Nos primeiros seis meses de vida, o leite materno deve ser o único alimento dado aos recém-nascidos. No entanto, na ausência da mãe, quem cuida do bebê recorre a utensílios como mamadeira e chupeta. Embora ofereçam praticidade, estes itens podem levar à diminuição da produção de leite materno, além de causar prejuízos na função motora oral, problemas ortodônticos e alterações na respiração dos pequenos. Leites artificiais ou de origem animal, ministrados com a promessa de oferecer maior saciedade, também podem acarretar problemas digestivos. Apesar de serem riscos reconhecidos por organizações internacionais, a produção industrial, com a chancela de médicos, contribui para a permanência do hábito da mamadeira.
No livro Amamentação e o desdesign da mamadeira: por uma avaliação da produção industrial, lançado nesta terça-feira, 10, pela Editora PUC-Rio, a designer Cristine Nogueira Nunes explica como a mamadeira pode ser um exemplo de produto largamente utilizado que precisa ser revisto, inclusive, pelos profissionais que o projetam.
Cristine, que é professora do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio, além de citar pesquisas e ações feitas por órgãos como o Unicef, aborda em seu trabalho a história da disseminação de alimentos artificiais no hábito nutricional de crianças e menciona campanhas de amamentação realizadas no Brasil e no mundo. Alguns modelos de mamadeira também são avaliados – nenhum deles adequados à saúde do bebê. Num dos anexos do livro, ela ainda propõe uma reflexão sobre o papel dos bens de consumo na sociedade capitalista:
– Analisei as que tinham design mais inovador, lançadas até 2010. O meu objetivo principal foi chamar atenção para que seja feita uma mudança na metodologia de ensino e projeto na área do Design. Os produtos devem ser sempre questionados e, se for o caso, serem transformados em outros produtos.
A mamadeira cria a necessidade de pressionar a língua contra o céu da boca, movimento desconhecido e não natural para recém-nascidos. Em lugar de bicos, o uso de copinhos facilitaria a ingestão do leite de maneira mais adequada para a alimentação dos bebês. Em convênio com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Cristine participa de um projeto para a criação de copinhos ergonômicos para amamentação. O projeto está na fase de testes dos primeiros protótipos. O uso deste utensílio evitaria a alteração de movimentos instintivos do bebê causado pelo uso da mamadeira.
Cristine deparou com o problema quando fazia doutorado e pesquisava sobre o design como agente incentivador de vendas, procurando traçar paralelos entre a história do design e as doutrinas políticas econômicas. Por meio de um especialista do Instituto Fernandes Figueira da Fiocruz, descobriu o objeto símbolo ideal para seu estudo. Ela lembra que, apesar de há quase 40 anos pesquisas já apontarem que as mamadeiras fazem mal, fabricantes no mundo todo continuam a produzi-las, em diversos modelos. Mas este seria apenas um entre vários produtos industriais que precisam ser reavaliados:
– Meu trabalho é uma super autocrítica. Nós designers estamos raciocinando mais como consumidores do que como profissionais. Assim como quando vamos ao médico e esperamos um remédio para ficarmos bem, esperamos que os produtos sejam projetados para a segurança e saúde das pessoas. Os designers são experts em produtos industriais e a atividade deles é caracterizada principalmente por um levantamento de dados, por uma pesquisa preliminar muito rica. Então, como é que estão projetando um produto que comprovadamente faz mal? Quem está projetando esses produtos não está pesquisando e está embarcando na correnteza econômica, industrial – pontua Cristine, ressaltando que, ao pesquisar "mamadeira" em qualquer idioma, no Google, na primeira ou na segunda página já aparecem os problemas relacionados ao produto.
Cristine conta que, quando sua filha nasceu e ela precisou voltar a trabalhar, tentou introduzir o leite artificial na dieta da filha. Dezoito anos depois, descobriu com espanto os riscos que uma alimentação inadequada pode oferecer a um bebê:
– A minha reação foi como a de muitas pessoas. Foi um choque, o que é compreensível diante de tanta pressão e tanta propaganda. Agora, para designers é uma irresponsabilidade desconhecer esta questão. O público em geral confia nos produtos e nas grandes empresas.
As campanhas da Semana Mundial da Amamentação realizadas no Brasil são criticadas no livro pela linguagem pouco original e pela escolha de atrizes e cantoras ilustrando peças da campanha "Madrinhas da Amamentação", não ajudando para a construção de uma imagem correspondente à realidade.
– Os cartazes da Waba (World Alliance for Breastfeeding Action), organização mundial encarregada de lançar campanhas para essa semana, são muito interessantes. No Brasil, há uma tendência a tornar as mensagens mais leves – afirma Cristine.
Desde 1999, a Sociedade Brasileira de Pediatria e o Ministério da Saúde são responsáveis por campanhas da Semana Mundial de Amamentação no Brasil, divulgada em hospitais públicos, em forma de cartazes, folhetos e spots veiculados na televisão, na primeira semana de agosto. Mas, segundo Cristine, a amamentação é retratada como um momento tranquilo, simples, em que não há problemas, contrariando o que acontece com a maioria das mulheres. Os bancos de leite oferecem apoio e orientação a mães que enfrentam dificuldade.
A apresentação do livro é assinada pela socióloga, presidente da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan-Brasil), Rosana Maria Polli Fachini de Divitiis.
"Junk food" para bebês
A crença de que o leite materno pode ser considerado “fraco”, uma vez que a criança é capaz de digeri-lo rapidamente, colaborou para a disseminação do leite em pó, que foi aprovada por médicos e revistas científicas. Cristine Nogueira relaciona a introdução da mamadeira no país com a mudança operada na economia brasileira no início do século XX, na passagem para sistema de produção urbano industrial e com a ascensão da sociedade de consumo. Ao longo do século XIX, a mamadeira tornou-se um dos símbolos da modernidade e em 1912, as primeiras remessas de leite condensado e farinha láctea vindas da Suíça chegaram ao Brasil.
Em 1939 foi lançada a primeira campanha contra alimentação feita por meio de mamadeiras. Em 1974, a organização caritativa britânica War on Want, publicou o relatório The Baby Killer e em 1979 a Unicef reconheceu a superioridade do leite materno. O Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno foi lançado em 1981, com o aval da Organização Mundial da Saúde.