análises cinematográficas na internet exige, reforça Janot, um garimpo nem sempre adotado:

— O lado ruim da internet é que todo mundo acha que pode escrever o que bem entende sobre cinema e isso dificulta o trabalho do leitor. Distinguir o joio do trigo é o grande problema. Não é só uma questão de concordar com o crítico A, B ou C, é saber se aquela pessoa é tarimbada para falar do assunto.

Com quase meio século dedicado à crítica de cinema, Pereira aponta o imediatismo observado em grandes veículos de comunicação como um dos dos principais inimigos desta tarefa. Pois induz à superficialidade, prejudicial na construção e desconstrução do filme. Já Denise pondera:

— Claro que assusta o imediatismo de alguns críticos para escrever uma análise sobre uma obra muitas vezes complexa. Mas textos curtos nem sempre são ruins. Críticas rápidas lançam conceitos que vão ser mais bem trabalhados e podem ganhar uma dimensão maior. 

Taranto: "Sem uma melhor formação, o público se mantém automatizado à linguagem fácil"

Outro aspecto negativo é, na avaliação de Taranto, a concentração de apreciações voltadas aos filmes hollywoodianos. Para ele, o espectador está “desacostumado com a produção nacional”. 

 Foto: Carlos Serra — A produção nacional é mais discriminada pela crítica, enquanto os filmes estrangeiros são aplaudidos, especialmente se vierem tarimbados pelo aval da crítica internacional. O público está desacostumado a assistir filme nacional. Quando assiste, é geralmente àqueles que têm uma linguagem televisiva, como E aí, comeu?

As análises cinematográficas devem, ainda de acordo com Taranto, auxiliam na formação do público de cinema, abrindo-lhe novos horizontes: 

— Enquanto não houver um olhar direcionado para incentivar esse público, ele vai se manter automatizado à linguagem de fácil compreensão. É mais simples transferir a linguagem pastelão do que educar esse público e levar propostas mais sofisticadas.

Arturo: “É importante contemplar, nos festivais, visões distintas. Isso enriquece a discussão"

A melhor formação do público e o aperfeiçoamento do cinema passa também pelo desenvolvimento dos festivais e mostras. Um avanço que, para Rodrigo Fonseca, depende do aperfeiçoamento nos modelos de julgamento e premiação. Segundo ele, observa-se uma dissonância:

— Hoje, a forma como os festivais são organizados faz da premiação um resultado pouco expressivo esteticamente. Um exemplo desse descompasso é o que acontece no Festival do Recife, que planeja mal sua bancada de jurados — opina — O desfecho desse descompasso é o resultado muitas vezes equivocado da premiação.

Já Arturo Netto considera justo o modelo de premiação vigente no Brasil, "por ser eclético e por permitir a fomentação do debate":

— Nos festivais, há o voto popular, dos críticos e dos jornalistas. É importante contemplar perfis distintos, que se tornam ainda mais interessantes quando não convergem sobre um filme. Isso enriquece a discussão.

 Foto: Jana Sampaio Participante do júri do Festival do Rio em 2012, Denise observa que as mostras do Rio e de Brasília — da qual integrou a bancada de críticos deste ano — buscam variedade no cardápio de críticos. Ela ressalta o papel da crítica nos festivais:

— No Festival de Brasília, assisti a 20 longas e 30 curtas durante 10 dias. No Festival do Rio, essa média sobe para uns 40 longas-metragens. Então, se o crítico não estiver muito atento, filmes excelentes podem passar despercebidos. Quanto mais hermética é a linguagem, mais o filme precisa de uma acolhida da critica.