Ingrid Fiorino - aplicativo - Do Portal
04/10/2013Um clima descolado, envolvido por música e artistas de rua, invade a Praça São Salvador em plena segunda-feira. Para as jornalistas Rosa Maria Mattos e Aline Souza, o caldo de samba, MPB, malabares, balé, bandolê, tudo junto e misturado naquele cantinho de Laranjeiras, é mais do que um reforço ao circuito de opções culturais gratuitas que vem revitalizando espaços públicos na cidade. O programa reforça também o desejo, partilhado por número crescente de moradores da Zona Sul, de curtir a noite sem desgrudar da bicicleta. Elas fazem parte da turma que vai pedalando para a noitada, cujo avanço não é consequência só da Lei Seca. Consciência ambiental, economia, alma carioca, dias mais quentes impulsionam o pendor para as duas rodas. Bares, restaurantes e boates estudam atalhos para aproveitar essa demanda crescente, como os bicicletários móveis.
Rosa, Aline e as dezenas de jovens que chegam e saem pedalando desses lugares reproduzem comportamentos observados em metrópoles como Nova York, Roma, Paris e, claro, Amsterdã. Se por um lado sofrem menos com intempéries climáticas, sobretudo o inverno rigoroso, por outro lado eles enfrentam problemas já solucionados ou amenizados em cidades onde a bicicleta se incorporou à rotina. Aline diz que a falta de bicicletários e a insegurança ainda rondam o caminho de quem abraça a pedalada noturna. “Quando estou com a bike dobrável, eu a tranco e, por cautela, carrego o banco comigo”, conta. A amiga concorda, mas garante que, apesar de dificuldades, a opção compensa:
— Economiza tempo e dinheiro. Além do mais, o caminho de volta vira um passeio. Pedalar de madrugada acompanhada das amigas, pela Zona Sul, é parte da diversão — justifica Rosa.
A produção feminina para a noitada seria, supostamente, outra dificuldade. Bobagem, asseguram as ciclistas. Aline, de saia na altura do joelho, e Rosa Maria, de botas e short, afirmam que não há restrição na hora de escolher a roupa para sair de bicicleta à noite. “É só usar um short por baixo da saia, e encaixar o salto no pedal”, orienta Aline.
Dominada a arte de combinar salto e pedal, Aline esnoba o automóvel. Nem pensa em tirar carteira. Rosa tem habilitação (foto), mas também "jamais trocaria a bicicleta por um carro". Até porque a magrela (como muitos cariocas a chamam) ainda tem "a vantagem de evitar a Lei Seca", argumenta. Embora seja pavimentado por diversas razões, o crescimento das pedaladas noturnas deve-se, em parte, aos que optam por deixar o automóvel na garagem a fim de evitar as blitzes na madrugada. O diretor do clube de ciclistas Transporte Ativo, José Lobo, reconhece a influência da Lei Seca, mas aponta uma adesão maior às bikes no espaço urbano:
— Se há mais bicicletas transitando durante o dia, é natural que aconteça o mesmo à noite.
A multiplicação de bicicletas na noite carioca carece de atenção do poder público, reclamam ciclistas novos e antigos. Cobram, principalmente, policiamento específico. A Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro afirma que "está trabalhando com organização e planejamento, em parceria com a Polícia Civil, no monitoramento de determinadas áreas". Com ajuda do setor de Inteligência, promete intensificar o patrulhamento para prevenir roubos, mas admite a falta de policiamento específico para ciclistas.
Bicicletários móveis tendem a se tornam mais comuns
Já alguns empresários começam, mesmo de forma acanhada, a planejar ações voltadas para a turma sobre duas rodas. O uso de bicicletários móveis, por exemplo, é uma tendência:
— Nós do Transporte Ativo temos um bicicletário móvel e emprestamos para eventos há muitos anos. A demanda tem aumentado cada vez mais e 90% dos pedidos são para atividades noturnas — estima Lobo.
Embora se observe um avanço de consumidores de bikes em programas de entretenimento noturno, como comprovam Aline e Rosa Maria (foto), ainda é difícil precisar o impacto na economia carioca. Para o secretário executivo da União de Ciclistas do Brasil, André Soares, faltam estudos que retratem este novo cenário:
— É possível observar mudanças nas cidades médias e grandes do país, porém são necessários estudos, sejam específicos ou gerais, para fundamentar esse crescimento do uso de bicicletas à noite. A UCB está requerendo que o IBGE inclua questões relativas à posse de bicicletas no Censo e em pesquisas afins.
Apesar da falta de informação científica, a adoção cada vez mais frequente da magrela como parceira da noitada é percebida, por exemplo, na quantidade crescente desses veículos estacionada próximos a bares, restaurantes, boates. A programadora Tatiana Carvalho conta que há pouco tempo passou a usar a bike como meio de transporte, não só para se deslocar até o trabalho, mas para fazer programas noturnos. “Ver mais bicicletas paradas do lado de fora de um bar incentiva outras pessoas a deixarem o carro na garagem, e isso estimula o ciclismo como meio de transporte”, anima-se Tatiana. Já o estímulo do estudante de Comunicação Artur Rocha veio de casa:
— Fui incentivado pelo meu pai desde pequeno, sempre tive contato com a bicicleta. Não sinto necessidade de dirigir. Pedalar é sempre minha primeira opção, a não ser que chova — ressalva.
Outro limitador, lembra Aline, pode ser a distância:
— Minha única restrição é o destino não ser longe da minha casa, pois é normal voltar cansada da farra. A bicicleta é uma ótima solução até um determinado raio de distância. Às vezes, vou para shows no Circo Voador, na Lapa, ou ao Baixo Botafogo. Outras vezes prefiro algo mais tranquilo, como beber uma cerveja com os amigos e sair para jantar, tudo de bicicleta — exemplifica a jornalista.
Para Tatiana, fugir do trânsito é a maior vantagem, principalmente sexta-feira à noite. Já o produtor de eventos Tiago Leitman foge do trânsito e da Lei Seca. “Parei de usar moto à noite justamente por conta da Lei Seca”, conta. Tatiana ressalva que guiar uma bicicleta alcoolizado pode ser tão ou mais perigoso. “Isso não é um estimulo para mim. Pelo contrário, quando comecei a sair de bicicleta, passei a controlar mais a ingestão de bebida alcoólica”, diz ela.
Quem adere ao hábito de pedalar à noite mantém, em geral, o autocontrole e bebe menos, observa Michelle Castilho, que há três anos passou a usar a bike para não depender do transporte público e "ir para a noitada sem estresse". Ela acrescenta que outra vantagem da magrela é a economia: "Não gastamos com IPVA, combustível, estacionamento, seguro", argumenta, a despeito de o uso de bicicleta envolver gastos com a manutenção periódica do equipamento.
Benéficas à saúde e ao bolso, pedaladas exigem cuidados
Em que pesem as vantagens da bike como meio transporte, as pedaladas no fim da noitada recomendam certos cuidados. Por exemplo, pedalar em grupo, por segurança; e redobrar a atenção em trechos próximos cruzamentos. Tomadas essas precauções, Rosa Maria garante que a volta da bicicleta torna-se "grande parte da diversão noturna":
— Certa vez, estava voltando para casa e a noite não tinha sido das melhores. Durante o percurso, enquanto passava pela praia do Flamengo, me deparei com uma lua cheia maravilhosa, e isso fez valer a minha saída – conta – Caso eu tivesse ido de táxi ou ônibus, jamais teria curtido aquele momento.
Na lista benefícios, inclui-se, naturalmente, a saúde. O professor de Educação Física Leonardo Gaspar afirma que, em geral, o coração é um dos mais favorecidos pelas pedaladas regulares. Ele alerta, no entanto, sobre a necessidade de se consultar um profissional da área para ajustar a prática ao condicionamento físico de cada indivíduo.
— O ciclismo é uma das atividades mais completas, pois trabalha o condicionamento cardiovascular e fortalece a musculatura — explica — A modalidade colabora também na diminuição do percentual de gordura, alivia dores e reduz a pressão arterial.
A demanda define o impacto nos negócios
Apesar do avanço de consumidores sobre duas rodas, donos de bares, restaurantes e boates ainda estão em marcha lenta quanto aos ajustes para atrair essa tribo. Pelo menos é o que observa Mônica, que considera a invasão das bikes na noite carioca também uma oportunidade de negócios:
— Bicicleta atrai bicicleta. Somos um grupo cada vez maior. Se formos bem tratados e tivermos um local adequado e seguro para estacionar a bike, pode ter certeza de que voltaremos e espalharemos a notícia indicando que tal lugar é receptivo aos ciclistas. Lucro certo para o investidor.
Os próprios ciclistas tomam a dianteira e sugerem ações aos empresários. Tati Carvalho costuma conversar com gerentes de casas noturnas para propor bicicletários. “Tento mostrar que isso pode atrair uma clientela ainda maior. Um ou outro me olha como se fosse algo desnecessário, mas a maioria considera a possibilidade”, anima-se.
Festas já dão descontos para ciclistas
Algumas festas, como a Manie Dansante e Fayah, já oferecem descontos para quem vai pedalando. O tratamento bike friendly tende a se tornar mais frequente à medida que mais consumidores usarem a bicicleta para sair à noite. O espaço multifuncional Comuna, já investe na aproximação com ciclistas. Mas o produtor da casa, Eduardo Pereira, assegura que "algo natural", e não uma "estratégia de marketing com fins lucrativos":
— É provável que o reconhecimento seja fruto de eventos e oficinas oferecidas para os fãs da bicicleta. Nós, da Comuna, já estávamos inseridos nesse meio, portanto é natural a nossa relação com os ciclistas — observa — Estamos reunindo fundos para colocar em prática o projeto de construção de um bicicletário, já aprovado pela prefeitura. Enquanto isso, deixamos as pessoas colocarem as bikes dentro da casa.
Para o empresário Cabbet Araujo, sócio da boate Fosfobox e da recém-inaugurada La Paz, a responsabilidade social e o cuidado com o meio ambiente já são suficientes para o apio às pedaladas. O empresário avista um número maior de bikes ao redor da boate e diz "estar agindo para garantir mais conforto e segurança aos ciclistas":
— Temos bicicletários provisórios, porém estamos procurando as subprefeituras para nos ajudar a instalá-los nas proximidades de ambos os estabelecimentos. Outra proposta é transformar um espaço usado como depósito de lixo na Rua do Resende em um bicicletário para uso comunitário.
Os ciclistas noturnos despertam também festas independentes e programas específicos, como o “Passeio Completo”, um passeio-festa organizado por Tiago Leitman. “O convite é feito no Facebook, onde a gente divulga a data e o percurso escolhido. No dia, um triciclo carrega uma caixa de som e anima a festa durante todo o evento”, conta Leitman.
O restaurante Mekong, o Felice Café e a Casa da Matriz, na Zona Sul, também são considerados bike friendly. A turma da pedalada noturna espera que a lista não se multiplique, mas se estenda a outros pontos da cidade, como o Centro e a Zona Sul.
O papel do poder público na “turma sobre duas rodas”
Uma pedra no caminho dos ciclistas é, contudo, a falta de educação no trânsito. Mônica diz que nem mesmo guardas estão cientes do que é permitido:
— A maioria dos motoristas e dos guardas de trânsito e até ciclistas desconhecem as leis específicas. Isso prejudica não só o deslocamento em si, mas compromete a segurança de todos. É aí que o poder público deve agir — propóe.
Outros obstáculos crônicos apontados frequetemente por ciclistas são a falta de bicicletários e malhas cicloviarias de qualidade. “Na falta de um bicicletário, eu acho um poste. Entretanto, se o número de ciclistas seguir crescente, os postes já não serão mais suficientes”, garante Tatiana Carvalho. Já as vias apropriadas estão sendo pensadas pela Prefeitura que aprovou o projeto Ciclo Rotas, definindo por Mônica como “a esperança de futuramente circular com mais tranquilidade pelo centro da cidade”. A proposta estará exposta diariamente, de 24 de julho a 1 de novembro, no Studio-X na Praça Tiradentes e contará com uma programação de palestras e workshops com o tema “mobilidade através da bicicleta”.
Existe também a promessa da extensão de 450 km de malhas ciclo viárias no Rio de até 2016. Porém, o estudante de jornalismo, Arthur Rocha alerta que se os motoristas e pedestres continuarem invadindo as faixas destinadas à bicicleta, tais medidas não terão nenhuma funcionalidade.
Garantir infraestrutura de qualidade é importante, mas lado a lado existe a necessidade de estimular o ciclismo como meio de transporte. O secretário executivo da UCB, André Soares, sugere a criação de espaços de lazer tanto para o encontro de jovens quanto para a prática de esportes relacionados à bicicleta.
A estilista Mônica ainda cita outra questão que o poder público está pecando: segurança. Segundo ela, isso a deixa na dívida se deve ou não ir pedalando para algum evento. “Ninguém quer sair da festa e descobrir que teve a bicicleta danificada ou roubada”, diz.
Pedalando com estilo A bicicleta além de ser um meio de transporte e proporcionar o exercício físico, também provoca o exercício do estilo. O vestuário é considerado uma barreira para os ciclistas que querem ou precisam circular de bike bem vestidos, mas a estilista Michelle desmente esse mito e garante que em geral usa o que der vontade, sem restrições: — Em geral as mesmas roupas que visto ao sair de taxi ou ônibus são as mesmas para pedalar. A bicicleta não me limita nem mesmo a utilizar salto alto. Basta pegar a manha de como encaixar o salto no pedal e voilá. Outra dica da estilista é optar por calça jeans com strech e sempre com a barra dobrada na perna direita para não agarrar na corrente. Para Michelle, o capacete é sempre obrigatório e se usar saia ou vestido, o ideal é colocar uma bermudinha por baixo para não pedalar mostrando a calcinha. Ir para o trabalho, encontrar amigos em um barzinho, jantar com a namorada, ou até mesmo curtir uma festa. Para todas as ocasiões um traje mais adequado é necessário e pedalar precisa não só de estilo, mas de conforto e segurança também. Por isso já é possível substituir itens com cara de esportivos por acessórios mais camuflados como casacos, bolsas transversais, chapéus etc. Marcas como a Oakley e Farm lançaram coleções específicas para atender as necessidades dessa galera. A Osloh também investiu nessa clientela e criou uma linha especial de jeans com costuras reforçadas. Alguns cuidados e dicas: - Saias de comprimento médio, ou na altura dos joelhos, evitam que se mostre mais do que o necessário; tecidos fluidos dão liberdade para as pedaladas; - Se optar por algo mais curto não se esqueça de usar short por baixo da roupa; - Sandálias que prendem o calcanhar são mais seguras e eliminam o risco de perder o calçado no passeio; - A bolsa do tipo tiracolo é uma ótima opção, já que usar a alça cruzada no corpo deixa os braços livres para controlar o guidom; - Opção confortável, as calças de modelagem sequinha não atrapalham a mobilidade na hora da pedalada, a barra dobrada, além de charmosa, evita enrosco com os pedais; - Camiseta, cardig�, jaqueta, lenço... Para não passar calor ou frio, um look com várias camadas evita surpresas, caso o tempo vire; - Para quem não dispensa o salto nem sobre duas rodas, melhor optar por saltos sem nenhum tipo de plataforma, para que seja possível sentir bem onde se pisa; - Se estiver muito calor opte por tecidos mais leves e ainda sim estilosos. |
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